Organizações mobilizam-se em todo o país para garantir a participação popular na construção de políticas de segurança eficazes e que respeitem os direitos humanos — discutidas por quem mais está sujeito à violência urbana

Polícia, prisão e bandido. Os três termos costumam vir à mente quando se pensa sobre segurança pública. Há, no entanto, muito mais em jogo nessa equação. No dia a dia, as populações dos territórios periféricos costumam ser as mais impactadas pelas políticas de segurança dos governantes. Tiroteios deixam crianças sem aulas e ônibus têm rotas mudadas para escapar de confrontos e operações da PM. Apesar disso, pouca gente entende que polícia é um serviço público — e que deveria ser visto como tal.
Instituições que entendem esse caráter mais amplo das políticas de segurança têm se fortalecido e discutido soluções integradas no Brasil. Entre elas estão os Fóruns Populares de Segurança Pública, que buscam incidir na discussão em diálogo com as comunidades mais diretamente afetadas pela violência.
Um dos desafios dos fóruns é justamente sensibilizar a sociedade sobre a necessidade dessa discussão mais ampla e democrática sobre segurança pública: estimular a participação social no debate. Por outro lado essas organizações buscam também ser ouvidas por governadores, secretários e tomadores de decisão para que suas proposições sejam efetivamente discutidas.
A importância dos fóruns, os desafios enfrentados por eles e suas principais ações são tema da série de reportagens produzidas pela Ponte em parceria com a Fundação Friedrich Ebert Stiftung – Brasil (FES).
A voz de quem vive a violência
Desvincular a ideia de que a segurança pública é um problema de polícia é um ponto de inflexão importante dos fóruns populares.
Dudu Ribeiro, cofundador e diretor-executivo da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, dá exemplos. Membro do Fórum Popular do Nordeste e da Bahia, Dudu conta que uma das frentes adotadas foi a avaliação do impacto dos tiroteios nas áreas escolares.
O objetivo era fazer com que a comunidade escolar e a secretaria de educação entendessem que não apenas durante as operações policiais existia um problema. A dimensão que isso provocava era maior: tinha impacto no rendimento escolar, na saúde mental dos estudantes, funcionários e professores, na segurança dos profissionais das escolas.
Um levantamento feito pelo O GLOBO em 2024 mostrou que das escolas municipais do Rio de Janeiro com pior resultado no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), 84% ficam em territórios conflagrados. Em Salvador, área de atuação dos Fóruns do Nordeste e da Bahia, 22 escolas municipais deixaram de funcionar no ano passado por conta dos tiroteios. Segundo o Correio 24, a situação afetou 7 mil alunos que chegaram a ficar um ou dois dias sem aula.
Outra ação tocada pelo Fórum do Nordeste foi verificar a quantidade de interrupções no transporte público. A ideia era parecida: mobilizar a Secretaria de Mobilidade e os sindicatos de patrões e trabalhadores para promover um debate público sobre o tema. Moradores dos bairros IAPI, Alto do Cruzeiro, Bairro da Paz e São Gonçalo, em Salvador, tiveram que conviver no ano passado com a suspensão temporária do transporte público. A circulação foi interrompida por uma onda de violência em que foi registrada também a queima de ônibus.
“Isso aí faz com que, sem desprezar as ações de operações policiais nessas áreas, nós possamos pensar para além dos atos específicos executados pela polícia”, defende Dudu.
Segurança cidadã
Esse tipo de atitude pode ser enquadrado na filosofia da segurança cidadã. O conceito, explica o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), Vitor Blotta, tem relação com o envolvimento da comunidade na questão da segurança pública. Ao fazer parte, a população passa a exercer a cidadania, afirma o pesquisador.
Duas palavras no inglês ajudam a compreender essa dimensão. A primeira é safety (segurança, em livre tradução), que diz respeito à segurança pessoal, de bens individuais. Para Vitor, a segurança cidadã está relacionada à security — que tem a mesma tradução. O termo, contudo, se refere a uma dimensão social, que trata do empoderamento de uma comunidade e sua relação com o poder público.
No entanto, a mera circulação de informações sobre esse tema pode produzir efeitos diferentes, como uma sensação generalizada de insegurança. Um dos exemplos ruins é o compartilhamento em grupos de mensagem de relatos sobre crimes. Muitas vezes, textos e imagens circulam sem qualquer checagem, sem que as pessoas saibam se o conteúdo é antigo ou recente, e sequer se realmente ocorreu nas redondezas. O que acaba apenas ampliando o medo da população.
“Isso gera um clima de insegurança. Eu deixo de frequentar aquele espaço, não quero que meu filho saia na rua. Só que eu não me mobilizo socialmente, comunitariamente, para enfrentar a questão”, alerta o pesquisador do NEV-USP.
Pensamento retrógrado
Além dessa barreira, o enfrentamento popular do tema passa por outras dificuldades. Uma delas, aponta o ex-Ouvidor das Polícias de São Paulo, Claudio Silva, é vencer o pensamento de que quem nunca entrou numa viatura não deve participar da discussão sobre segurança pública.
“Você [como policial] tem a legitimidade do Estado para poder atuar, inclusive atuar armado com força letal. Isso é muito poder. E esse poder não quer ser partilhado com as demais pessoas da sociedade, o que é muito grave, considerando que a Constituição da República de 88 é um chamado à participação cidadã”, diz.
Cláudio pontua que, sob o falso argumento de delicadeza do tema, por questão estratégica, a sociedade civil acaba sem acesso ao que o governo discute e produz para a segurança. Enquanto a caixa-preta não é aberta, a população é cada vez mais afetada pela violência, seja nos furtos de celulares ou nos casos em que mulheres são vítimas de feminicídio.
Em São Paulo, os casos de feminicídio bateram recorde no ano passado. Foram 250 mortes de mulheres, o maior número registrado pela Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP). “A pauta da segurança pública está sequestrada por um pensamento retrógrado, desatualizado e que tem colaborado para que as pessoas cada vez mais sejam vítimas desse sistema que não se atualiza e que não colabora para a verdadeira cidadania”, avalia Cláudio.
Como engajar?
O que as pessoas necessariamente estão esperando de uma agenda da segurança pública? Juliana Borges, coordenadora de articulação da Iniciativa Negra, acredita que a resposta geralmente vem ligada ao populismo penal: à atuação policial, em mais repressão e não necessariamente em soluções baseadas em dados. A resposta talvez esteja em construir e engajar as comunidades mais afetadas.
O Fórum de Segurança Pública de São Paulo, do qual a Iniciativa Negra faz parte, vem se formando por 23 organizações — que reúnem movimentos sociais, sociedade civil e pesquisadores — e tem como objetivo garantir a participação popular no debate sobre a segurança. Mas como fazer isso se disseminar e se tornar cada vez mais efetivo?
Juliana cita como exemplo o Sistema Único de Saúde (SUS), resultado da mobilização popular. “Nós podemos remontar até a década de 1950, em que você tinha os movimentos de mães, de mulheres, demandando posto de saúde e o movimento que cresce e volta no final da década de 70, 80. Você tem um processo de participação popular que culmina no SUS”, afirma ela.
Esse processo deveria ser replicado para a segurança pública, diz Juliana. O tema não pode estar restrito aos legisladores ou aos acadêmicos. “A população deve participar e isso deve servir como pressuposto de todas as normativas que falam de segurança pública no Brasil”, conclui a coordenadora de articulação da Iniciativa Negra.