Homicídios de negros no Brasil cresceram 18,2% em dez anos, segundo Ipea e FBSP

    No mesmo período, taxa de letalidade de não negros diminuiu 14,6% no país, apontando acirramento na diferença de letalidade entre negros e não negros na última década

     

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    O técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, Daniel Cerqueira, e a coordenadora de projetos do FBSP, Olaya Hanashiro, apresentam Atlas da Violência no Rio de Janeiro/ Foto: Luiza Sansão

     

    Em 2014, a marca de 59.627 homicídios colocou o Brasil na triste posição de país com a maior taxa de assassinatos, com a média de 29,1 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes – mais de 10% dos homicídios registrados no mundo. A letalidade atinge principalmente homens jovens negros e pobres no país, onde houve grave acirramento na diferença entre as taxas de homicídios de negros e não negros na última década, segundo o Atlas da Violência 2016, divulgado na terça-feira, (22/03), pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

    Enquanto o número de homicídios entre não negros sofreu uma queda de 14,6% entre 2004 e 2014, a taxa de assassinatos de negros e pardos cresceu 18,2%, no mesmo período. Isso significa que, para cada não negro vítima de homicídio no país, 2,4 negros, em média, são assassinados. No estado de Alagoas, o contraste é especialmente gritante: para cada não negro assassinado, 10,6 negros são vítimas de homicídio.

    O estudo, que foi apresentado pelo técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, Daniel Cerqueira, e pela coordenadora de projetos do FBSP, Olaya Hanashiro, no Centro do Rio de Janeiro, também analisou a relação da letalidade com armas de fogo e os homicídios decorrentes de violência policial, além das taxas de assassinatos de mulheres e jovens, em micro e macrorregiões do Brasil, e em unidades da federação.

    Para Cerqueira, o fato de “o negro estar sobre-representado nos estratos inferiores de renda” e, portanto, “mais vulnerável a sofrer crimes porque geralmente ele está morando em regiões mais conflagradas” explica apenas parcialmente a diferença de letalidade entre negros e não negros.

    “A questão socioeconômica explica apenas 20% da letalidade entre negros e não negros. Pegamos os dados do Censo Demográfico do IBGE e colocamos as características socioeconômicas, inclusive o local de residência. Mesmo levando em consideração dados como o bairro de residência da vítima, o grau de escolaridade e o estado civil, só o fato de ser negra aumenta em 21% a chance de sofrer homicídio. Então, [o que] estamos falando é que existe uma hipótese que não pode ser rejeitada: a do racismo que mata”, afirmou o pesquisador.

    Ao falar sobre o “racismo institucional”, Cerqueira definiu o “racismo das polícias” como “práticas cotidianas que não estão explicitadas em manuais mas fazem parte das operações no cotidiano das instituições”, destacando que, frequentemente, negros são abordados por policiais de forma mais violenta do que brancos.

     

    Tabela Atlas.Violência

     

    “A educação é um escudo contra os homicídios no Brasil”

    Outro elemento destacado no relatório é o de que, quanto maior o nível de escolaridade de uma pessoa, menores as chances de ela ser vítima de homicídio. O pico de homicídios para os homens ocorre aos 21 anos de idade, segundo o Ipea, e a probabilidade de um indivíduo que possui menos do que oito anos de estudo ser assassinado é 5,4 vezes maior do que a de um indivíduo que tem grau de instrução mais elevado.

    No estudo “Redução da Idade de Imputabilidade Penal, Educação e Criminalidade”, publicado em setembro de 2015, Daniel Cerqueira e o também técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, Danilo Santa Cruz Coelho, mostraram, com base em microdados do Censo demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010 e do SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade), que “as chances de um indivíduo com até sete anos de estudo sofrer homicídio no Brasil são 15,9 vezes maiores do que as de alguém que ingressou no ensino superior, o que demonstra que a educação é um verdadeiro escudo contra os homicídios”.

    Segundo Cerqueira, para reduzir a letalidade que atinge diretamente pessoas com nenhum ou baixo nível de instrução, é necessário “abrir portas para crianças e jovens”. “Há duas teorias no Brasil acerca de como resolver o problema do crime: a de fechar portas, enjaular, reduzir a maioridade penal, pôr todo mundo na cadeia, e a de abrir portas, investir nas crianças e nos jovens, dar-lhes oportunidades, para evitar que sejam bandidos amanhã”, afirmou.

