Favela protesta por liberdade de jovem negro: ‘meu filho foi forjado’

    Família de Gabriel Apolinário, 18 anos, defende que PMs ‘plantaram’ mochila com drogas; protesto no Jardim São Luís, na zona sul de SP, pediu liberdade de jovem preso em julho

    Protesto na Rua José Manoel Camisa Nova, onde Gabriel foi abordado, segundo a família | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

    A cada passo que percorria, dona Zilma Apolinário, 59 anos, chamava a atenção de comerciantes e pessoas que passavam pela Rua José Manoel Camisa Nova, no Jardim São Luís, na zona sul da cidade de São Paulo. “Pega aqui, meu neto Gabriel foi preso injustamente”, dizia, ao entregar os folhetos com a foto do estudante Gabriel Apolinário Ribeiro, 18, preso em julho sob alegação de tráfico de drogas com base na palavra de policiais de que teriam encontrado uma mochila com drogas.

    Leia mais: Em carta, jovem negro preso afirma ser inocente e pede à mãe: ‘Reza por mim. Eu não estava traficando’

    “Olha, eu estou com o coração partido, fiquei com medo de não conseguir caminhar por aqui, mas eu vou lutar até acabar minha força porque ele é inocente”, desabafava a avó. Na tarde deste sábado (8/8), familiares, amigos e moradores do bairro, junto com a Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, que articula movimentos e pessoas para denunciar violência de Estado nas periferias, organizaram uma manifestação pedindo a liberdade do rapaz.

    Durante a confecção de cartazes para o ato, a consultora de vendas Danila Apolinário Gonçalves, 33, mãe de Gabriel, conta que ficou ainda mais revoltada quando leu a resposta do Ministério Público à reportagem da Ponte sobre o caso. “Como o promotor diz que tem indícios de prova se não teve investigação, se só foi usada a palavra dos policiais? Meu filho foi forjado”, criticou.

    Daniela Apolinário Gonçalves segura placa com foto do filho Gabriel | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

    Há um mês sem vê-lo, Danila conta que voltou a fumar e não consegue dormir. “Estou tendo crises de ansiedade, crises de pânico, não tem outra justificativa: prenderam meu filho porque ele é preto”, desabafou. “No boletim de ocorrência, falam que meu filho não concluiu a escola, mas ele ia para o segundo semestre da faculdade, ia trocar o curso de marketing por economia e a Justiça privou ele de tudo isso”, prosseguiu.

    De acordo com Mariana Janeiro, articuladora da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, o protesto é uma forma de mostrar que a periferia tem voz própria e precisa ser ouvida. “É uma forma de conscientizar também outras comunidades sobre o tamanho do problema, os cartazes são um desabafo dessas famílias, para que elas possam dar a sua versão dos fatos”, aponta.

    Raquel acompanhada das amigas escrevem cartaz com frase “preto, pobre e favelado tem que ser respeitado” | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

    Escrevendo a frase “preto, pobre e favelado precisa ser respeitado” em um cartaz, Raquel Luz, 19, amiga de Gabriel, afirma que “é decepcionante ter que pedir respeito pela nossa cor”. “Você não pode estar em qualquer espaço, se vestir como quiser, estar onde quiser porque você é abordado, preso, agredido na favela”, pontua. “A gente não aguenta mais isso”.

    Thiago Soares dos Santos, 21, vizinho e amigo de Gabriel, compartilha do mesmo sentimento. “Não tem um dia que eu não pense nele, é revoltante, poderia ter acontecido comigo também”, desabafa. As faixas e placas também pediam garantia de direitos aos moradores de favelas, cobravam respostas por mortes cometidas pela polícia e outros casos de pessoas negras presas sem provas.

    Com máscara branca e preta, a frente, dona Zilma Apolinário, 59, avó de Gabriel | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

    Por volta das 15h, os manifestantes percorreram a Rua José Manoel Camisa Nova em direção ao local em que o estudante tinha sido abordado. No trajeto, o funileiro Romeu da Mota Santos, 50, morador há mais de 20 anos no bairro, decidiu seguir o grupo. “Não conheço o Gabriel, mas é pelos meus filhos também porque pode acontecer com eles, a polícia vem aqui e em outras comunidades e faz o que quer”, critica. “A gente teme pelas nossas crianças”, diz.

