Jovens de favelas lançam plataforma para discutir política de drogas

    Resultado de um ano de trabalho com apoio de especialistas em segurança pública e drogas, projeto Movimentos foi lançado em 2/9 na favela da Maré, no Rio

    Jovens de favelas que integram o projeto Movimentos, lançado para discutir política de drogas e como o proibicionismo afeta as favelas | Foto: Luiza Sansão

    “Aos helicópteros dos sítios, aos ministros, está tudo liberado. Mas quem morre, quem paga, somos nós. Discutir política de drogas, pra nós, é discutir diversos direitos, que são atravessados a cada momento que um blindado entra na favela, que exploram a favela como se ela fosse o foco do problema, explorando a nós, nossos corpos, nosso dia a dia, nossa rotina. Guerra às drogas, onde? É guerra a pobre, guerra a preto. A gente tem que pautar. Não existe discussão sem a presença da favela, porque quem morre somos nós”.

    A fala do comunicador comunitário do Complexo do Alemão Raull Santiago, integrante do Coletivo Papo Reto, deu o tom do debate que se estenderia pelas próximas horas no Centro de Artes da Maré, no conjunto de favelas localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, em evento realizado na noite do último sábado (02/09) para lançar a plataforma #Movimentos: drogas, juventude e favela, que reúne 15 jovens de favelas brasileiras em torno do debate sobre política de drogas, racismo, desigualdades sociais e outras questões relacionadas à violência de Estado contra a população periférica.

    Fragmento da cartilha sobre política de drogas, primeira publicação do Movimentos, lançada no sábado. | Foto: Reprodução plataforma Movimentos

     

    Ao longo de um ano, o grupo estudou diversos aspectos que permeiam a temática das drogas no Brasil e no mundo, com o apoio de especialistas em segurança pública e política de drogas, como a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes), as pesquisadoras do CESeC Ana Clara Telles e Luna Arouca, e a jornalista e ativista de direitos humanos Rebeca Lerer.

    Segundo Julita, o Movimentos é o projeto mais importante dos últimos anos para o CESeC. “Esse projeto é central, porque esse debate é central. Para a cidade, para o país, para a favela. Não é possível mais que a gente aceite que a polícia se aproveite dessa justifica da guerra às drogas para entrar violentamente nas favelas, para matar moradores de favelas”, afirmou a supervisora do projeto, em tom emocionado, na abertura do evento. “Este é um momento de vitória desses jovens, de diferentes favelas, que vêm, há um ano, se preparando para este momento, e se preparando para serem agora, realmente, a voz da favela quando se discute política de drogas”, completou.

    Equipe do projeto Movimentos, no evento de lançamento. | Foto: Reprodução/Facebook Movimentos

    O primeiro resultado desse trabalho foi o lançamento, no sábado, de uma cartilha sobre política de drogas, por meio da qual os jovens do Movimentos conclamam a sociedade para debater o tema e defendem a necessidade de os moradores de favelas serem ouvidos neste debate. 

    Para discutir o assunto, o evento de lançamento foi aberto com uma mesa debatedora composta pela pesquisadora na área de Filosofia Política e feminista Djamila Ribeiro, o historiador, fundador e professor no Movimento Uneafro-Brasil, Douglas Belchior, a colunista do jornal O Globo Flávia Oliveira e o morador de Caxias, estudante de Comunicação Social e editor do jornal Voz da Baixada Jefferson Barbosa, representando o grupo no debate, que foi mediado por outra integrante do Movimentos, a moradora do Alemão Daiene Mendes. Tudo foi transmitido em tempo real na página do projeto, no Facebook.

    “O Movimentos é tão importante, porque a gente tem uma ideia de que basta ser negro que a gente sabe o que isso significa, e a gente não nasce tendo consciência da opressão que a gente sofre. Por isso que é tão importante a gente se organizar coletivamente. Por isso que é tão importante a gente poder ter acesso a outras narrativas. E, trabalhando com jovens durante muito tempo, percebemos que, muitas vezes, acabamos reproduzindo um discurso do qual somos vítimas, porque a gente tem um sistema de educação totalmente precarizado, o modo como a mídia trata essas questões, nesses programas que muitos de nós acabamos assistindo, de criminalizar a pobreza. Da forma como as coisas são tratadas, muitas vezes a gente não sabe o que é a política de drogas e naturaliza muitas das violências que a gente sofre. Por isso é tão importante estarmos em espaços coletivos para desconstruir esse tipo de ideia”, disse Djamila Ribeiro durante o debate.

    Da esquerda para a direita, Daiane Mendes, Djamila Ribeiro, Douglas Belchior, Jefferson Barbosa e Flávia Oliveira, que compuseram a mesa debatedora do evento. | Foto: Luiza Sansão

    “Jovens de favelas não têm acesso a esse debate”

    Em entrevista à Ponte, Jefferson, de 20 anos, falou sobre a importância de jovens de favelas, principais impactados pela atual política de drogas, disputarem a narrativa sobre o assunto. “É a gente que está morrendo, justamente pela maneira como o Estado encara a gente, a partir da lógica do enfrentamento, da guerra. A gente precisa iniciar esse debate a partir das nossas vivências, mas também, no caso do Movimentos, a partir da compreensão desse debate, porque muitas vezes os jovens de favela não fazem esse debate porque também não têm acesso a ele”, diz o comunicador.