    “Trabalhos que fizemos anteriormente mostram evidências de que o caminho é o de abrir portas. Uma vez que nós fechamos todas as portas e o garoto trilhou uma trajetória de transgressões, de rompimento com elos de sociabilidade, é muito difícil lá na frente a gente achar que vai resolver o problema colocando esse garoto na prisão. Por outro lado, criar-se oportunidade tem muita efetividade, e isso, aliás, é o que dizem as pesquisas internacionais e os programas que funcionaram para mitigar homicídios e crimes violentos, provendo oportunidades a crianças e jovens”, completou Cerqueira.

    Mais armas de fogo, mais homicídios

    O Ipea e o FBSP apontam ainda que 76,1% do total de homicídios ocorridos no país em 2014 decorreram do uso de armas de fogo – o que corresponde a 44.861 homicídios. Tomar conhecimento desses dados, segundo Cerqueira, faz-se especialmente fundamental neste momento em que o Congresso Nacional discute o desmantelamento do Estatuto do Desarmamento – “uma das leis mais importantes que já tivemos no Brasil”, segundo o pesquisador.

    “A proporção de pessoas que eram assassinadas por armas de fogo no Brasil foi crescendo desde 1980, na medida em que a difusão e proliferação de armas de fogo aumentaram. Houve um crescimento acentuado dos homicídios e, como o Estado não deu respostas para a violência, as pessoas se armaram. Só que as armas, em vez de mitigarem o problema, jogaram mais lenha na fogueira”, afirmou Cerqueira. Somente após 2003, quando foi aprovado o Estatuto do Desarmamento, houve queda nas taxas de homicídios decorrentes de arma de fogo.

    Num cenário contrafactual, o estudo analisou a variação nas taxas de homicídio caso não houvesse o Estatuto do Desarmamento, e concluiu que a média de homicídios na Região Norte do país entre 2011 e 2013, que foi de 5.952, teria sido de 7.224. No Nordeste, no mesmo período, a média teria subido de 20.787 para 29.757 casos de homicídio, se não houvesse o Estatuto.

    O relatório conclui então que, “se a questão da vitimização violenta assumiu contornos de uma tragédia social no Brasil, sem o Estatuto do Desarmamento a tragédia seria ainda pior”, confirmando a “alta correlação entre a variação da medida de difusão de arma de fogo e a variação da taxa de homicídio”, com base nas médias dos períodos de 2001 a 2003 (antes do Estatuto do Desarmamento) e de 2011 a 2013.

     

    Desmilitarização e legalização das drogas

    Indagada pela Ponte Jornalismo sobre como a desmilitarização poderia afetar as taxas de homicídios no país, a coordenadora de projetos do FBSP Olaya Hanashiro afirmou que “falta uma formação mais humanista” nas instituições policiais e que “não basta só desmilitarizar se a gente não mudar o modelo de policiamento e de formação das polícias”, ressaltando que a militarização não se restringe à Polícia Militar.

    “Com uma formação militarizada, sendo preparados para o combate, os policiais têm uma formação que não corresponde com o que eles vão encontrar no dia a dia nas ruas, que são, em grande parte, conflitos interpessoais. Falta uma formação mais humanista nas academias policiais, tanto na Polícia Militar quanto na Civil, sobre como lidar com questões interpessoais e com o cidadão, como realmente proteger direitos e não se preocupar apenas com a manutenção da ordem”, disse Hanashiro. “Falta pensarmos uma série de outras questões que estão atadas à da desmilitarização, que é muito importante, mas é muito mais ampla”, encerrou.

    Sobre a relação da guerra às drogas com a letalidade, Hanashiro ressaltou que a questão das drogas precisa sair da esfera da segurança pública e passar à da saúde pública. Cerqueira afirmou que “o único caminho [para solucionar a violência relacionada ao tráfico] é a legalização de todas drogas”, uma vez que a guerra às drogas “nunca teve nenhuma efetividade” e que “trabalhos já mostraram que 90% da violência tem a ver com a violência sistêmica”.

    Segundo o pesquisador, existem três canais que associam drogas ilícitas a violência: o psicofarmacológico, o da compulsão econômica e o canal sistêmico. “O psicofarmacológico seria o de que o cara fica doidão e assume um comportamento violento; o da compulsão econômica é [a ideia de que] acabou o dinheiro [o usuário] vai roubar e matar para conseguir a droga. E o sistêmico é que o fato de a droga ser ilícita determina que os conflitos envolvendo os contratos não podem ser resolvidos na Justiça, só na base da violência”, distinguiu. “Considerando as experiências internacionais sobre drogas, o caminho da guerra às drogas nunca levou a nada. O único caminho, portanto, é a legalização de todas as drogas”, enfatizou.

     

     

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