Há 8 meses, Cláudio tem provas de que não cometeu um roubo, mas foi preso e condenado

    Juíza não analisou vídeo que poderia provar que motorista estava distante 30 km na hora do crime; em segunda instância, procuradora de Justiça pediu absolvição

    Cláudio trabalha como motorista e é dono de adega junto da companheira | Foto: arquivo pessoal

    O motorista Cláudio Eduardo Leandro Rocha, 40 anos, está preso há nove meses na penitenciária de Potim, cidade no interior de São Paulo. Ele foi condenado a 9 anos e 26 dias pelo roubo de uma igreja ocorrido no dia 16 de julho de 2019, em São Miguel, zona leste da cidade de São Paulo. Naquele mesmo dia, o motorista estava a 30 quilômetros dali, no centro da cidade, sendo atendido na Defensoria Pública. Mesmo sem provas de ter praticado o crime, e apresentando imagens e documentos que poderiam ajudar a inocentá-lo, acabou condenado.

    Desde setembro de 2019, antes mesmo de ser sentenciado, a Justiça teve acesso às imagens de câmera de segurança e documentos que confirmam a ida de Cláudio à Defensoria. Em um primeiro momento, as imagens não foram passadas pelo sistema da Polícia Civil à Justiça, o que ocorreu poucos dias antes de sua audiência. Mesmo com o vídeo, a juíza considerou que ele era um dos três homens que roubaram R$ 4 mil em dinheiro e R$ 1.086 em cheques da Igreja Evangélica Pentecostal o Brasil para Cristo.

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    A esposa do motorista, Sabrina Moura de Oliveira, 24 anos, confirma que estava com ele naquela manhã. Antes de chegarem no prédio da Defensoria Pública, os dois ainda passaram em uma agência bancária e tiraram um comprovante.

    “Minutos antes de chegarmos na Defensoria passamos na agência do Bradesco e tiramos um extrato porque pedem extrato dos três últimos meses”, relembra. “As imagens mostram a gente chegando às 7h59 e saindo por volta das 9h. A Defensoria é na Boa Vista e o assalto, por volta das 8h, foi na zona leste, em São Miguel”, resume.

    A mulher explica que a prisão de Cláudio afetou a vida dos três filhos dele, dois com a ex-companheira e o filho de três anos que os dois têm. “Temos um filho que sente muito a falta do pai. Ele quem levava meu filho pra escolinha. Além do meu filho, ele tem mais dois que sentem a falta dele”, conta.

    Carta em que Cláudio fala da situação da comida em Potim | Foto: reprodução

    A prisão interferiu na renda da casa. “Temos uma adega. Ele trabalhava de noite e eu durante o dia. Vendo uns 45% menos. Sinto muita falta dele em casa porque era ele que me ajudava. Era um ajudando o outro, trabalhávamos juntos. Foi bem difícil no começo”, diz.

    Dentro da penitenciária, Cláudio tem relatado uma vida difícil. Em carta, ele descreve a situação. “Domingo, vida, estava cheio de fome, com saudade daquela visita, daquela boa comida que minha esposa faz. Hoje meu almoço foi quatro laranjas e um pão”, contou para Sabrina, em carta compartilhada com a reportagem.

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    O motorista explicou que não era para a companheira mandar mortadela ou maionese, pois os funcionários estavam “jogando fora a alimentação”. “Estamos passando fome aqui”, confessou.

    “Lá dentro é terrível. Ele falou que agora está tudo mais difícil. A comida é precária. Ele sobrevive porque Deus está ajudando. E está lá sem ter feito nada”, lamenta a esposa.

    Passo a passo até a condenação

    No dia 16 de julho, o pastor abria a igreja às 8h quando foi abordado por dois homens armados. Eles usavam bonés. Um deles foi direto ao cofre e pegou o dinheiro. Depois, eles escaparam em um veículo Fiat Palio de cor vermelha. Outro homem dirigia o veículo, que estava na espera para a fuga do trio.

    Testemunhas do crime anotaram a placa de dois veículos desse modelo, um da cor vermelha, visto no dia do roubo, e outro de cor preta, que teria sido visto na região alguns dias antes. O segundo carro é da irmã de Cláudio, o que fez a Polícia Civil investigar a origem e quem costumava dirigir o veículo. O 22º DP (São Miguel) assumiu a apuração do caso.