    O comunicador comunitário Jefferson Barbosa, de 20 anos, durante evento de lançamento da plataforma Movimentos. | Foto: Luiza Sansão

    E a quem esse debate precisa chegar? A ideia é atingir a sociedade como um todo, mas a cartilha visa a informar principalmente moradores de favelas, segundo Jefferson. “O próximo passo é a gente consolidar um trabalho de diálogo nos nossos territórios, onde nós vivemos. Nas igrejas, nas escolas, nos grupos de WhatsApp, nas ONGs, nas associações de moradores. É a gente consolidar esse diálogo direto. A cartilha é um material didático, as redes sociais são um trabalho de disputa da narrativa midiática, mas o essencial é o trabalho de fazer isso corpo a corpo, falando com os nossos pares”, conta.

    Os jovens ainda não faziam esse diálogo em seus próprios meios, segundo ele, porque não entendiam como comunicar essas ideias, justamente uma das razões pelas quais o projeto foi criado. “A gente nunca tinha sequer ouvido sobre isso numa perspectiva que a gente entendesse. O Movimentos tem essa coisa bacana de comunicadores, de, ao mesmo tempo em que a gente estava entendendo tudo isso, está entendendo como comunicar isso, com a igreja, por exemplo. Porque é um tabu na sociedade como um todo, mas com a igreja neopentecostal, que é muito forte nas periferias, a gente precisa falar sobre isso, senão não vai resolver”, afirma.

    Simbolismo

    A escolha do local foi simbólica: em vez de um espaço no centro da capital fluminense, o grupo escolheu o Centro de Artes da Maré para ser o cenário do evento, que ficou lotado. Segundo Luna Arouca, não faria sentido fazer o evento em outro lugar, uma vez que a ideia central é “criar espaço para que os jovens das favelas sejam protagonistas desse debate” e foi na Maré que muitos dos encontros, oficinas e debates do grupo se deram no decorrer dos últimos 12 meses de desenvolvimento do projeto.

    “O lançamento tinha que ser numa favela, pra gente mostrar a potência desse espaço, movimentar esse debate dentro da favela, mostrar que há milhares de jovens, assim como esses que compõem o grupo, que são muito potentes. São artistas, são intelectuais, que estão pensando propostas para mudar o país. Então escolhemos fazer na Maré, que é um lugar que acolheu a gente”, conta a pesquisadora à Ponte.

    Depois do debate, tudo virou festa: teve sarau de poesia e de música, com a rapper Mc Martina e a compositora Jéssica Souto, ambas moradoras do Alemão e integrantes do Movimentos. Do lado de fora do Centro de Artes da Maré, havia DJ’s conduzindo a festa ao som de funk e rap.

    O Centro de Artes da Maré ficou lotado no lançamento do Movimentos. | Foto: Luiza Sansão

    Realidade 

     

    Para a compositora e integrante do grupo, Jéssica Souto, de 24 anos, o primeiro passo a ser dado no país é o controle do mercado de drogas pelo Estado. “Muita gente entende a legalização como liberação, mas liberado é como está hoje. Todo mundo consome, compra em qualquer lugar. Falar de legalização é pensar num mercado que regule e controle”, explica, em entrevista à Ponte.

    “A atual política de drogas é pensada por pessoas que não vivem a realidade da favela, mas as consequências sobram pra quem está dentro da favela. E aí, como você constrói uma proposta para uma realidade que você não vive? É fundamental que a favela seja ouvida, que a gente participe desse debate”, defende.

    Ela conta que, antes de iniciar o processo de formação no Movimentos, não associava as violações de direitos humanos praticadas por policiais dentro das favelas à proibição das drogas. “Praticamente todo mês tinha tiro pegando na parede de casa e vizinhos, conhecidos, parentes que morriam, e eu nunca tinha relacionado isso à proibição das drogas, substâncias que as pessoas usam por vontade própria, que elas têm a escolha de usar ou não. A única maneira que vejo hoje com que o Estado pode intervir nisso é por meio da saúde e da educação: informar o que é a substância, como ela pode prejudicar seu organismo e te apoiando caso você precise de tratamento”, diz Jéssica, que mora no Alemão.

    A compositora e moradora do Alemão, Jéssica Souto, integrante do Movimentos, durante o evento. | Foto: Luiza Sansão

    “Para a mídia, é tabu”

    Uma das críticas dos jovens que integram o Movimentos direciona-se à maneira com que os grandes veículos de comunicação tratam a temática das drogas em reportagens. “A cartilha fala sobre as substâncias, efeitos, danos, uso, abuso e tem o intuito de desmistificar o tema das drogas e fazer com que esse debate seja mais acessível, principalmente para os moradores de favelas. Então é pra levar esse assunto pra favela e também pra grande mídia, que ainda trata droga como tabu”, diz Jéssica.

    Para ela, o fato de a maior parte da imprensa não entrar em favelas para produzir suas reportagens prejudica a maneira com que a realidade dos moradores é retratada perante a sociedade. “Acho que a grande mídia não está se importando com o que está acontecendo nas periferias. Uma maneira de mostrar que se importa e está disposta a somar seria chegar junto, vir e conhecer o olhar do favelado. Mas, infelizmente, há uma escolha deles de estarem à parte, né? Um tempo atrás, demos entrevistas e todas tiveram que ser marcadas fora da favela porque eles não quiseram nem entrar. Isso mostra bem que a grande imprensa não se importa. Pra gente isso é muito claro e é uma pena, porque a grande mídia é formadora de opinião”, critica a jovem.

     

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