Famílias tentam provar inocência de 4 jovens presos suspeitos de roubar um Uber

    Tias, irmã e mãe juntam relatos de testemunhas e buscam prova para desmentir reconhecimento da vítima e versão dos PMs; segundo policiais, abordagem aconteceu pois eles estavam ao lado do carro abandonado

    A Polícia Militar do Estado de São Paulo prendeu quatro jovens no dia 10 de dezembro de 2018, no Jardim São Jorge, entre a zona oeste e zona sul de São Paulo. Os quatro andavam em uma rua próxima de onde um veículo roubado foi deixado, o que motivou a abordagem e, posteriormente, o reconhecimento feito pela vítima, um motorista do aplicativo de transportes Uber. Três dos acusados são negros e um é branco. A vítima, branca. Agora, familiares dos jovens se uniram para tentar provar que eles são inocentes.

    A empregada doméstica Luci Batista Santos, 40 anos, e mãe dos irmãos Fabrício Batista dos Santos e Pedro Henrique Batista dos Santos; a vendedora Luana de Almeida, 34, e a supervisora de logística Suelma de Almeida, 36, ambas tias de Washington Almeida Silva; e Talita, que está desempregada, irmã de Leandro Alencar de Lima e Silva, buscam juntas depoimentos e comprovações de que os quatro foram presos injustamente.

    A versão apresentada no B.O. (Boletim de Ocorrência) aponta que o motorista recebeu o chamado para uma corrida próximo ao Shopping Raposo Tavares quando os três homens o renderam. Mais para frente, ordenaram que ele parasse para um quarto homem entrar no veículo. Ele foi colocado no assoalho da parte de trás do veículo e liberado metros à frente, quando uma viatura o socorreu.

    Mais tarde, uma viatura da PM encontrou o veículo, modelo Renault Logan, parado na Rua Luíza Josefina Voiron – o motor ainda estava quente. Segundo os PMs, eles passaram a procurar por quatro suspeitos nas redondezas e, ao ver quatro homens “observando a ação policial”, decidiram abordá-los.

    Os outros policiais que socorreram a vítima o levaram até o local onde o carro estava e ele reconheceu “prontamente” os então abordados como sendo os suspeitos. Os quatro foram levados para a delegacia e, em novo reconhecimento, o motorista afirmou “com absoluta certeza” se tratarem dos homens que o roubaram.

    No entanto, as mulheres contam uma história diferente. Segundo elas, souberam o que aconteceu através de conversas com os jovens, que estão presos no CDP (Centro de Detenção Provisória) 2 de Osasco, com testemunhas e através de imagens obtidas por câmeras de segurança da rua onde o carro estava abandonado.

    As familiares contam que os quatro estavam em frente a casa onde Pedro e Fabrício moram com os pais desde as 18h. Ficaram por lá até 22h, dançando e ouvindo música nesse tempo. Decidiram sair para levar Washington até sua casa, que fica próxima, depois que o salão de cabeleireiro, que funciona no andar de cima da casa, fechou. O pai dos dois jovens havia falado sobre o som alto.

    “Passaram na rua do Washington e, na esquina da casa, a PM viu os quatro rapazes e os parou. Era uma abordagem de rotina, olhou documentos, mas disseram que tinha problema e eles precisavam ir na delegacia e levou os meninos”, conta Luci, mãe dos dois rapazes. “Estava fora de casa, meu marido estava lá. Os garotos chegaram 18h, o Leandro e o Washington, para ensaiar louvores para cantar no dia 24 de dezembro para um amigo que eles perderam. Era uma homenagem, todas as tardes se encontravam”, continua.

    Durante a abordagem, elas contam que a PM afirmou que o documento de um dos jovens estava com problemas e, por conta disso, eles precisavam ir até a delegacia. Os rapazes foram colocados em duas viaturas e levado até a rua onde estava o carro roubado. Retirados do carro, os PMs mandaram que eles parassem de costas para a rua e olhando o volante da viatura. Foi quando a vítima passou em outra viatura e fez o reconhecimento, contam.

