Homicídios caem para menor índice em 11 anos, mas polícia nunca matou tanto

    Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta queda em homicídios, roubos e furtos em 2018; feminicídios e estupros aumentaram

    Protesto de familiares em chacina no Pará, um dos quatro estados onde homicídios não caíram, mas com número estável | Foto: Fabrício Rocha/Ponte Jornalismo

    Queda nas mortes violentas intencionais, dos crimes contra o patrimônio e de homicídios contra policiais de um lado, aumento no registros de novas armas legais, na letalidade cometida por policiais e recorde de estupros do outro. Esse é o atual cenário da segurança pública brasileira, segundo números do anuário divulgado pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

    As estatísticas se referem ao ano de 2018 e têm como base números coletados junto aos 26 estados e Distrito Federal através da LAI (Lei de Acesso à Informação) e mostram queda nacional no total de mortes violentas. Há um recuo de 10,8% após o recorde registrado em 2017, quando houve o número inédito de 63.880 pessoas mortas, para 57.341 vítimas nos 12 meses de 2018.

    Este é o menor número desde 2014, quando houve 59.730 mortes violentas intencionais, e encerra um intervalo de dois anos de crescimento. Assim, a taxa de mortos por 100 mil habitantes também caiu após o recorde de 30,8 para um grupo de 100 mil em 2017. Agora, a estatística é de 27,5, a menor desde 2011, quando o patamar era de 24,5 por 100 mil.

    Gráfico: FBSP

    Nos últimos três anos, ampliou-se a quantidade de estados que reduziram sua mortalidade violenta geral. Em 2016 eram 9 exemplos de redução, passou para 15 em 2017 e chegou nos atuais 23 em 2019 – apenas Roraima (64,9%), Tocantins (10,4%), Amapá (6,3%) e Pará (0,9%) registraram acréscimo. “Não começou agora, não veio como passe de mágica. Está acontecendo, é uma queda importante e tem a ver com momento de alta em 2017, mas o patamar da violência brasileira é alto. A sociedade brasileira é violenta. Aconteceu uma acomodação em um cenário que precisa ser compreendido”, pontua Renato Sergio de Lima, presidente do FBSP.

    Os dados vão além: entre as 13 edições do anuário do FBSP, a atual de 2018 registra o maior número de mortes decorrentes de intervenção policial. Ao longo dos 12 meses do ano passado, 6.220 pessoas foram mortas pelo braço armado dos estados, aumento de 19,6% comparando com as 5.179 vítimas de 2017. A ascensão é ininterrupta desde 2013, com 2.212 mortes, crescimento acumulado de 181% no período. As vítimas são principalmente homens (99,3%), negros (75,4%), entre 20 e 24 anos (33,6%) e com apenas o ensino fundamental completo (81,5%).

    O novo dado representa 17 mortes por dia e reflete que 10,8% do total de mortes violentas intencionais ocorridas no Brasil são cometidas pelas polícias. O percentual é comparável com países como El Salvador, com 10,3% do total de mortes cometidas por policiais, mas com taxa total de mortes violentar em 60,2 por 100 mil habitantes, mais do que o dobro do que no Brasil (27,5). A Colômbia, cuja taxa geral de 100 mil é similar à do Brasil, com 24,3 mortos, apresenta apenas 1,5 deste total cometido por policiais frente os 10,8 por 100 mil do Brasil.

    Enquanto isso, as mortes de policiais caem. É o segundo ano de redução, dos 373 registros em 2017 para 343 em 2018. É o menor número desde 2013, segundo o estudo. No entanto, os especialistas alertam para os suicídios cometidos por policiais, 104 em 2018, número que está acima dos 87 policiais mortos em serviço no mesmo ano. O crescimento em um ano é de 42,5% frente os 73 suicídios de policiais civis e militares no ano anterior.

    Gráfico: FBSP

    O total de armas em circulação no país apresentou acréscimo de 196.733 novos registros legais, crescimento de 42,4% em comparação com 2017. No mesmo tempo, 12.285 armas saíram da legalidade e entraram no mundo do crime, enquanto as polícias apreenderam 112.306 armas em 2018 e refletem no crescimento de 7,5% de casos envolvendo posse ou porte ilegal de arma de fogo.

    Não há causa única

    A principal pergunta é: o que motivou esta queda? Até mesmo os especialistas têm dificuldade em apontar um único fator. O entendimento é de que não se sabe especificamente o que gera a queda no total de mortes violentas, há uma junção de várias hipóteses para explicar. Algumas delas são a calmaria na guerra entre facções criminosas, ocorrida em 2017, e maior investimento por parte dos estados na segurança pública. Em suma, a lista apontam para dinâmicas locais e não uma política nacional como resposta.

    Para o cientista político Guaracy Minguardi, integrante do FBSP, o conflito nacional das facções PCC (Primeiro Comando da Capital), de São Paulo, e o CV (Comando Vermelho), do Rio de Janeiro, interfere diretamente na queda. Por dominarem a dinâmica do crime organizado em todo o país, seus embates interferem nos dados. “O número de pessoas mortas nessa guerra diminuiu e claro que reflete no indice. Não é causa única, é um dos fatores que devem ter derrubado”, pondera.

    Gráfico: FBSP

    Os estados da região Norte e Nordeste foram os principais impactados pelo conflito PCC x CV, como o Acre. Caminho da rota de entorpecentes vindos de Bolívia e Peru, o estado acumula a maior redução entre as 27 unidades federativas, com total 25,1% menor em relação a 2018.

