Família de jovem morto pelo Exército no Rio em 2008 parou de receber pensão

    Wellington Gonzaga trabalhava sem registro e, por essa razão, a Justiça decidiu que não há necessidade de indenização; ‘guardo essa foto dele e os jornais para não esquecer o que o Exército fez’, diz Lilian, mãe da vítima

    Lilian Gonzaga, mãe de Wellington: ‘De lembrança só fica essa foto dele aqui e as notícias de jornal’ | Foto: Leonardo Coelho/Ponte

    “Faz dez anos que aconteceu essa barbaridade aí com meu filho e a gente não viu justiça ainda”, desabafa Lilian Gonzaga, mãe de Wellington, 19 anos, um dos três jovens brutalmente assassinados em 14 de junho de 2008, no Morro da Mineira. Os outros dois são Davi Wilson da Silva, 24 anos, e Marcos Paulo de Campos, 17 anos. Na ocasião, onze militares do Exército Brasileiro que trabalhavam no Morro da Providência, no centro do Rio, fazendo segurança para o projeto Cimento Social teriam se desentendido com os jovens e, como retaliação, decidiram levá-los até a comunidade controlada pelo TCP (Terceiro Comando Puro), rival do CV (Comando Vermelho), e entregá-los aos traficantes locais.

    Os assassinatos ficaram conhecidos como a “Chacina da Providência”. Na época, o tenente Vinícius Ghidetti, que chefiava o grupo e ainda responde pelos homicídios, em um dos depoimentos contou que foi desacatado e decidiu dar um “castigo” em Wellington, Davi e Marcos. No acórdão está registrado que o oficial, inclusive, teria entregado os jovens pessoalmente aos traficantes, dizendo: “Aqui está um presentinho para vocês”.

    Em entrevista à Ponte, Bárbara Gonzaga, irmã de Wellington, lembra exatamente o que aconteceu no dia que o irmão foi levado pelos militares. Ao voltar para o Morro da Providência, o tenente Vinicius Ghidetti falou para ela o que havia feito. “Levei seu irmão pra Mineira. Tá morrendo”, contou. No dia seguinte, os corpos dos três foram encontrados esquartejados em uma caçamba no aterro sanitário de Gramacho. Em razão disso, a família de Wellington e as outras duas entraram com pedidos de indenização à União.

    Na época dos fatos, o ex-senador e atual prefeito do Rio, Marcelo Crivella, responsável pelo projeto Cimento Social, cedeu casas como forma de reparar as vítimas. Os pedidos de indenização foram deferidos pela Justiça do Rio apenas em 2012. As famílias passaram a receber entre R$ 300 e R$ 400 reais mensais.

    Mas, completados dez anos dos crimes, Lilian, além da saudade, amarga uma derrota na justiça: o Tribunal Regional Federal da 2ª Região avaliou como improcedente o pedido de pensão. Uma decisão de abril de 2017, do desembargador Federal Marcelo Pereira da Silva, deixou a família Gonzaga sem uma importante fonte de renda. Para a Justiça, inexiste nos autos qualquer alegação de que seu filho trabalhasse ou estudasse, “não sendo razoável, no entender deste relator, supor-se que contribuiria para a economia familiar.”

    A decisão chocou a família Gonzaga, que além de precisar da pensão, sempre deixou claro que Wellington trabalhava na época, ainda que informalmente. “Ele trabalhou de entregador de pizza, de motoboy e também ia começar a trabalhar justamente nas obras do Cimento Social” lembra Lilian, mãe do jovem.

    A sogra de Wellington na época falou com a reportagem e disse que Wellington trabalhou em uma papelaria e, pouco antes de morrer, estava em uma pizzaria fazendo entregas. Essa versão foi confirmada por pelo menos dois amigos da Ladeira do Barroso, onde o jovem de 19 anos tinha a maior parte das suas amizades.
    “Ele sempre tava na correria”, lembra Pedro Paulo, professor de Educação Física de 26 anos que chamava o amigo carinhosamente de Negão. “Ele era um irmão, um moleque puro. Todos os dias estava conosco, em todos os momentos.”.