    “A polícia estava procurando quatro caras, fomos atrás de filmagens e mostram os quatro que deixaram o carro, desceram a rua, levaram o estepe do carro. Como os garotos também estavam em quatro, pegaram eles”, explica Luana de Almeida, versão confirmada pela irmã, Suelma. As familiares conseguiram imagens de câmera de segurança. Apesar da imagem distante, elas alegam que é possível conseguir identificar não se tratar de seus parentes.

    Familiares lutam para provar inocência e libertar os jovens | Foto: Arquivo pessoal

    “Tem vídeo que mostra que eles [ladrões] saíram por uma travessa e foram para outra avenida. Também eram 4. Nenhum dos envolvidos tinha tênis claro, dois dos nossos tinham. A vítima reconheceu, mas não tinha nada com eles”, explica Suelma. “A gente conhece, sabemos que não são eles nas imagens, o jeito de andar, a roupa…”, completa Luana.

    Segundo o artigo 226 do código do Processo Penal, o reconhecimento de suspeitos de praticarem um crime deve ser feito com a vítima “convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida”, e não colocar pessoas aleatórias em sua frente para apontar ser, ou não, autor de um crime. Outra determinação prevista no código é colocar o suspeito junto de outras pessoas, de aparência física similares, para o reconhecimento ser feito – o que não houve neste caso.

    Durante o reconhecimento, o motorista do Uber reconheceu os quatro rapazes, inclusive apontando onde cada um estava no veículo: Pedro Henrique teria assumido o volante, enquanto Leandro e Washington entraram junto e Fabrício foi quem subiu no veículo depois. Porém, a mãe de Pedro explica que o filho nem sequer sabe dirigir.

    “O Pedro não sabe dirigir, nunca pegou em um volante. Tinha um carro em casa porque meu marido viu uma oportunidade boa, mas o Pedro ia tirar a carta só em janeiro”, explica Luci. “Agora é esperar para ver o que pode fazer. O dono do Uber está acusando que o Pedro era o condutor, que o Fabrício deu uma gravata, não sei como se está de costas e consegue ver quem é quem”, continua.

    Segundo a advogada Paloma Reis Tavares de Lima, integrante da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio da Juventude e que acompanha o caso, o direito de defesa dos jovens foi cerceado: “Na delegacia não foram colhidos seus depoimentos, assinaram sem ler. Washington chegou a pedir para ler, mas o policial disse para assinar e que tinha muita gente. Foi-lhes negado o direito de dizer que são inocentes, pois em momento algum manifestaram o direito de permanecer calados”, conta. “É um absurdo que alguns instrumentos jurídicos, como a audiência de custódia criada em 2015 e as medidas cautelares alternativas à prisão (Lei 12.403/11), que deveriam analisar as circunstâncias da prisão, com finalidades de evitar prisões desnecessárias, servem para o recrudescimento das prisões e contribuem para o crescimento do encarceramento em massa”, continua.

    A prisão foi confirmada em audiência de custódia feita no dia seguinte à prisão, definindo a transferência ao CDP 2 de Osasco, onde eles permanecem presos. Segundo Luci, os jovens seguem inconformados na prisão. “Fui visitar agora, o segundo domingo seguido. Visitei os quatro. O Pedro não está bem de saúde, acho que tá com pneumonia. Fazia uns dois meses que eles tinham acabado de chegar de viagem, foram no Sergipe para arrumar uns problemas na certidão de nascimento. Eles queriam arrumar os outros documentos para procurar emprego”, conta a mãe.

    Nem todas as mães têm a força de Luci. Luana e Suelma contam que sua irmã, mãe de Washington, tem sofrido desde a prisão do filho. “Minha irmã está muito mal, teve um surto. Não consegue entrar para vê-lo, desmaiou. Sem condições nenhuma, quem está vendo as coisas sou eu e minhas irmãs, ela está sem condições psicológicas”, diz Luana.

    A Ponte procurou a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, comandada pelo general João Camilo Pires de Campos, através de sua assessoria de imprensa terceirizada, a InPress, para esclarecer os detalhes da ocorrência que terminou com o reconhecimento e prisão dos jovens. Contudo, não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

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