Família de pintor condenado por roubo no interior de SP questiona provas

    Vinicius Villas Boas está preso há dois anos acusado de ter cometido dois assaltos, em 2016; por um dos crimes, ele foi condenado a 9 anos

    Vítima reconheceu Vinicius por fotos de Facebook, mas família aponta que características de suspeito não batem com o do pintor | Foto: reprodução

    Há seis anos, Carolina Sanchez e Vinicius Silva Villas Boas decidiram fazer um caminho inverso de muitos que buscam oportunidades na cidade de São Paulo: morar no interior. “Para fugir da criminalidade”, explica Carolina. O casal decidiu mudar para Mendonça, município localizado no noroeste paulista, a mais de 460 km da capital, e com pouco mais de 5,4 mil habitantes. “Fizemos uns cursos e estávamos decididos a investir numa pizzaria”, lembra.

    Com o estabelecimento quase todo montado, o sonho passou a tomar outros rumos no dia 2 de março de 2016, quando a polícia invadiu a casa deles acusando Vinícius de ter participado de dois assaltos. “Fui surpreendido em meu quarto, junto com minha esposa e meu filho, que na época tinha dois anos de idade, com uma arma na minha cabeça, com vários policiais dentro da minha residência perguntando pelo meu nome”, conta Vinícius, em carta escrita de dentro do Centro de Ressocialização de Birigui, à Ponte.

    “Eu imediatamente me apresentei e perguntei por qual razão estavam dentro de minha residência. Me informaram que estavam com um mandado de busca e apreensão. Perguntei o motivo, mas os mesmos não me informaram e disseram que tinham que revistar a casa”, continua.

    Vinícius, hoje com 33 anos, conta que os policiais agiram com “brutalidade apavorante, quebraram armários e quiseram levar todos os meus eletrodomésticos. Eu intervi apresentando todas as notas fiscais necessárias”. Ele foi conduzido à delegacia de José Bonifácio, cidade vizinha de Mendonça, onde relata que foram tiradas fotografias suas e que os policiais “disseram que devia contratar um advogado para ter ciência do caso”.

    O ajudante de pintor soube dias depois que estava sendo acusado de integrar uma quadrilha que, nos dias 17 e 24 de fevereiro de 2016, roubou duas residências em José Bonifácio. Vinícius está preso há quase dois anos e foi condenado a 9 anos de prisão, em novembro do ano passado, por um dos crimes.

    A família e a defesa de Vinícius argumentam que ele foi preso injustamente ao ter sido reconhecido por foto via redes sociais e confundido com outra pessoa. Também apontam um fator racista em todo o processo: além de Vinícius, Weverton Felipe Moreira Silva dos Santos, também negro, foi condenado. Os outros dois acusados, Sandro Oliani da Silva e Alexandre Kaique Rocha Moreira, são brancos. Sandro foi inocentado e Alexandre ainda não foi julgado.

    Sobre os crimes

    Dois crimes muito semelhantes e em locais bem próximos aconteceram nos dias 17 e 24 de fevereiro de 2016 em José Bonifácio, interior paulista. O primeiro foi um roubo a uma casa localizada na Avenida Bandeirante. A vítima informou, no boletim de ocorrência, que ao chegar em casa notou que o miolo da fechadura estava quebrado, quando foi surpreendido por três criminosos, amordaçado e trancado no banheiro. O trio levou R$ 1400, um celular, um cordão de ouro e dois vidros de perfume importados.

    A vítima descreveu os assaltantes como: “três indivíduos de cor parda, um de estatura alta e magro, um de estatura média e magro e o outro de estatura média e forte. Os três tinham cabelos cortados baixo nas laterais e parte traseira da cabeça e alta na parte central e frente”. Além disso, relatou ter visto próximo a sua casa um automóvel Gol 4 portas, chumbo escuro e vidro fumê. Nesse carro estaria o quarto indivíduo.

    No dia 24, um outro caso aconteceu, dessa vez na Rua Olivia Croco Magron: furto à residência. O local fica a pouco mais de 1 km de distância da casa alvo de roubo uma semana antes. A vítima relatou que saiu para trabalhar e que deixou o alarme ligado, mas ao retornar notou que o portão havia sido forçado e a casa estava aberta e revirada. 