    Em frente à Fábrica de Cultura na rua, uma policial mediadora, de colete azul, conversou com a organização do ato e ficou acordado que seria ocupada uma faixa para o protesto. A reportagem viu pelo menos seis viaturas da Força Tática e algumas motos da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas).

    Com gritos de “justiça”, “liberdade ao Gabriel” e “criminoso é quem forja”, os presentes chegaram a receber alguns aplausos de veículos que circulavam pela faixa livre. “Meu filho é estudante, não é traficante”, entoava Danila, mãe do rapaz.

    O grupo seguiu dando uma volta no quarteirão com fortes gritos pedindo justiça. Também alguns faziam barulho com apitos. Moradores de um condomínio residencial, chamado Porto Seguro, também se solidarizaram com o protesto, segurando algumas placas confeccionadas pelos manifestantes.

    Moradores do Condomínio Porto Seguro se solidarizam com protesto | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

    O ato se encerrou com gritos por liberdade e “vidas pretas também importam”.

    Entenda o caso

    O estudante Gabriel Apolinário foi preso por volta das 11h30 do dia 13 de julho, na rua José Manoel Camisa Nova, a poucos metros de distância do condomínio onde mora com a família, segundo a mãe. No entanto, no boletim de ocorrência indica que a prisão aconteceu na rua Nova Tuparoquera, a dois quilômetros da sua residência. 

    De acordo com registro da ocorrência no 92º DP (Parque Santo Antônio), os soldados Alex Bezerra da Silva e Hermes Vicente Ferreira Neto, ambos da 2ª Companhia do 1° Batalhão da PM, patrulhavam a região, quando receberem via rádio denúncia de tráfico de drogas, “lugar este bem conhecido pelos milicianos de reiterada traficância”.

    O rapaz foi abordado pela dupla de PMs, que afirmou não ter encontrado droga com o jovem. “Todavia, interpelando-o mais incisivamente ele acabou indicando ali nas proximidades, num matagal, uma mochila preta com listras vermelhas, tendo no interior daquela 208 papelotes com cocaína, 487 supositórios também com cocaína, 20 envólucros plásticos contendo maconha”, aponta o B.O.

    Outro trecho do documento aponta que Gabriel primeiramente negou e depois admitiu que traficava no local. A família, porém, atesta que o registro contradiz todo o histórico do rapaz, que é universitário, havia concluído recentemente seu período como jovem aprendiz no Esporte Clube Pinheiros e no mercado Mambo, e possuía cartões de crédito dados por seus pais. A Unip (Universidade Paulista) chegou a emitir documento atestando a frequência do jovem em um dos campi da universidade.

    Gabriel havia completado 18 anos em junho, um mês antes de ser preso | Foto: Arquivo pessoal

    A mãe de Gabriel contou à reportagem que seu filho havia sido abordado e ameaçado no mesmo local por policiais militares uma semana antes de ser preso. Em áudios extraídos do Whatsapp, Gabriel contou a um amigo toda a cena.

    “Ele colocou a pistola na minha costela e falou entra, entra, que você tá preso. Eu falei: eu não vou entrar não. Eu falei: você tá louco? Eu não tô fazendo nada aqui. Ele falou: você tá preso, você vai rodar”, diz Gabriel em um trecho do áudio.

    A mãe de Gabriel conseguiu um relato de uma vizinha que afirma que viu o rapaz saindo se despedindo da avó e saindo do condomínio às 10h30 do dia 13 de julho. “Ele estava de camiseta amarela, bermuda, tênis, fone de ouvido, máscara preta, a chave de casa e sem mochila. Saiu avisando sua avó, que estava ao meu lado, que iria correr. Moro no mesmo prédio que eles, por isso vi este momento em que ele saiu de casa”, escreveu.

    O Ministério Público, no entanto, ofereceu denúncia e pediu a prisão preventiva do estudante, que foi acatada pelo Tribunal de Justiça. À reportagem, por meio de nota, o promotor Luís Guilherme Gomes dos Reis Sampaio Garcia havia alegado que “para o oferecimento da denúncia bastam indícios da autoria e prova da materialidade (presentes nas palavras dos policiais, que não podem ser de antemão afastadas), sendo também requisitos para a decretação da prisão preventiva”.

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