    Bárbara Gonzaga, irmã de Wellington, fala sobre as condições precárias da casa onde vivem | Foto: Leonardo Coelho/Ponte

    O advogado do caso, Ricardo Dezzani, discorda da compreensão tomada pelo desembargador, citando a Súmula 491 do Supremo Tribunal Federal como possível referência. A súmula indica que é indenizável o acidente que cause a morte de filho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado. “A atividade profissional só é relevante para a fixação do valor da pensão, e não da própria pensão. Não sendo comprovado esses vencimentos, usa-se como base um salário mínimo, que é a menor remuneração que o brasileiro pode receber”, disse.

    Dezzani explica que não a União não pretendeu que a pensão fosse retirada, porém, “em causas das quais é parte a Fazenda Pública, há um dispositivo chamado ‘reexame necessário’. E foi justamente quando isso chegou nas mãos do desembargador em questão ele reavaliou e entendeu que ela era indevida”. O advogado entrou com recurso no STJ (Superior Tribunal de Justiça) para reverter a decisão de interrupção da pensão da família de Wellington e tentar aumentar o valor da verba de dano moral. Não há previsão para o julgamento desse recurso.

    Para o advogado João Tancredo, que representou a família durante anos e ainda acompanha o caso, essa decisão é mais uma ofensa aos familiares que perderam seus entes queridos. “Em 2008, até o Nelson Jobim, então ministro da Defesa, veio fazer acordo e dizer que seriam justos nas indenizações. Mas nada fizeram”, lembra. “É afrontoso, não apenas pela violência, mas pelo que a Justiça vem fazendo nesse caso”. A Ponte tentou entrar em contato com as famílias de Davi e Marcos Paulo, mas não obteve retorno.

    Atualmente, Lilian vende cestas básicas e é cuidadora de idosos na comunidade. Mora com o marido em uma casa cedida pelo projeto Cimento Social, criado pelo atual prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, com o objetivo de reformar casas no Morro da Providência. A casa está em estado precário, mesmo assim, a família, que não tem a quem recorrer, segue vivendo lá.

    Tenente será julgado no Foro Militar

    Neste ano, o julgamento do tenente Vinícius Ghidetti de Moares Andrade, que respondia pelo comando do grupo de militares que estava na Providência no dia 14 de junho e que entregou os jovens para a morte, foi transferido para a Justiça Militar em março deste ano. O caso até então estava correndo na Justiça comum e Ghidetti deveria ter ido à júri popular no final de 2017. Ele é acusado de três homicídios triplamente qualificados.

    Segundo a juíza Caroline Figueiredo, em julgamento de novembro do ano passado, a transferência se dá com base no projeto de Lei Complementar 44/2016, sancionada pelo presidente Michel Temer, que efetivamente desloca os crimes cometidos por oficiais das Forças Armadas contra civis em operações oficiais para a justiça Militar.

    O Ministério Público do Rio está recorrendo da decisão. Para a família de Wellington, esse é mais um absurdo cometido contra a memória do filho e irmão. “Esse tenente inclusive fingiu que tava maluco para não ser julgado” lembra Lilian Gonzaga, referindo-se ao período em que o processo ficou parado por suposta insanidade de Vinícius. Em 2017, um laudo psiquiátrico desmentiu o quadro e permitiu que o processo voltasse a correr.

    Os outros dez militares que estavam sob o comando de Ghidetti foram inocentados das acusações, porque a Justiça entendeu que, a partir dos depoimentos, o tenente teria agido por livre e individual iniciativa, desrespeitando, inclusive, a ordem de um dos superiores de libertar os três jovens. A primeira exclusão das acusações de nove dos militares envolvidos aconteceu ainda em 2010. Já o sargento Leandro Bueno teve a acusação de participação nos crimes mantida e acabou indo à júri em 2012, quando foi absolvido. Em 2014, no entanto, o Ministério Público Federal pediu a anulação do júri e conseguiu. O caso corre no Tribunal Regional Federal 2 do Rio.

    Tanto o tenente Vinicius Ghidetti quanto o sargento Leonardo Bueno respondem aos processos em liberdade e aguardam as datas dos julgamentos. Quem faz as defesas dos dois militares é a DPU (Defensoria Pública da União).

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