    A segunda vítima decidiu ir atrás de câmeras de segurança das ruas vizinhas para tentar identificar os autores do roubo. Nelas, foi possível visualizar um veículo Gol cinza com as mesmas características do automóvel visto perto da cena do crime anterior. As imagens registraram o momento em que dois indivíduos entraram correndo no carro. Além disso, nas gravações é possível identificar uma picape Saveiro branca e um rapaz de calça branca e camisa azul que passa duas vezes. As filmagens do segundo caso é que passaram a fundamentar o trabalho de investigação da Polícia Civil sobre o primeiro assalto, pelo qual Vinícius acabou condenado a 9 anos de prisão.

    A família de Vinícius defende que a prisão foi motivada por racismo. “As abordagens policiais eram frequentes”, conta Vinicius, ainda na carta. “Na primeira semana em que estava residindo na cidade [2013], fui abordado em frente ao Banco Santander e por nunca terem me visto na cidade, suspeitaram que eu iria roubar o banco. Eu estava com a minha esposa com 4 meses de gestação”, relata.

    A companheira de Vinícius confirma: “Geralmente, eram os mesmos policiais que costumavam abordar quando o Vinicius estava dirigindo”.

    Posteriormente, na decisão judicial, o fator racista voltou com força, na leitura dos familiares: dos quatro supostos integrantes da quadrilha, a Justiça de SP condenou apenas os dois que são negros. Um deles é Vinícius.

    A família aguarda uma decisão e espera que o ajudante de pintor seja inocentado. Em carta, ele diz que ainda sonha em ser funcionário público e cursar Direito. “Quero contribuir com a justiça e diminuir o índice de injustiça”.

    Reconhecimento irregular

    A Ponte teve acesso às imagens coletadas pela segunda vítima a partir de uma câmera que fica na esquina da Rua Olivia Croco Magron, a cerca de 45 metros da casa assaltada, que não aparece na filmagem.

    A gravação de 20 minutos é descrita em parte no laudo pericial indicando que as câmeras captaram um “veículo tipo caminhonete (Saveiro Cross, cor branca)”, 8 minutos depois um indivíduo trafega pelo local, depois um veículo “semelhante” ao que foi citado passa novamente. Depois, um Gol “bolinha” cinza transita pela região. A perícia não aponta placas nem indica quem seria a pessoa que aparece caminhando. Confira os trechos citados:

    No relatório assinado pelos investigadores Adilson Pontanegra Neto e Silvio Cruz Dourado está descrito que, por meio da gravação, foi “possível identificar os veículos pelas suas placas, bem como um dos averiguados, ou seja, Vinicius Silva Villas Boas, sendo que tais veículos transitaram e permaneceram parados próximo a residência furtada”. A investigação também pontua que Vinicius aparece caminhando “nas proximidades do local, levando a crer que é um dos envolvidos no crime”.

    Os investigadores afirmam que foram à cidade de Mendonça, tomaram conhecimento de que os veículos pertenciam a Sandro Oliani da Silva, um dos suspeitos, a partir de “informações com policiais de lá”. A dupla também afirmou que todos os quatro suspeitos “possuem relação de amizade, pois são conhecidos nos meios policiais, por prática de vários crimes, em especial o tráfico de entorpecentes, e, portanto, se associam para o cometimento desse crime”.

    Nesse texto, ainda são citados os suspeitos Alexandre e Weverton, que teria sido reconhecido “informalmente” por Facebook. Os investigadores apontaram que precisavam do mandado de busca e apreensão para prosseguirem as investigações – embora não tenha sido anexada nenhuma foto de Weverton.

    Vinicius foi fotografado na delegacia e teve duas fotos do Facebook supostamente usadas para o reconhecimento anexadas ao inquérito.

    Fotos retiradas do Facebook de Vinicius foram anexadas no inquérito policial para basear reconhecimento | Foto: reprodução

    No relatório de investigações, as filmagens usadas datam dos dias 22 e 23/2/2016, sendo que a segunda vítima declarou que o furto ocorreu no dia 24.