    “Tem estados em que a guerra não aconteceu, se tem monopólio do crime e não tem guerra. No Paraná e Mato Grosso do Sul não houve guerra, mas são estados em que os números caíram”, diz Guaracy. “Houve queda em alguns índices, temos hipóteses, mas não podemos ficar só nisso. O homicídio cai, mas pode voltar a subir daqui a um, dois anos. Se não soubermos com certeza os fatores, quando voltar a subir não vamos conseguir ter uma politica para impedir esse processo”, sustenta.

    Para além dos conflitos criminosos, há outras teorias levantadas por quem convive diariamente com a segurança. Os números mostram que há queda em todos os crimes praticados contra o patrimônio, como roubo e furto, por exemplo a redução de 20% nos roubos de carga. De acordo com o sociólogo Túlio Kahn, uma tendência que vem das economia.

    Gráfico: FBSP

    “Há a hipótese de transição demográfica, que é lenta e ajuda a explicar mais queda de homicídios e não o crime contra patrimônio. Aposto no cenário macroeconômico, que é nacional. Tivemos crise forte de 2014 até 2016, e a criminalidade cresce a partir de 2013, o que coincidiria com o ápice da criminalidade em 2017”, sustenta Kahn. “O primeiro trimestre de 2017 tem reversão do quadro econômico. Podem ser coincidências, mas a questão macroeconômica é um tipo de explicação que se encaixa, mas tem outras”, continua.

    Economicamente, a segurança teve suporte de R$ 91 bilhões ao longo de 2018, representando 1,34% do PIB (Produto Interno Bruto). O gasto per capita (dividido pelo total da população) tem o Centro-Oeste como líder, com R$ 463,71; seguido do Norte, R$ 417,67; Sudeste, R$ 361,67; Sul, R$ 360,38; e Nordeste, R$ 291,60. “É um recorde de despesas. Estados e municípios estão gastando mais. Mesmo no auge da crise econômica, o Brasil continuou gastando mais com segurança pressionado pelos índices de criminalidade”, explica Samira Bueno, diretora do FBSP.

    O sargento Elisandro Lotin, da Polícia Militar de Santa Catarina, explica que a questão vai além da polícia. “Entende-se a questão de segurança como só questão de mais arma, mais polícia, mais viatura. A diminuição da violência não é processo de agora, é uma lógica de anos. O que explica são vários fatores, como violência e criminalidade são multicausais, a diminuição também tem. Vem acontecendo nos últimos anos, mas não é uma política federal”, avalia, listando que estados diminuíram suas violências e não um movimento federal com esta finalidade.

    Gráfico: FBSP

    Sobre letalidade policial, ele sustenta que “a atuação maior nas ruas gera confronto. Há pressão social e estatal para se colocar o policial na rua e aumenta número de mortos”. “Nesse número de mortes tem as que são tidas pegais, como defesa de terceiros, mas não temos dados estatísticos para dizer quantas são essas, quantas são com abuso. O estado carece de informações para se fazer essa análise aprofundada”, diz.

    Recorde de estupros

    Os dados de violência sexual também apresentaram recorde, com 66.041 estupros registrados em 2018. É o maior da história ao longo das 13 edições do anuário feito pelo FBSP. As vítimas são majoritariamente mulheres (81,8%) e com até 13 anos (53,8%), com uma nova vítima desse perfil estuprada a cada 15 minutos no país.

    Enquanto as principais vítimas femininas de estupro tem até 13 anos, as vítimas masculinas são ainda mais novas: 7 anos. Ambas se enquadram em estupro de vulnerável, com crianças até 14 anos que não tem discernimento para consentir com a prática sexual.

    As estatísticas que tratam de estupro enfrenta um problema de subnotificação. Segundo pesquisa nacional de vitimização feita pelo Ministério da Justiça em 2013, apenas 7,5% dos casos de violência sexual são denunciados às autoridades. “Os motivos para a baixa notificação são os mesmos em diferentes países: medo de retaliação por parte do agressor (geralmente conhecido), medo do julgamento a que a vítima será exposta após a denúncia, descrédito nas instituições de justiça e segurança pública, dentre outros”, destaca trecho do anuário escrito por Samira Bueno, Carolina Pereira e Cristina Neme.

    Gráfico: FBSP

    Segundo Mafoane Odara, do Instituto Avon, a questão deve ser enfrentada com conscientização. “A violência sexual contra menores tem dois componentes: sistema de justiça não vai resolver problema se trabalhar de forma isolada. É importante ter uma equipe multidisciplinar para processar esse caso. E temos um tabu para falar da questão”, diz. “A questão é essa, de não falar sobre isso nessa idade. As questões sexuais estão em nossa vida desde que nascemos, não é sexualizar as crianças, é trazer elementos para saber que é um problema”, prossegue.

    Os feminicídios e casos de violência doméstica também aparecem com crescimento de 4% e 0,8%, respectivamente. Enquanto o primeiro tem em quase 90% dos casos os autores um companheiro ou ex-companheiro, o segundo tem um novo registro a cada 2 minutos no país. Foram 263.067 ocorrências de lesão dolosa.

    “É de se supor que o feminicídio reflete alta real de violência de gênero pelo crescimento dos registros de violência domestica”, pontua Samira Bueno. A estatística não compila dados da Bahia, que, segundo o Fórum, se recusou a enviar dados.

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