    O motorista, que dirige ônibus em uma linha na zona leste da capital paulista, foi levado à delegacia. Ele argumentou que estava na Defensoria Pública no dia 16 de julho ao lado da esposa. Os outros dois homens envolvidos no crime já haviam sido identificados, um deles era frequentador da igreja.

    Carro usado no crime passa pela igreja às 8h06 | Foto: Reprodução

    O pastor vítima do crime já havia reconhecido Cláudio por foto, segundo consta no inquérito policial. Quando o motorista foi à unidade, o homem confirmou o reconhecimento anterior. Com base nisso, a Polícia Civil determinou a prisão de Cláudio.

    Ao longo da apuração, os policiais usaram como base a confissão um dos três autores para embasar sua prisão. Segundo ele, Cláudio sabia do crime, tinha informações do que seria feito. Tal fato fez com que o delegado Moisés Leite Tavares considerasse que, mesmo sem estar no local, o motorista estivesse ligado ao crime.

    A autoridade policial já tinha conhecimento dos vídeos e documentos da Defensoria Pública. Segundo Moisés, a investigação não o exclui pois teria concorrido no crime ao obter “informações privilegiadas, planejamento e execução do roubo, conforme restou demonstrado”.

    “A alegação apresentada de que no momento dos fatos estaria em outro lugar não descarta a sua atuação acompanhando o desdobramento fatídico e de modo indireto”, alegou o delegado.

    Suspeitam passam e, para polícia, Cláudio é o de boné vermelho | Foto: Reprodução

    A promotora de Justiça substituta Natália Rosalem Cardoso já havia pedido a prisão temporária dos três homens em 27 de julho e a juíza Tamara Priscila Tocci acatou.

    Natália argumentou que “há fundados indícios de que o representado praticou o crime apurado, tanto que sua irmã é a proprietária do veículo utilizado para o crime e foi reconhecido pelas vítimas”. No entanto, o veículo da mulher é preto, enquanto o usado no crime é vermelho.

    Em 2 de agosto, o delegado encerrou a investigação e indiciou Cláudio junto de outros dois homens. Pediu sua prisão preventiva, quando não há prazo limite e a pessoa aguarda até o julgamento do caso. O promotor Paulo Rogério Costa fez o mesmo pedido ao juiz Pedro Luiz Fernandes Nery Rafael, que determinou a prisão preventiva.

    Na cadeia, a condenação

    O MP denunciou Cláudio por roubo duas semanas depois, em documento assinado pelo promotor Héracles Antonio Peranovich. Ele se baseou no reconhecimento do pastor e de outra vítima do crime. Colocou Cláudio como o homem que usava uma arma e anunciou o roubo. Para ele, havia materialidade e autoria “cabalmente comprovadas”.

    A defesa do motorista questionou que, até aquele momento, não constava nos documentos da investigação as imagens da câmera de segurança da Defensoria Pública. Segundo eles, a juíza Giovana Furtado de Oliveira, que acatou a denúncia, não teve acesso ao material.

    Câmera registra quando Cláudio entra na Defensoria com Sabrina às 7h58 | Foto: Reprodução

    “[A defesa] Requer a vinda das imagens referentes ao acusado Cláudio Eduardo na Defensoria Pública dia 16 de julho de 2019, uma vez que a Autoridade Policial mencionou no Inquérito que havia apreendido o material em mídia DVD”, solicitou o advogado Paulo Evângelos Loukantopoulos, 50 anos.

    Ainda com o envio da prova, a Justiça decidiu condená-lo. A juíza Giovana Furtado de Oliveira considerou que Cláudio sabia onde estava o cofre da igreja e é quem roubou os R$ 4 mil em dinheiro e R$ 1.080 em cheque. Citou que havia um veículo Fiat Palio preto parado perto da igreja “poucos dias antes do roubo” como prova de sua participação.

    “A versão exculpatória fornecida pelo acusado Cláudio não restou comprovada em juízo”, definiu. No entanto, ela se referia somente a documentos obtidos na Defensoria, sem analisar os registros em vídeo.

    Ambos deixam o local às 9h19 | Foto: Reprodução

    “Houve um erro. Identificamos que as imagens não estavam no processo. Falei com o delegado e ele mesmo reconheceu. Mandou, na minha frente, que fosse reenviado”, explica Loukantopoulos, em entrevista à Ponte.

