Indígenas ocupam calçada da prefeitura de SP e denunciam precarização da saúde

    Protesto é contra fim de secretaria nacional e a municipalização da saúde; Bruno Covas vai receber lideranças na próxima semana para negociação e indígenas mantém acampamento. Outros atos aconteceram pelo Brasil

    Sonia Ara Mirim se emociona: ‘Em breve só existiremos nos livros de história’ | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    O povo guarani que vive na Aldeia do Jaraguá, na zona oeste da cidade de São Paulo, ocupou a sede da prefeitura de São Paulo, no centro da capital, para protestar contra o desmonte da saúde com o fim da Sesai, a Secretaria Especial de Saúde Indígena, subsidiada pelo governo federal, que vem acontecendo desde o ano passado e atingiu seu pior momento em janeiro deste ano. Com isso, segundo as lideranças indígenas, se iniciou um processo de municipalização da saúde, que tornará precário o acesso e atendimento de saúde para os povos indígenas de todo o país. A UBS (Unidade Básica de Saúde) que funcionava dentro da Aldeia do Jaraguá foi fechada nesta quarta-feira (27/3).

    A Secretaria Municipal de Saúde enviou uma nota à Ponte informando que a unidade de saúde foi fechada “por exigência dos manifestantes, que exigiram a posse da chave da unidade, trancaram-na e seguiram para a prefeitura para realizar o ato”. Os manifestantes e moradores da aldeia, no entanto, falam em condições precárias na unidade por causa do corte de verba. Uma nota da Conlutas divulgada também nesta quarta-feira reforça a tese dos guaranis. “Existe uma rotatividade de funcionários muito grande na UBS. Alguns funcionários foram demitidos sem a consulta à comunidade, falta sala de inalação, sala de vacina, sala de curativos e a UBS funciona de forma irregular. Essa realidade, na metrópole mais rica do país, expõe a fragilidade da municipalização da saúde indígena”, aponta trecho da nota divulgada na página do Facebook.

    “A existência da Sesai é de fundamental importância para o sistema de saúde dos povos indígenas. São eles que cuidam do carros que ficam dentro das aldeias, usados para locomover, por exemplo, os que precisam de cuidados específicos, cuidam da parte de saneamento básico das aldeias”, explica Sonia Ara Mirim, uma das lideranças do Jaraguá.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    “Quando há ataques aos nossos poucos direitos a gente se fragiliza muito. Com o fim da Sesai, a gente passa totalmente para o SUS e tudo que a gente conseguiu de direitos, que foi pouco, não foi muito, vai ser retirado. A gente prevê que vai morrer criança, velho… A gente quer ser ouvido, nós sabemos como conversar, nós somos um povo pacífico. Nós fundamos o país, o povo guarani fundou esse estado onde estamos. Daqui um tempo estaremos apenas nos livros de história porque estaremos todos mortos”, continua Sonia, emocionada. No protesto, lideranças levaram registro de pelo menos 180 mortes ocorridas nos últimos anos na Aldeia do Jaraguá por falta de atendimento de saúde adequado.

    Na manhã desta quarta-feira (27/3), no início do protesto, um grupo de indígenas tentou ocupar o hall do prédio da prefeitura, mas foi reprimido pela GCM (Guarda Civil Metropolitana). Há relatos por parte dos manifestantes de que a GCM teria usado gás pimenta – ou gengibre, uma variação usada pela tropa – na hora da dispersão, mas agentes que estavam no local no período da tarde negaram a informação. No vídeo abaixo, divulgado em Whatsapp e páginas de grupos indígenas e indigenistas, é possível ver o momento da tentativa de entrar no prédio:

    https://www.facebook.com/trabalhoindigenista/videos/408055423091374/

    A Sesai surgiu em 2010 e permitiu que o atendimento de saúde nas aldeias passasse a ser diferenciado e respeitoso com os indígenas, com sua cultura, língua e toda especifidade dos povos originários. O desmonte desse sistema começou há algum tempo e a denúncia foi oficializada na semana passada pelo Fórum de Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena. Das oito empresas da sociedade civil contratadas para a prestação de serviços, cinco tiveram o pagamento do convênio cortado em outubro do ano passado. O repasse para as últimas três foi cortado em janeiro.

    Em carta endereçada ao prefeito Bruno Covas, o povo guarani da Aldeia do Jaraguá manifesta indignação à tentativa do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, de sucatear e boicotar a saúde indígena com a intenção do extermínio dos povos indígenas. “Durante reunião ordinária do Conselho Nacional de Saúde Indígena – CNS, realizada em 31 de janeiro e dia 1 de fevereiro ao Fórum dos Presidentes de Condises, o ministro apresentou a proposta de municipalização da saúde indígena e usou como argumento o atendimento do município de São Paulo à Terra Indígena Jaraguá, alegando que a municipalização na Terra Indígena funciona e serviria de modelo para todos os outros povos”, aponta o manifesto.

