Governo precisa mudar noção de segurança pública, diz nova integrante do Ministério da Justiça

Militante do movimento negro e da luta contra o genocídio, Tamires Sampaio estará à frente do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), criado em 2007 e hoje inativo

Tamires Sampaio participa de manifestação antirrascista | Foto: Divulgação

A nova coordenadora do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), indicada pelo futuro ministro da Justiça, Flávio Dino (PSB), é uma jovem advogada negra e moradora de Guaianases, bairro da periferia leste da cidade de São Paulo. Aos 30 anos, Tamires Sampaio tem a missão de liderar a iniciativa do governo Lula (PT) para diminuir os indicadores de criminalidade nas regiões metropolitanas mais violentas do Brasil.

Feminista negra, militante do coletivo Bem Viver SP e coordenadora da Frente Nacional Antirracista, Tamires já foi secretária adjunta de Segurança Cidadã na cidadde de Diadema (Grande SP) e é pesquisadora nas áreas de segurança pública, sistema de justiça criminal e racismo estrutural.

Em entrevista à Ponte, a nova integrante do ministério da Justiça faz uma análise dos principais desafios que terá dentro do governo federal, após quatro anos de bolsonarismo que fizeram retroceder as causas dos direitos humanos dentro das políticas de segurança pública. Segundo ela, um dos maiores desafios é cultural: o de construir uma noção da segurança pública baseada não nas ideias de repressão e violência, mas pensada “a partir da garantia de direitos da população, do acesso à saúde, educação cultura, moradia, geração de emprego, discussão de renda”.

Instituído em 2007, o Pronasci se propõe a atuar na prevenção, controle e repressão da criminalidade, articulando ações entre governo federal, estados e municípios.

Ponte – Como você recebeu o convite para coordenar o Pronasci, e como você enxerga o trabalho que deve desenvolver? 

Tamires Sampaio – O programa foi implementado na gestão do [ministro da Justiça] Tarso Genro e foi institucionalizado por meio de uma lei onde ele se consolidou. Essa lei ainda está vigente, mas o programa basicamente está inativo. Durante esses últimos anos existiu um processo de dessecamento completo do programa. Não tem orçamento pra tocar. Se você vai procurar. não vê nenhuma das 95 ações que foram implementadas no início do programa. Fui do grupo de transição, sendo a coordenadora relatora responsável por fazer o diagnóstico sobre esse programa.  Sou advogada, tenho mestrado em direito político e econômico. Tanto na graduação quanto no mestrado, eu pesquisei sobre segurança nessa perspectiva cidadã, da articulação, da garantia de direitos, do combate à desigualdade, da prevenção e combate à violência contra as mulheres, pela juventude negra. Tive a experiência, enquanto secretária adjunto de Segurança Cidadã,  de coordenar o programa Patrulha Maria da Penha. Enfim, estou muito empolgada de estar nessa função e estou me organizando para fazer uma série de diálogos de escuta com gestores, sejam os que participaram do governo federal ou de outros, municipais e estaduais.

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Ponte – Quais são os desafios mais imediatos assim que começar o governo Lula?

Tamires – Fazer o redesenho do programa e ver ações imediatas que a gente vai poder tomar no começo. A gente percebeu que tem um apagão de dados. A gente não tem acesso ao orçamento, que também foi absurdamente cortado. Passamos por um governo de morte, genocida. A área da segurança pública foi construída nos últimos anos numa perspectiva de violência, do enfrentamento, do armamento à população como um todo. Essa lógica do Bolsonaro, de ser um um presidente abertamente racista, misógino, que promoveu essa política, acaba criando um sentimento de autorização da violência para a população como um todo. Vamos fazer a reconstrução das políticas públicas, a construção desse programa de recuperação econômica do país. Acho que a gente também tem um outro desafio, que é cultural: combater essa noção da violência generalizada e de tentar construir a noção da segurança pública como sendo um ato construído a partir da garantia de direitos da população, do acesso à saúde, educação cultura, moradia, geração de emprego, discussão de renda.

Ponte – Quais os compromissos mais importantes que devem ser executados ao longo dos próximos quatro anos?

Tamires – Se fosse falar em relação ao Ministério da Justiça e Segurança Pública como um todo, tem uma série de ações que envolve a questão dos desarmamento, dos imigrantes, da política sobre drogas. Em relação ao Pronasci, o primeiro desafio é esse redesenho do programa, desde retomar essa articulação nos municípios. A partir do diagnóstico vimos que 95 ações eram muitas coisas, então [é melhor] pensar um número menor de ações para que de fato o ministério tenha condição de fazer a execução disso, com a fiscalização nos municípios e nos estados. Existe uma discussão de a gente redesenhar o Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social que foi aprovado. Fazer um novo plano que seja a base pros estados e para os municípios e aí a gente fazer uma discussão sobre a distribuição do orçamento para execução com base nos planos.

Ponte – É possível desmilitarizar as polícias no Brasil?

Tamires – Acho que a gente precisa discutir o que é a desmilitarização. A gente tem muito debate da palavra de ordem que é pelo fim da polícia. É tirar a palavra de ordem para concretizar isso em política pública. Como é que se desmilitariza? O que isso significa? Está baseado na formação dos agentes de segurança, está baseado na vinculação desses agentes com o Exército, está baseado no quê? Acho que esse é o primeiro ponto. A criação de um ciclo completo das polícias está baseada em uma regulamentação mais direta. Acho que essa possibilidade depende antes da gente fazer uma construção para além da palavra de ordem do que significa, na prática, esse processo de desmilitarização, porque eu acho que é uma discussão muito abstrata que a gente precisa aprofundar.

