Grupos cobram que Justiça revogue autorização para incineração de ossadas

    Mais de 1,6 mil restos mortais estão no local, citado na Comissão Nacional da Verdade como ‘parte do sistema de desaparecimento da ditadura militar’

    Parentes de pessoas desaparecidas protestaram contra decisão | Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    Grupos ligados aos Direitos Humanos protocolaram uma petição no Fórum João Mendes, no centro de São Paulo, em que pedem a revogação da autorização judicial que libera a Prefeitura a incinerar 1,6 mil ossadas no ossuário do cemitério municipal da Quarta Parada, na região da Água Rasa, zona leste. Os restos mortais em questão foram exumados na necrópole entre 19 de abril de 1941 e 17 de fevereiro de 2000, segundo documento da Prefeitura. E estão em espaço que integrava ‘sistema de desaparecimento da ditadura militar’, segundo a Comissão da Verdade.

    No entendimento das entidades, a cremação dos ossos é um atentando aos direitos humanos, bem como atrapalha a busca de familiares por entes desaparecidos e que possam ter sido enterrados como indigentes. Ainda pontam que haverá interferência direta no esclarecimento de casos ligados à ditadura militar (1964-1985). A petição foi endereçada à 2ª Vara de Registros Públicos.

    “A Comissão da Verdade da Prefeitura de São Paulo em 2016 comprovou que os cemitérios municipais eram usados para fazer desparecimentos de corpos. Corpos de militantes políticos, mas também [vítimas] de esquadrão da morte, de não identificados, e muitas vezes de cadáveres com identidades trocadas. Então, os cemitérios também faziam parte dessa cadeia de desaparecimentos. É muito temerário queimar essas ossadas porque elas abrangem o tempo da ditadura militar e com isso você pode queimar materialidade de crimes”, diz o advogado Pádua Fernandes, membro do IPDMS (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais) e um dos peticionários.

    Em um trecho do relatório da Comissão Nacional da Verdade, o cemitério da Quarta Parada é mencionado como parte do sistema de desaparecimento da ditadura militar. Segundo Dimitri Sales, outro defensor que auxiliou na elaboração da petição, a Prefeitura só não seguiu a ordem judicial no crematório da Vila Alpina, na zona leste, pela falta de um alvará.

    “A Prefeitura deve retomar o trabalho que a legislação obriga. Ela tem que identificar as ossadas e tentar localizar as famílias. O município tem a obrigação de zelar, identificar e comunicar as famílias”, afirma Sales, que é presidente do Instituto Latino Americano de Direitos Humanos.

    Para o grupo, a incineração das ossadas já faria parte de um primeiro procedimento para a concessão da administração dos cemitérios para a iniciativa privada, como pretendido pelo PSDB. A gestão municipal, chefiada por Bruno Covas (PSDB), nega que entre ossadas estejam indigentes ou desaparecidos políticos, e que a ação visa a liberação de espaço.

    Pedido baseado em norma antiga

    Os autores da petição contestam a forma como a Prefeitura elaborou seu pedido à Justiça. Segundo eles, a gestão tucana teria se baseado numa norma de 1993 da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, em que as exigências para a cremação são menores do que uma outra norma, esta de 2006.

    O provimento nº 24/1993, o qual a Prefeitura teria se baseado, versa sobre os procedimentos adotados para a autorização de cremação de ossadas sem qualquer identificação, que trata de ossadas cuja a titularidade não foi, por razão alheia ao poder público, identificadas por qualquer meio. Enquanto que o provimento nº 22/2006 destina-se regular os procedimentos que autorizam a cremação de ossadas identificadas, porém não reclamadas por quem de direito. Nesse caso, é imposta restrições para que familiares sejam notificados sobre os restos mortais.

    Em 2005, durante a gestão de José Serra (PSDB) ossadas que estavam no ossuário da Quarta Parada foram incineradas no Vila Alpina.

    O ato em frente ao Fórum João Mendes também contou com familiares que buscam por seus filhos e irmãos que desapareceram nos últimos anos. Para Mirian Rodrigues Torres, de 55 anos, que procura pelo filho Jefferson Rodrigues Torres, que tinha 24 anos quando sumiu em 13 de maio de 2014, a Prefeitura não pensa no sofrimento das famílias ao requisitar a incineração dos ossos.

    “Eu acho que é um ato de desacato ao ser humano. Nós temos identidade, nós votamos. Se nós temos isso, então para que serve ter identidade. Nós, familiares de pessoas desaparecidas, nós sofremos . Nós somos doentes, nós vivemos com depressão, não conseguimos trabalhar. Nosso pensamento é 24 horas em nosso filho, não existe outro pensamento, outro objetivo. Um filho é um sonho nosso. Essas ossadas significam muito. É um desrespeito com a gente que procura os filhos. Eu não aceito isso”.

    “No Brasil, existe uma tradição horrorosa de fazer as pessoas desapareceram”, afirmou José Luiz Del Roio, uma das vítimas da ditadura, e que procura sua esposa Isis Dias, desaparecida política, à época, até os dias de hoje.

    Outro lado

    Em nota, o Serviço Funerário do Município de São Paulo informou que o “procedimento não é inédito, tendo sido feito pela última vez em 2005, no Cemitério Quarta Parada, quando foram cremados 2.117 ossos. A prática não incide em atentado à memória e é regulamentada pelo provimento n°24/1993, da Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo”.

    Segundo o a nota, o serviço ressalta que este procedimento “é necessário tanto para proteção ambiental quanto para criar espaço para novos sepultamentos”. “O SFMSP recebeu autorização da Justiça e apenas aguarda a expedição do alvará para que promova a cremação de aproximadamente 1.600 ossadas na necrópole”, sustenta, chamando as ossadas de “objeto de comisso, ou seja, são provenientes de túmulos que foram abandonados e retornam à Prefeitura”.

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