    Imagens da câmera de segurança | Foto: Reprodução
    Imagens da câmera de segurança | Foto: Reprodução

    O reconhecimento pela vítima do crime de roubo à residência foi feito dois dias depois do cumprimento dos mandados de busca e apreensão, em 4 de março, apenas por fotos. Nele, a vítima confirma a versão do B.O., mas muda a descrição de “pardo” para “escuro (pardo)” e na audiência disse que dois dos três homens que o assaltaram eram “mais morenos, porém não de pele negra”. Vinicius e Weverton, que são negros, foram apontados como dois dos três assaltantes, já que essa vítima não reconheceu o terceiro.

    Os dois investigadores também relataram que não chegaram a ir até o local onde aconteceu o primeiro assalto porque a vítima teria reconhecido o veículo Gol pelas filmagens do caso de furto. Dourado ainda disse que “uma testemunha anônima disse ter visto a placa do veículo e a informou para a vítima”. Essa testemunha não é apontada no inquérito nem os policiais militares de Mendonça são mencionados ou foram ouvidos.

    Questionados sobre as datas das filmagens, já que são do dia 23/2/2016, os investigadores disseram em audiência que não haviam se atentado para isso. O delegado Luciano Bracci, sobre esse ponto, relatou que apenas concluiu a investigação feita pelo delegado Marco Antonio de Oliveira. Além disso, os policiais civis revelaram que primeiro providenciaram as fotos retiradas de Facebook obtidas por informações de PMs de Mendonça para identificar os suspeitos e não que Vinícius tinha sido reconhecido de antemão pelas filmagens da câmera de segurança, como afirmaram no inquérito.

    A Ponte tentou contato com o delegado Marco Antonio de Oliveira e com os investigadores, mas o cartório da delegacia informou que eles estavam de férias.

    ‘Provas questionáveis’, afirma família

    De acordo com a esposa de Vinícius, Carolina Sanchez, um dos pontos de indignação da família sobre o reconhecimento é de que as características do marido não corresponderiam às citadas pela vítima do roubo, muito menos às imagens das câmeras de segurança que flagraram o segundo crime – furto à residência – e que foram usadas para supostamente identificar Vinícius.

    “Estamos juntos há 14 anos e o Vini nunca usou cabelo estilo coroinha, sempre foi raspado. Nas imagens aparece um rapaz branco, o Vinicius é negro. A vítima diz que é pardo, depois que é escuro, ou é uma coisa ou é outra”, questiona Carolina.

    Carolina, esposa de Vinicius, aponta que marido nunca usou corte de cabelo descrito por vítima de roubo | Foto: reprodução Facebook

    De acordo com os autos dos dois processos, os acusados não foram reconhecidos pessoalmente pela vítima na delegacia, conforme orienta o artigo 226, do Código de Processo Penal, que prevê os procedimentos de reconhecimento, como colocar a pessoa suspeita “ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança”.

    Embora os quatro tenham sido intimados para prestar depoimento, e compareceram ao DP, os autos de reconhecimento foram apenas fotográficos. A justificativa ao longo do processo do primeiro assalto, por parte dos delegados, investigadores, Ministério Público e juiz, é a brecha do “se possível” disposta no inciso II do artigo 226: “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”.

    Celulares nunca periciados

    Em julho de 2017, o delegado Luciano de Siqueira Bracci concluiu a investigação iniciada pelo colega Marco Antonio Oliveira e indiciou os quatro por roubo e associação criminosa em relação ao primeiro assalto. O MPE (Ministério Público Estadual) acatou a denúncia.

    O promotor Rodrigo Pereira dos Reis levou em consideração a identificação dos veículos como pertencentes a Sandro, os autos de reconhecimento, as imagens do segundo assalto e aponta que “o crime foi cometido com emprego de arma de fogo, segundo narrativa firme e coesa da vítima”. A suposta arma nunca foi encontrada.

    O promotor ainda cita, sem detalhes ou provas, que “foi apurado” que os quatro teriam cometido “crimes patrimoniais” anteriores ao dia 17 de fevereiro de 2016 “nas cidades da região, notadamente roubos com a utilização de armamentos”. Reis solicitou a perícia dos celulares dos suspeitos, mas um mês depois o delegado informou que os aparelhos nunca foram apreendidos e periciados. Essa prova, que supostamente ligaria os quatro suspeitos, foi considerada na denúncia, no entanto, não foi apresentada.

