‘Histórias que não escrevi’ mostra como a periferia se vê

    Livro escrito por adolescentes do Capão Redondo nasce dentro de curso de produção audiovisual ministrado em ONG da zona sul de São Paulo

    Da esquerda para a direita, Talita Leandro, Luan Tolentino, Estêvão Leandro e Camila Santana, autores do livro “Histórias que não escrevi”. | Foto: Rogério Gonzaga

    Quinze jovens reunidos em torno de três mesas debatiam as escolhas para a construção do roteiro e do processo de gravação, apuração e checagem das informações coletadas. Assim começava mais uma reunião de planejamento da turma que realiza o segundo módulo do curso de Produção Audiovisual no Centro Jovem de Comunicação. “Manda todas as informações que vocês levantaram. Personagens, especialistas, vítimas, tudo!”, ordena André Luiz, 21 anos, coordenador e idealizador do curso. O projeto rendeu o prêmio Jovem em Destaque, em 2016, realizado pela Câmara Municipal de São Paulo.

    A turma faz parte de um projeto criado há cinco anos, com a intenção de valorizar o lado pouco mostrado do Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, por meio  do uso de ferramentas multimídia, a TV DOC. O projeto surgiu a partir de um coletivo de jovens comunicadores que usavam as redes sociais para divulgação do conteúdo criado, mas rapidamente passou a ser um método de formação.

    Inspirado na metologia de Paulo Freire e nos trabalhos realizados no CIEJA Campo Limpo (Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos), também na zona sul, o que antes era uma oficina itinerante de apenas três meses, chamada TV DOC Inclui, agora realiza o segundo módulo do curso de duração de um ano.

    “A gente bolou uma metodologia que fosse um pouco mais aberta e não tivesse tanto a figura do professor e aluno. Como a gente não tinha bagagem técnica pra dar um curso de cinema, pensamos em usar o audiovisual como ferramenta pra discutir outros assuntos como racismo, feminismo, e por ai vai”, explica André Luiz.

    Tanto André, quanto Rogério Gonzaga, que também faz parte da coordenação do curso, buscam provocar nos alunos reflexões mais profundas. Rogério conta que, por morar no Capão, sempre ouve dois tipos de perguntas: a primeira é se ele conhece o Mano Brown e a segunda, se já foi assaltado. Mas ambos sabem que a realidade na periferia é muito mais complexa e a verdadeira violência é velada.

    Durante a reunião de planejamento os alunos foram desafiados a levantar possíveis vítimas de violência no bairro. Todos conheciam alguém que já havia sido assaltado. O facilitador da oficina, André, provoca: “E o Estado? Não violenta o morador? Não prepara um caminho pra gente ser mão de obra barata desde cedo? E se a gente foge disso, ou a gente é especial, ou é marginal. Se a câmera é uma arma, não dá pra bater no Estado?”.

    O encerramento do primeiro módulo do curso foi dia 23 de agosto, com direito a formatura e lançamento do livro escrito pelos próprios alunos do curso, “Histórias que não escrevi”. O evento aconteceu nas dependências do NADI (Núcleo Assistencial de Desenvolvimento Integral), uma organização sem fins lucrativos com foco no desenvolvimento do protagonismo Infanto-Juvenil, e que é parceira do TV DOC recebendo a turma do Centro Jovem de Comunicação.

    O livro foi resultado de uma atividade realizada no quinto encontro com os alunos, que explorava o processo de criação. Sabendo da dificuldade de acesso a esse tipo de produção, André Luiz propôs aos alunos que escrevessem relatos sobre suas vidas, sonhos guardados, perspectivas sobre o bairro e o que mais quisessem. Assim nasceu o livro com as 39 histórias nunca antes contadas. O título não é por acaso. Os textos reúnem, não apenas histórias nunca antes contadas, mas autores que nunca haviam escrito e falam da periferia do ponto de vista de quem vive essa realidade.

    “É mais um lance de empoderar! Essa questão do acesso é muito complicada na periferia, porque a gente não tem acesso pra muitas coisas. Então é um processo de olhar e dizer ‘eu fiz’!”, explica André.

    A coordenadora do Centro para Crianças e Adolescentes (CCA – Espaço Conviver), braço do NADI, Vanderli Luiza Dias Rosa, se emociona toda vez que fala do livro. “É muito bom ver esses meninos falando, escrevendo, tendo sonhos. Porque eles não têm o hábito de sonhar. Então é aquela realidade, como se fosse uma casta. Eu nasci assim, meus pais são assim, eu vou morrer assim. Quando você quebra esse paradigma e eles abrem a visão pro mundo, quando eles acreditam que eles podem, é bom demais”.