Ponte – Você acredita que as polícias, sobretudo militares, estão ‘bolsonarizadas’? E como reverter isso?

Tamires – Existe essa ideia de que a maioria dos agentes de seguranças militares são bolsonaristas. O presidente Lula foi eleito para governar o Brasil inteiro. A gente vai estar no Ministério da Justiça e Segurança Pública, que vai ter que se relacionar com todo mundo. Então eu acho que o nosso desafio agora é para além de pensar se são bolsonaristas ou não, é de ter uma política nacional para todos e todas. Uma política que tenha como base a segurança pública com cidadania: a garantia de direitos, o combate à desigualdade, a formação em direitos humanos para esses agentes. Métodos de controle e de punição, caso exista qualquer tipo de violência que seja promovida por esses agentes de segurança de forma exacerbada. Acho que a gente tem falado sobre isso: nosso desafio é governar para um país onde, depois de quatro anos de governo Bolsonaro, algumas parcelas têm essa lógica da autorização da violência, da autorização do racismo, da autorização da morte.  Nosso desafio é mostrar que não, não é possível naturalizar a morte de ninguém. A gente tem uma política de proteção à vida que é a segurança pública e que os agentes de segurança pública precisam estar  a serviço disso. 

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Ponte – O que fazer para desarmar a população?

Tamires – Bolsonaro publicou uma série de decretos e portarias que facilitam o porte e uso de armas. Uma das políticas, que inclusive já foram anunciadas pelo presidente Lula e o próprio o ministro Flávio Dino falou, é de revogação e reformulação de alguns desses decretos. Retomar uma campanha de conscientização, de discussão do controle do uso de armas. São equipamentos exclusivos do Estado, porque é quem tem de fato agentes que são formados, forjados para utilização desses equipamentos e não faz sentido civis terem acesso a isso. 

Ponte – No Brasil tem caído o número de homicídios. A que você atribuiu a isso e como seguir reduzindo?

Tamires – De fato  dizem que o número de homicídios diminuiu, mas o número de homicídios contra mulheres negras e a população negra em geral aumentou.  Acho que isso é sintomático de um país onde o racismo é estrutural. Um país em que a gente viu ampliar essa perspectiva da naturalização da violência contra esses corpos negros periféricos. Acho que é fundamental nesse sentido essa retomada das políticas preventivas e programas como Juventude Viva para o fortalecimento nesta área.  Precisamos garantir acesso a espaço de cultura e lazer para juventude, nessa noção de que é com a garantia de direitos que se combate a desigualdade.

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Ponte – Flávio Dino falou em valorar os Estados onde a polícia usar câmera corporal. O que fazer para que os governadores implementem essa medida?

Tamires – O que o Flávio Dino falou é um conjunto de medidas a serem tomadas para reduzir a letalidade. O grupo de transição fez uma discussão sobre  a construção de uma doutrina nacional do uso da força e acho que isso pode ajudar nesse processo de controle das ações violentas e das mortes. Existe uma pauta que é histórica do movimento negro em relação ao fim dos autos de resistência, tem até um projeto de lei que que está no Congresso Nacional sobre este assunto. O uso das bodycams acho que é fundamental. Aqui em São Paulo a gente viu na prática o quanto que isso é uma medida muito eficaz para redução da letalidade, da violência. Então construir um processo de nacionalização é fundamental para isso. Existia um projeto do Pronasci para o uso de câmaras, mas que não conseguiu ir para frente. Quando estive com os GCMs [em Diadema], existia um debate assim, inclusive sobre câmaras em outros espaços para garantir esse maior controle das ações dos agentes de segurança.

Ponte – Como você enxerga atualmente o sistema carcerário, em especial os presídios federais?

Tamires – Eu não estarei no Depen [Departamento Penitenciário Nacional], não sou responsável por essa parte, então não me sinto muito confortável para responder. O que posso dizer é que dentro do Pronasci tem uma discussão sobre a ação, junto com os familiares dos presos, que envolve esse debate de formação mesmo, de humanização, de diálogo com os familiares. Existem várias denúncias da forma como esses familiares são tratados. É tentar fazer essa articulação entre educação, formação, cultura e a relação com os familiares nessa perspectiva do acesso à cidadania, da garantia de direitos. 

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Ponte – Você vislumbrava exercer um cargo deste dentro do Ministério da Justiça com menos de 30 anos?

Tamires – Sou uma pessoa que teve a vida transformada por política pública, pois sou estudante do Prouni, fiz mestrado pela Capes. A casa que eu moro é uma política pública de habitação. Sou uma militante do movimento negro forjada no movimento que luta contra o genocídio, pela redução da violência, pela construção de uma nova segurança. Ter tido essa oportunidade de estudar e estar num espaço de coordenação de um programa que é voltado para redução da violência, para construção de ações preventivas e construção de uma segurança cidadã, é simbólico. Isso dá um sinal que essa é uma gestão que tem um compromisso irrestrito com essa pauta e que vai ser prioridade.

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