    O advogado, então, entrou com recurso em segunda instância para reverter a decisão. “Entrei com apelação dizendo que a juíza não teria se atentado ao detalhe, ignorou prova essencial do processo. É muito grave isso”, diz. “Houve um erro judicial, não vou fazer nenhum comentário mais forte, mas é isso”, resume.

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    Desde o dia 8 de novembro de 2019, o defensor tenta, em segunda instância, provar a inocência de Cláudio. No dia 27 de janeiro deste ano, a procuradora de Justiça Jaqueline Mara Lorenzetti Martinelli pediu a absolvição de Cláudio.

    Segundo ela, as imagens da Defensoria Pública, mesmo que não sejam nítidas, confirmam a ida de Cláudio ao local, no centro de São Paulo, no mesmo horário em que o roubo acontecia em São Miguel.

    “A douta magistrada, em sua sentença, nada mencionou acerca das gravações extraídas das câmeras de segurança da Defensoria Pública onde claramente se pode confirmar que o réu Cláudio ali esteve presente no mesmo dia e horário do delito, reforçando a prova de seu álibi já indicada”, sustenta Martinelli.

    Defesa compara corte de cabelo de suspeito com Cláudio e com imagem feita na Defensoria | Foto: Reprodução

    A procuradora ainda levanta outro argumento da defesa, ao comparar as imagens de câmera de segurança de casa próxima à igreja. Nela, dois indivíduos de boné aparecem antes do roubo.

    Um deles, de boné vermelho, é apontado pela Polícia Civil e pelo pastor vítima do crime como sendo Cláudio. Contudo, o homem possui corte com cabelo que aparece fora da cobertura do boné, enquanto o motorista possui corte careca nas laterais da cabeça.

    “Confrontando tais imagens, há que se concluir não se tratar da mesma pessoa. O agente roubador, indicado como sendo ele (boné vermelho), possuía cabelo em toda a cabeça, diversamente do réu Cláudio, que somente tinha cabelo na parte superior, nessa mesma data”, justifica.

    Juíza ‘simplesmente ignorou’ as imagens

    O advogado criminalista André Lozano, coordenador do laboratório de ciências criminais do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), analisou o processo a pedido da Ponte.

    Segundo ele, os elementos levados pela defesa do motorista não foram analisados corretamente na hora da juíza sentenciá-lo. “Isso não foi utilizado no julgamento da doutora Giovana. Ela simplesmente ignorou esse fato”, afirma.

    Foto de David (à esq.) com Cláudio (à dir.) é usada no processo para traçar vínculo entre eles | Foto: Reprodução

    Lozano pontua que as imagens são prova de que Cláudio estaria a 30 km do local do crime na hora em que a igreja foi roubada. Além disso, corrobora com a versão da defesa, acolhida pelo MP em segunda instância, referente ao corte de cabelo do motorista em relação ao suspeito.

    “Pelas imagens é possível ver que a pessoa indicada como Cláudio teria o mesmo corte de cabelo [do que ele] e também não estaria de boné”, afirma o advogado, ao citar um dos três homens, que usava um boné de cor vermelha para roubar o dinheiro e o cheque da igreja.

    Outro lado

    A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, o Ministério Público Estadual e o Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a investigação e o processo que levaram Cláudio para a cadeia.

    Segundo a secretaria, o homem foi “reconhecido fotograficamente e pessoalmente pelas vítimas, assim como seu veículo”. “A autoridade policial solicitou pela prisão temporária do homem que foi decretada pelo Poder Judiciário. As imagens citadas constam do inquérito policial que será apreciado pela Justiça”, afirma a pasta, em nota enviada pela sua assessoria de imprensa terceirizada, a InPress.

    Já o TJ afirmou que “não se manifesta em questões judiciais. Para tanto, existem os recursos e/ou representações pertinentes que cabem ao advogado da parte”. Também disse que os magistrados são impossibilitados de dar entrevistas conforme art. 36 da Lei Orgânica da Magistratura.

    Até o momento, o MP não respondeu aos pedidos de explicações e de entrevista com o promotor Héracles Antonio Peranovich, responsável pela denúncia de Cláudio à Justiça.

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