Internado com depressão, PM negro agredido por colegas em MG é investigado por abandono de serviço

Após ser processado e agredido por passear com filha branca, Anderson César foi diagnosticado com depressão, tentou suicídio e agora a PM o investiga por deserção: “cortaram o plano que a minha filha usava para fazer tratamento psicológico”

PM Anderson
Policial militar Anderson César e a filha, de 5 anos, em folga do pai | Foto: Arquivo pessoal

Atenção: esta reportagem trata de saúde mental, depressão e pensamentos suicidas – que podem gerar gatilhos. Caso você não esteja bem e precise conversar com alguém, a Ponte recomenda entrar em contato com o Centro de Valorização à Vida (CVV), que funciona 24 horas e pode ser acionado através do telefone 188 (ligação gratuita) ou neste site, ou uma unidade mais próxima de saúde que você pode encontrar por meio do Mapa da Saúde Mental.

“Eu passo mal só de ver a farda, não consigo mais vestir”, lamenta o soldado Anderson César da Silva, que completou o aniversário de 33 anos internado em uma clínica psiquiátrica em Barbacena (MG), em 3 de maio. Ele se internou no dia 31 de março, seis dias depois de ter ficado desaparecido por dois dias e tentado suicídio, segundo a família. “Estão tratando o Anderson como bandido, sendo que ele está doente”, disse a esposa e professora Elizabeth Aparecida Neto, 41, sem conseguir conter as lágrimas.

Foi na clínica que o soldado descobriu que está sendo investigado por deserção, crime previsto no artigo 187 do Código Penal Militar, que é quando o policial não comparece ao batalhão que ele trabalha sem apresentar uma justificativa por mais de oito dias. A pena, caso seja condenado, é de detenção, que pode variar de seis meses a dois anos. Isso porque, entre os dias 22 a 30 de março, ele não compareceu ao quartel do Centro de Atividades Musicais (CAM) de Belo Horizonte, onde está lotado desde que passou a responder um processo por desacato, ameaça, desobediência, lesão corporal e resistência na Justiça Militar, em 2021. Na época, a Ponte revelou que ele foi agredido por colegas, que também atiraram contra seu cachorro, quando fazia um piquenique com a filha depois que moradores suspeitaram dele, um homem negro, com uma criança branca e acionaram a Polícia Militar.

Depois do episódio, Anderson e a esposa contam que estão em sofrimento constante pelos traumas. “A minha filha de cinco anos tem medo de dormir porque toda a vez ela tem o mesmo pesadelo de uma mulher correndo atrás dela, que era a tenente na época que pegou ela. Ela não consegue ver viatura nem policial porque foi um choque muito grande”, afirma Elizabeth. “O que eu mais temo é pela vida do Anderson, é o suicídio, o resto a gente corre atrás, e ele não consegue trabalhar porque está doente”.

“Depois da situação com a minha filha, eu adoeci, comecei a fazer uso de remédios e não estava dando conta mais de trabalhar porque eu já estava em uma situação de depressão quando fui excluído pela polícia [ele ingressou na PM após uma decisão judicial em 2015] e estava trabalhando longe da minha família”, conta Anderson. A distância entre Barbacena e Belo Horizonte é de aproximadamente 170 quilômetros. Além disso, ele denuncia que era desrespeitado e perseguido pelos colegas do quartel. “Se um policial chegava um minuto atrasado e eu também chegava, só anotavam eu, para baixar meu ponto e ter falta disciplinar”, exemplifica. “Faziam piadinhas, eu tive um problema com cannabis e me chamavam de noiado, e eu comecei a fazer tratamento, mas os médicos não me ouviam, achavam que eu estava de gracinha, sendo que eu ainda estou respondendo aos cinco crimes e os policiais que fizeram isso comigo continuam trabalhando normalmente, mesmo depois de eu e minha esposa irmos ao Ministério Público”, prossegue.

O soldado também relata que tentou pedir transferência para atuar na unidade de Barbacena, mas como o episódio de 2021 ocorreu na cidade, segundo ele, não poderia trabalhar no mesmo local que os PMs que o prenderam atuam. “Eles [os policiais] levaram para a questão de que eu estava usando a minha cor para fazer matéria, e não foi isso, foi a covardia que fizeram comigo. Já não estava dando para trabalhar longe da minha família”, lamenta. “Eu comecei a ter dificuldade para ir para a unidade, me envolvi nuns acidentes, comecei a pensar em coisas erradas”. Ele trabalhava de forma administrativa na unidade e não estava com porte de arma.