    Uma das autoras do livro, Talita da Silva Pereira, de 16 anos, conta que além, de sair da rotina e ter contato com experiências novas, pode produzir um curta junto com os colegas. No livro, resolveu abrir o coração e compartilhar uma vivência difícil que teve há alguns anos. “Eu gosto de fazer poema, texto, música, então achei bem tranquilo. Mas, eu escrevi sobre o Bullying que eu sofri um tempo atrás e sobre quando tive anorexia. Eu queria inspirar as pessoas que lessem a falar sobre isso”, conta.

    Apesar dos planos profissionais serem outros, Talita diz que quer aproveitar as habilidades desenvolvidas no curso pra trabalhar e pagar a faculdade. Diferente de Estevão Pereira da Silva Leandro, de 17 anos, que é estudante de Publicidade e Propaganda, e diz que quando ouviu que o projeto era uma ONG e que ajudaria pessoas, decidiu participar na hora. “É bom pra minha carreira profissional também, então tem sido muito produtivo”, explica.

    No livro, Estevão falou sobre os dois “naturais” que acredita existir. O natural humano e o natural de Deus. E se vê satisfeito com o resultado final de seu texto e do livro. “Eu creio que as pessoas podem se inspirar pensando que são que nem a gente e que talvez eles possam contar suas ‘histórias nunca contadas’ também”.

    Adolescentes do Capão Redondo esperam que obra inspire outros jovens. | Foto: Reprodução / Facebook

    André não se prende aos números para julgar se o livro foi um sucesso ou não, e sim ao simples fato de ter feito um grupo de jovens poderem ver seu trabalho materializado em um livro. “Na periferia, quando você vai tomar uma decisão que pode mudar sua vida radicalmente ou fazer você perder a sua liberdade, por experiência própria, o que faz segurar são esses pontinhos. Que ajudam a gente a se guiar pelo caminho”.

    Luan Tolentino, de 14 anos, escolheu contar do dia que assistiu ao jogo do Santos com o Pai. Apaixonado por futebol, sentiu um orgulho imenso ao ver seu texto estampado em um livro. “Quando eu mostrei pra um amigo meu ele falou que se fosse por ele, ele também gostaria de escrever”, conta Luan que, cheio de espontaneidade, deu uma resposta certeira ao ser perguntado se pensava em seguir carreira com o audiovisual no futuro: “Pensar em trabalhar não mas… se dé nóis vai”.

    Devido à enorme dificuldade de acesso a produção de livros, a equipe optou por apenas cem cópias que têm sido distribuídas para a comunidade, sem a pretensão de gerar renda. O processo de produção de um livro é bastante burocrático, mas isso não desanimou a equipe. Rogério descobriu caminhos até chegar a  uma editora, gráfica e até conseguiu o registo no ISBN (Internacional Standard Book Number). “Se você liga numa gráfica eles dizem que só fazem acima de três mil unidades. Te cobram 1,5 mil por um registro que dá pra fazer por cem, numa quantidade menor. Então é sacanagem. Aí eu comecei a mostrar para o povo que é possível fazer na periferia também.”.

    A produção de “Histórias que não escrevi” inspirou a equipe a lançar um livro oficial contando a história do projeto, com a colaboração dos jovens que fizeram parte da história do TV DOC. A ideia é brincar com as diferentes linguagens literárias, misturando contos, poemas, textos jornalísticos e abrindo espaço para a participação dos alunos.

    Além dos jovens do Centro Jovem de Comunicação, o livro também contou com a participação das turmas do CIEJA-Campo Limpo e da Liga Solidária, no Butantã. As três turmas já participaram dos cursos do TV DOC e celebraram a formatura juntas no dia do lançamento do livro.

    Desde quando projeto iniciou oficialmente em 2014, 30 turmas já se formaram. Só no ano de 2016,  mais de mil jovens da periferia passaram pelas oficinas de formação. A TV DOC Inclui ainda conta com um índice de evasão de apenas 2%, e uma lista de espera de mais de quinze instituições, além do apoio da OXFAM, uma organização internacional sem fins lucrativos que investe na criação de políticas públicas para inclusão social.

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