    A defesa de Vinicius chegou requisitar mais de uma vez que fosse enviado um ofício à Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) para que o telefone dele fosse analisado e obtida a geolocalização nos dias que os assaltos aconteceram, mas o juiz Tiago Octaviani negou o pedido argumentando que “sequer há como concluir-se se tais aparelhos e linhas telefônicas estavam realmente na posse direta do réu no dia e horário apontados”.

    O advogado de Vinicius, Nugri Bernardo de Campos, argumenta que o sistema de justiça não respeitou as disposições do Código de Processo Penal. “Ele foi reconhecido sozinho, sem outras pessoas ao lado, com roupa de presidiário, e a vítima foi alertada pelo juiz que ele estava preso. Não é porque o artigo diz ‘se possível’ que a pessoa tem que ser colocada sozinha, ainda mais sendo induzida dessa forma”, declarou.

    O juiz Tiago Octaviani também negou o pedido de anulação do reconhecimento argumentando que “não havia qualquer possibilidade de se colocar outras pessoas aleatórias ao lado dos réus neste momento, uma vez que não havia sequer outras pessoas disponíveis neste Fórum para tanto ou mesmo pessoas disponíveis com fisionomias semelhantes com os réus, observando-se ainda a notória falta de estrutura local para a adoção de tal procedimento ora solicitado”.

    ‘Ele estava trabalhando comigo’

    Gerente de uma loja de tintas e morador da cidade de Mendonça há mais de 15 anos, Fabio Gomes conta que conhece Vinicius desde 2015, oportunidade em que começou a contar com os serviços dele como ajudante de pintor, e apresenta um possível álibi para o rapaz. “Nos dias que aconteceram os assaltos, eu tenho certeza que ele estava comigo pintando uma casa em Mendonça. A gente até tentou procurar por câmeras de segurança na rua, mas a gente não conseguiu”, explica.

    “É um absurdo ele estar preso esse tempo todo. É uma pessoa boa, de confiança. Não acharam nada na casa dele. No vídeo não dá pra ver quem é e num momento de tensão, que a pessoa fica nervosa, como ela vai guardar a fisionomia de alguém com tanta certeza?”, questiona Fabio.

    Para Fabio, a decisão do juíz foi “racista”. “Eram quatro acusados, dois brancos e dois negros. Foram condenar quem? Os negros. Para mim, eles agiram de forma racista”, lamenta.

    Vinicius e Carolina tinham sonho de abrir uma pizzaria em Mendonça (SP) | Foto: reprodução Facebook

    Vinicius era bem quisto na cidade, tanto que, além da declaração do colega Fábio, no processo constam cartas de recomendação de outros pintores da cidade e de umas empresas de eventos em que Vinicius atuou como animador de festas. Carolina conta que em meio ao “bico” e a tentativa de montar uma pizzaria, Vinicius estudava para ser funcionário público e na época queria ser agente penitenciário, porque era o concurso mais próximo para fazer. “Ele queria ser funcionário público como os pais foram para ter uma estabilidade para poder cuidar do irmão”.

    Ela conta que Vinicius tem um irmão de 38 anos com deficiência mental e problemas com dependência química. Desde 2013, ele estaria tentando ter judicialmente a tutela para cuidar dele, que está sob responsabilidade de uma tia, já que os pais são falecidos. “A gente teve que vender todo o investimento que a gente fez para a pizzaria para manter as custas do processo”, comenta Carolina.

    Amigos e parentes criaram uma página no Facebook onde postaram depoimentos em defesa de Vinicius e pedindo por justiça. Um deles é o da Juliana, amiga da época da adolescência. “Estou aqui para fazer um apelo para a justiça. Ele está preso há quase dois anos sem ter cometido crime”, afirma.

    Nesta terça-feira (13/8), um recurso de apelação da condenação foi julgado pela Justiça de SP e a pena de Vinícius foi reduzida de 9 anos para 7. A família pretende pedir a revisão do processo.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas