Guardas querem fechar casa de cultura e instalar base da GCM no lugar

    “Colocar repressão no lugar de cultura é falência enquanto sociedade”, denuncia professor da Casa Cultural Hip Hop Jaçanã, em SP, invadida por guardas sem mandado

    Festa do Dia das Crianças, em outubro de 2019, na Casa Cultural Hip Hop Jaçanã | Foto: @contonope / Casa Cultural Hip Hop Jaçanã

    As árvores no entorno e os grafites coloridos no espaço acolhem há cinco anos saraus, aulas de música, de dança, contação de histórias, eventos, horta e um cursinho popular no bairro da Vila Albertina, periferia da zona norte da capital paulista. Uma das diversas mãos que ajudou a construir o local, o professor de Filosofia e ativista Davi Albuquerque, 36 anos, é enfático ao definir a ocupação Casa Cultural Hip Hop Jaçanã: “é um espaço de vida”.

    Com as atividades presenciais suspensas por conta da pandemia do novo coronavírus, educadores e artistas contam que foram surpreendidos quando viram os cadeados da casa destruídos há uma semana, em 18 de junho, e agentes da Guarda Civil Metropolitana apareceram no local sem mandado judicial. “A gente está há um ano construindo uma política pública para todas as ocupações culturais da cidade de São Paulo, a casa foi reconhecida como espaço de cultura e agora a gente sofre esses ataques?”, questiona Davi.

    Davi se refere a uma vitória junto à secretaria municipal de Cultura, quando, em 4 de junho, a ocupação foi reconhecida pela pasta num edital de Mapeamento e Credenciamento de Gestão Comunitária de Espaços Públicos Ociosos. Ao total, 17 ocupações foram beneficiadas, conforme publicação feita no Diário Oficial, após uma luta que se iniciou em 2013, com o Bloco de Ocupações do Movimento Cultural das Periferias.

    O próximo passo, segundo Davi, é estruturar um decreto em que, além do reconhecimento dos espaços, seja mantida a gestão pelos coletivos. “O que a gente está tecendo com a construção desse decreto é para que todos os prédios [com ocupações culturais] que sejam da Prefeitura já passem automaticamente a titularidade para a secretaria municipal de Cultura, para que a gente tenha uma garantia jurídica, e a gestão compartilhada”, explica.

    Porém, no mesmo mês e dois dias antes de a GCM aparecer no local, a Coordenadoria de Gestão do Patrimônio Imobiliário, responsável por gerir as áreas de propriedade do município, transferiu o imóvel para a secretaria municipal de Segurança Urbana.

    Em 2017, a pasta entrou com um pedido à coordenadoria para que o espaço fosse cedido à construção de uma inspetoria regional da GCM.

    Projeto da inspetoria regional que a GCM pretende construir no local onde funciona a ocupação cultural | Foto: Reprodução

    Uma justificativa mencionada em um dos documentos é “a localização estratégica para atendimentos de próprios municipais da região, atendimento a demandas, tais como: AMA’s, UBS’s, cemitérios, Prefeitura Regional (em diversas operações: apoio aos agentes na fiscalização de bares, comércio irregular, zeladoria urbana), EMEI’s, EMEF’s, escola com alunos em liberdade assistida e segurança dos munícipes”.

    A ideia contou com o apoio do então deputado federal, hoje senador, Major Olimpio (PSL-SP), que enviou um ofício, em setembro de 2017, ao então prefeito, atual governador do estado, João Doria (PSDB).

    A Ponte teve acesso aos documentos do processo administrativo no qual a pasta em nenhum momento menciona que existe uma casa cultural no prédio do antigo Telecentro, embora as imagens usadas e reproduzidas do Google Street View mostrem a fachada pintada com os grafites da casa.

    Para o professor Davi, a implantação de uma unidade da GCM no lugar da ocupação demonstra que “o Estado acha que segurança pública é sinônimo de mais de polícia, mas não é, segurança pública é mais ampla”. A menos de 300 metros da casa, há uma delegacia da Polícia Civil, o 73º DP (Jaçanã).

    “A gente pode entender a cultura como um processo de segurança pública”, argumenta. “Com um espaço de cultura, você tem uma opção para a juventude periférica que não seja o crime”, explica Davi. “Colocar um espaço de repressão no lugar de um espaço de cultura é a nossa falência total enquanto sociedade”.

    “É uma forma de colocar mais policiamento na quebrada para gerar mais repressão, porque é isso que a polícia faz aqui”, complementa a estudante Yasmim Lopes, 18, que frequenta o espaço desde 2019 e mora na região. Para ela, apesar de a região ter um CEU (Centro Educacional Unificado) e uma Fábrica de Cultura, ainda é insuficiente comparado ao centro da capital. “A Casa supre o que o Estado não está oferecendo, é da quebrada para a própria quebrada”, enfatiza.

    De acordo com Davi, cerca de 12 coletivos se organizam e oferecem uma programação de atividades todos os dias, em que aproximadamente 300 pessoas participam por mês. Durante a pandemia, as aulas têm sido online e o espaço virou polo de doação de cestas básicas.

    A estudante Janaína Orlandim, 18 anos, lembra com entusiasmo das aulas do cursinho popular na casa. “Eu ia depois da escola e logo a gente colocava as mesas em roda, olhando um no olho do outro, debatendo vários assuntos e não só engolindo conteúdo para o vestibular”, aponta. “Eu cresci muito ali como pessoa, por isso quero estar presente para continuar nesse espaço que é transformador”.

    Tanto Yasmin quanto Janaína, que participaram do cursinho, passaram neste ano em universidades públicas. Yasmim estuda Gestão Ambiental na Universidade de São Paulo e Janaína, Pedagogia na Universidade Federal de São Paulo.

    “No começo, eu achei que era impossível para mim, mas decidi bater de frente, porque a gente tem que ocupar o lugares que são nossos por direito, estar em cargos altos, em cargos políticos”, afirma Yasmim.

    O que diz a Prefeitura

    A Ponte questionou a secretaria municipal de Segurança Urbana sobre o processo de transferência do prédio e se havia diálogo com a secretaria municipal de Cultura em relação ao edital. Também perguntamos à pasta da Cultura sobre o assunto.

    Em nota, a Prefeitura declarou que a Casa de Cultura Hip Hop Jaçanã “terá sua utilização mantida para fins culturais” e que a secretaria de Segurança Urbana vai “reanalisar o processo  que  previa a instalação de uma inspetoria regional da GCM no local”.

    A reportagem também procurou o senador Major Olímpio a respeito do ofício, mas não teve resposta até a publicação.

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