Por causa do inquérito de deserção, eles afirmam que o plano de saúde oferecido pela PM no qual a esposa e a filha são dependentes foi cortado, assim como a remuneração de Anderson a partir de abril, o que tem dificultado o tratamento psicológico da menina. Um relatório assinado em 30 de março por uma psicóloga que faz o acompanhamento dela aponta que a criança está em tratamento por tempo indeterminado desde janeiro de 2021, quando passou por “uma situação traumática e de muito stress”. “Com meu salário de professora, que é pouco, eu estou à frente de tudo, tento não deixar de levar ela [na consulta], mas nem sempre dá para levar toda a semana, às vezes a psicóloga se compadece e deixa levar assim mesmo, mas ela também tem os outros pacientes”, lamenta Elizabeth.

De acordo com os laudos anexados no inquérito, na época da abordagem em que foi agredido na presença da filha, Anderson foi diagnosticado com estresse grave e transtorno de adaptação e transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de canabinóides, quando ficou internado entre 29 de janeiro e 11 de fevereiro de 2021, e foi dispensado por não ter sido observado sintomas de gravidade, segundo um atestado assinado na ocasião.

Em 10 de março deste ano, uma psiquiatra do Hospital da Polícia Militar de Belo Horizonte sugeriu licença de cinco dias a partir dessa data e que ele deveria retornar depois do período para reavaliação. Esse encaminhamento foi feito depois que uma tenente médica, sem especialidade em psiquiatria, recomendou a consulta com “urgência”, já que ele estava desde junho de 2021 sem o acompanhamento da médica especializada em dependência química e passou pela psicóloga da PM em fevereiro de 2022. “Refere insônia, crises de pânico, problemas conjugais e financeiros, sua família mora em Barbacena”, escreveu, além do uso de medicação controlada. O diagnóstico continuou como estresse grave e transtorno de adaptação e transtornos mentais e agora também de transtorno depressivo recorrente.

Essa licença foi homologada pela Junta Central de Saúde (JCS) da PM. Quando o período terminou, Anderson encaminhou um novo pedido de prorrogação do afastamento, assinado por um psiquiatra particular que recomendou 15 dias, a partir de 15 de março. A JCS, porém, homologou apenas sete dias de licença. Não há no documento justificativa sobre a concessão de dias ser inferior à recomendada. O enquadramento mencionado é apenas da Resolução 4278/2013 na qual o artigo 34 estabelece que o período máximo de afastamento é de 30 dias, consecutivos ou não, e nos artigos 37 e 38 que condicionam as prorrogações à perícia de saúde – esta que foi marcada para o dia 22 de março, quando Anderson deveria retornar ao batalhão. Foi após essa data que ele ficou desaparecido por dois dias e tentou suicídio, segundo a família.

Depois, o CAM passou computar sua ausência e policiais militares passaram a procurá-lo na casa da esposa, na casa da mãe, mas sem sucesso. “Os policiais passaram várias vezes em casa perguntando se eu estava escondendo ele, como se fossem capturar um bandido. Ele nunca ficou tanto tempo longe de casa e só depois ele disse que foi para longe acabar com isso porque não queria fazer [cometer suicídio] perto de mim e da filha”, conta Elizabeth, chorando.

Segundo Anderson, a PM não lhe comunicou quantos dias haviam sido homologados para a licença e no mesmo período ele já estava pior. “Eu já andava na rua meio transtornado e decidi me internar numa clínica de reabilitação para colocar minha cabeça no lugar”, afirma. “No dia 31 de março, eu dei entrada na clínica, o plano [de saúde] passou direitinho, mas depois chegou uma carta da PM de que eu fiquei mais de nove dias sem ir ao quartel”.

A clínica recebeu um ofício do 9º Batalhão da PM em 6 de abril comunicando sobre o crime de deserção e solicitando documentação para comprovar a condição de saúde do soldado. No atestado assinado pelo psiquiatra Jorge Luiz Nunes Almas, é descrito que Anderson teve agravamento da depressão “com sintomas psicóticos”, além de “ideias de autoextermínio, crise de choro fácil, ideias de ruína e menos valia, ansiedade exacerbada com reação aguda ao trauma, difícil resposta terapêutica, sem condições de tratamento ambulatorial” e sem previsão de alta. Segundo Anderson, o convênio da PM só foi mantido em relação ao seu tratamento. “Mas não é uma garantia porque a gente não sabe se vai ser cortado. Cortaram meu salário, meus benefícios, e o plano médico que a minha filha usava para fazer tratamento psicológico”.

“O que eu só quero é me tratar, me cuidar, lutar pela minha filha, pela minha esposa, pela minha liberdade e dignidade, eu fui criado sem pai e sei o que é ser criado sem pai, e não quero deixar minha família desamparada”, afirma Anderson.

“A gente espera que o Anderson deixe de ser tratado como criminoso porque a Polícia Militar arrasou com a minha vida, só destruiu a minha vida, a da minha filha e a do Anderson”, lamenta a esposa.

Ponta do iceberg

A pedido da reportagem, Fernanda Cruz, pesquisadora do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES), analisou o inquérito de deserção contra Anderson e considerou que há um intersecção de elementos que culminaram no sofrimento do soldado. “Tem o racismo, atuações arbitrárias, e de como a polícia tem lidado com questões de saúde mental. Esses aspectos vão se cruzando e moldando essa trajetória de sofrimento. A questão da saúde mental é totalmente desastrosa: no momento que o policial mais precisa da instituição e, por uma coisa gerada pela própria instituição, é onde ele encontra mais portas se fechando. A insensibilidade da forma que o caso é tratado me chama muito a questão mesmo olhando só para os documentos”, avalia.

Fernanda aponta que de forma geral no Brasil a defasagem de profissionais para atendimento focado em saúde mental prejudica os policiais em situação de sofrimento, mas há questões estruturais que inviabilizam a procura por ajuda. “A carência de psiquiatras faz com que eles procurem atendimento de fora, como aconteceu com esse policial, mas tem outras questões que também impactam que são pressões muito fortes para que esses policiais não adoeçam e que voltem o quanto antes ao trabalho, com a ideia de que policiais são fortes e que se apresentam algum problema é porque estão fingindo para conseguir uma licença e atuar em outro trabalho e ganhar dinheiro às custas da corporação”, analisa. “Nesse caso, me parece que ele entrou numa espiral de burocracias previstas no procedimento disciplinar até que culminou na [investigação de] deserção dele e em nenhum momento olharam para aquele indivíduo, porque se é um policial exemplar, que tem elogio [na ficha], não pensaram por que esse policial está faltando [no batalhão]? E parece que não teve esse olhar do agente como pessoa humana para além de uma matrícula”.

O diagnóstico também é corroborado por Juliana Martins, psicóloga e coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e por outros PMs da ativa ouvidos pela Ponte que disseram ser comum a Junta Central de Saúde conceder menos dias de afastamento do que os recomendados em atestado. “É uma instituição que valoriza muito aspectos de virilidade, masculinidade, força, o policial é um herói e tem que ser forte. Então, quando esse policial entra em sofrimento, ele não é bem visto dentro da organização, de forma geral, e é visto com desconfiança”, pontua Juliana.

A psicóloga destaca que o caso de Anderson também é complexo porque ele já entrou na corporação depois de recorrer ao Tribunal de Justiça. “A parte da saúde mental é só a ponta do iceberg porque desde o começo da história do Anderson já não queriam que ele entrasse na polícia e ele entra por liminar [decisão judicial], então parece que ele está desafiando a corporação desde o seu ingresso”, aponta. “É uma série de fatores que culminam numa situação de grande sofrimento que vão desde que ele é abordado como suspeito de estupro da própria filha, isso teve um impacto na família dele e a filha está sofrendo até hoje as consequências de estresse pós-traumático. A gente não tem como não dizer que o racismo dentro da polícia e o olhar que aqueles policiais tiveram na hora de abordar o Anderson, a gente vê as imagens logo depois que ele é preso, com dente quebrado, todo machucado, mesmo dizendo que é policial, a abordagem que foi feita com ele sendo policial foi daquela maneira, imagine não sendo policial. As organizações policiais precisam reconhecer o racismo estrutural e pensar ações para enfrentá-lo”.

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As duas especialistas apontam que é necessário haver um protocolo mínimo de assistência nas unidades, com equipes qualificadas, mas especialmente a desconstrução do tema e abordagem aprofundada sobre saúde mental, já que os policiais negros também acabam tendo o sofrimento amplificado por conta do racismo. “As polícias precisam ter, não só a de Minas Gerais, um setor específico psicossocial que possa ouvir esses policiais, acolhê-los, que possa naturalizar o sofrimento mental, tirar o tabu. Se o policial procura ajuda, ele precisa ter ajuda da sua organização, porque tanto os casos de suicídio quanto de letalidade policial as corporações acabam lidando como casos isolados e individuais, como uma exceção, sendo que não se faz uma reflexão institucional sobre os fatores que levam os profissionais ao adoecimento”, enfatiza a coordendora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O que diz a polícia

A Ponte procurou a assessoria da PM de MG sobre o caso de Anderson, por e-mail e por telefone, mas não houve resposta até a publicação. Caso se manifeste, esta reportagem será atualizada.

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