    Indígenas estão em frente ao prédio da prefeitura de São Paulo desde a manhã desta quarta-feira | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Na sequência, explicam que a manutenção da Sesai e o subsistema que ela opera voltado aos povos indígenas é de fundamental importância. “Afirmamos que a municipalização é um retrocesso à anos de luta, retirando o direito do indígena de ser acompanhado de forma diferenciada, e que respeita o modo de vida de cada povo. Temos registros de óbitos que casos que eram reversíveis, e por falta de conhecimento e respeito ao modo de vida da população indígena do Jaraguá, o município não soube atuar de forma correta e vidas foram perdidas. Exigimos que Bruno Covas se manifeste em relação à municipalização e reconheça que os municípios do Brasil não são abertos e preparados para atender de forma diferenciada os povos Indígenas”, diz outro trecho.

    O que esteve em questão ao longo do dia era a exigência de uma reunião com o prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB). No final da manhã, uma primeira negociação indicava que a prefeitura designaria representantes do gabinete e da pasta da saúde para falar com um grupo de indígenas. Mas o acordo foi refutado pela ausência de Covas.

    Indígenas denunciam desmonte da saúde | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    O protesto pacífico durou toda a tarde e quase no fim da noite desta quarta-feira,  o grupo de indígenas aceitou conversar com representantes com a condição de que a carta manifesto fosse entregue em mãos ao prefeito. Uma das reivindicações é que a UBS da aldeia possa ter funcionários indígenas. “Eu sou formada, sou auxiliar de enfermagem e não tenho direito de trabalhar no posto de saúde da minha aldeia. Eles falaram que não vão me contratar”, desabafa Sonia Ara Mirim.

    Ela também destacou outros tantos retrocessos do atual governo federal com a causa indígena. “A gente é um povo que fundou esse país e hoje está trancafiado em uma área de 1,7 hectares passando todo tipo de necessidade. É difícil isso. A Funai passou para o Ministério da Agricultura, que não nos representa e que não tem o entendimento das lutas indígenas, a questão da demarcação de terras”, conclui Sônia.

    Como a questão do Sesai é federal, outras regiões também tiveram mobilizações de etnias indignadas com o processo de municipalização da saúde. De acordo com o De Olho nos Ruralistas, protestos aconteceram em 22 estados e no Distrito Federal.  A reportagem traz dados de atendimentos à população indígena da Sesai: houve aumento de 400% nos últimos quatro anos. “A secretaria contabilizou, entre 2014 e 2018, 16,2 milhões de assistências. São 360 Polos Base e 68 Casas de Saúde Indígenas (Casai), que atendem 205 etnias em 597 terras indígenas. A secretaria executa a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e toda a gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) no Sistema Único de Saúde (SUS)”, aponta a reportagem.

    O encontro foi realizado com integrantes das secretarias da Casa Civil e de Relações Sociais. A vereadora Juliana Cardoso (PT), que acompanhou a comissão dentro da prefeitura, conversou, ao final da reunião, com Tiago Henrique, que era um dos representantes do povo guarani. “Desde a campanha, Jair Bolsonaro veio fazendo muitas ameaças aos povos indígenas. E agora como presidente ele coloca essas ameaças em prática. Ele acabou com a Funai, tirando a demarcação das terras indígenas e toda proteção dos nossos territórios, e agora decide acabar com o subsistema de atenção à saúde indígena, que garantia dentro do SUS, através da Sesai, um atendimento diferenciado para nós. Ao municipalizar, o atendimento passa para o SUS, sem levar em conta a nossa especificidade, como língua, cultura”, explica.

    Ele informou também que, diante do não atendimento das demandas, os indígenas decidiram manter a ocupação, além de cobrar do prefeito antecipar a data para uma nova conversa, prevista para acontecer na próxima semana. A Ponte procurou a prefeitura para saber a avaliação deles sobre a reunião com os indígenas, além de questionar a suposta truculência empregada pela GCM para retirar os indígenas que entraram no prédio nesta manhã. Em nota, a GCM afirma que a saída de manifestantes aconteceu com diálogo entre ambas as partes e não houve necessidade do uso progressivo da força. A prefeitura confirma que Bruno Covas vai receber seis lideranças da população indígena na próxima semana. “Os manifestantes se posicionaram contra mudanças no atendimento à saúde da população indígena, que atualmente é prestado pelo Governo Federal. Os representantes também pedem que, se houver municipalização do serviço, não sejam atendidos pelo SUS convencional, mas com regras especiais que levem em conta a cultura indígena, como ocorre atualmente”, diz a nota.

    Na terça-feira (26/3), o Ministério da Saúde se pronunciou oficialmente a alguns órgãos de imprensa informando que a Sesai ainda está sendo objeto de análise, e que não está prevista descontinuidade de ações da secretaria. “O Ministério tem se pautado pela garantia da continuidade das ações básicas de saúde, a melhoria dos processos de trabalho para aprimorar o atendimento diferenciado à população indígena, sempre considerando as complexidades culturais e epidemiológicas, a organização territorial e social, bem como as práticas tradicionais e medicinais alternativas a medicina ocidental”, diz nota divulgada ao G1.

    A Ponte entrou em contato com o ministério da Saúde por e-mail solicitando um posicionamento sobre os protestos e as pretensões com relação à Sesai, mas, até o fechamento da reportagem, não havia retorno.

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