Jovens negros foram presos por um roubo de carga cometido quando estavam dormindo, afirmam famílias

    Augusto, Diego e Rafael estavam dentro de casa, dormindo, quando a Polícia Militar entrou na residência de Diego, no Jardim Ângela, periferia de SP, e os levou para a delegacia para averiguação

    Augusto, Diego e Rafael foram presos enquanto dormiam | Foto: Arquivo pessoal

    O expediente terminou tarde no segundo domingo do ano para os amigos Diego Gomes da Silva, 21 anos, e Rafael Erlan Ferreira de Moura da Silva, 18 anos. Eles ficaram na pizzaria, onde fazem entregas, até 1h da manhã do dia 11 de janeiro de 2021. Por conta disso, Rafael dormiu na casa de Diego, na rua das Margaridas Amarelas, no Jardim Ângela, periferia da zona sul da cidade de São Paulo.

    Naquele dia, os jovens acordaram tarde, por volta das 11h50. Dormiriam mais se não tivessem sido surpreendidos pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, que entrou na casa atrás de quatro suspeitos de realizar um roubo na mesma rua por volta das 11h. Além de Diego e Rafael, o estudante Augusto Ferreira de Souza, 18 anos, também dormia no mesmo quarto.

    Os policiais militares levaram os três amigos e outro jovem, de 22 anos, que entrou no quintal da residência para se esconder e teria sido um dos assaltantes. Essa foi a versão narrada pela auxiliar de serviços gerais Edilaine Ferreira de Moura, 35 anos, mãe de Rafael, e Sheila Aparecida Gomes de Resende, 37 anos, mãe Diego Gomes, que também trabalha na pizzaria com os meninos, à Ponte.

    Os PMs Diego de Souza Saldanha e Renato Oliveira Barros Junior haviam dito para dona Sheila que eles seriam levados para a delegacia apenas para averiguação. Mas, desde aquele dia, Augusto, Diego e Rafael estão presos pelo crime. O caso é acompanhado pela Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio e pelo Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Campo Limpo.

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    Segundo a versão narrada pelos PMs, e registrada pelo delegado Fabiano Vieira da Silva, do 100º DP (Jardim Herculano), eles estavam patrulhando a região e foram acionados para um roubo de carga na rua das Margaridas. Chegando lá, viram várias caixas abandonadas em um matagal. Ao lado do veículo Fiorino estava a vítima, que contou que quatro homens a roubaram.

    A vítima, ainda de acordo com o depoimento dos PMs, forneceu as características dos suspeitos e afirmou que teria condições de reconhecê-los. No depoimento dado na delegacia, a vítima apontou que dois homens o abordaram na Estrada da Cachoeira, 130, por volta das 11h, o mandaram parar, mas sem visualizar nenhuma arma ele não parou.

    Mais para frente a vítima afirma que foi abordada por mais dois homens, armados, que anunciaram o assalto, jogando a mercadoria na rua e roubando seu celular. Segundo a vítima, Augusto teria sido um dos dois suspeitos que o abordaram primeiramente e Diego e Rafael posteriormente, em posse da arma de fogo.

    Os policiais ainda apontaram que encontraram os quatro suspeitos conversando na rua e que os abordaram. Na delegacia, os quatro foram reconhecidos “sem sombra de dúvidas” pela vítima. Os PMs afirmaram ainda que nada de ilícito foi encontrado com os jovens. No processo, o delegado Fabiano Vieira da Silva apontou que os quatro jovens permaneceram em silêncio durante os depoimentos.

    O que a folha de reconhecimento não diz é se o procedimento cumpriu o que recomenda o artigo 226 do Código de Processo Penal, que diz que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”.

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    Apesar de as versões contraditórias, em 12 de janeiro, o promotor Pedro André Picado Alonso, do Ministério Público de São Paulo, solicitou a conversão da prisão em flagrante para a prisão preventiva, afirmando que evidenciava a “necessidade da mantença cautelar” para “absoluta garantia da ordem pública”, já que o crime praticado “é de extrema gravidade” por assolar a “sociedade de bem”.

    No mesmo dia, a Polícia Civil, por meio do delegado Fabiano Vieira dos Santos, encerrou o inquérito policial, sem solicitar qualquer prova contra os jovens, apoiando-se apenas no relato dos PMs.

    Também no dia 12 de janeiro, o advogado Alex Oliveira Santos, que à época cuidava da defesa de Augusto, Diego e Rafael, solicitou o relaxamento da prisão, alegando que a prisão em flagrante ocorreu “de forma totalmente diversa do relatado” já que os policiais militares ou a vítima não descreveram as características dos suspeitos. O advogado também informou que os jovens não foram detidos na rua, como relatado pelos PMs, mas dentro de casa.

    A juíza Adriana Barrea, do Tribunal de Justiça de São Paulo, converteu a prisão dos três jovens em preventiva (prisão provisória enquanto aguardam julgamento), alegando a primariedade de Augusto, Diego e Rafael não eram o bastante para não prendê-los pelo crime. A juíza também destacou um processo contra Diego pela Vara da Infância, em 2005, que foi arquivado pela Justiça.

    Augusto, Diego e Rafael foram encaminhados, inicialmente, para o Centro de Detenção Provisória de Belém II, na zona leste da cidade de SP, e posteriormente Augusto e Diego foram encaminhados para o CDP de Osasco e Rafael para o CDP de Mauá, ambos presídios na Grande SP.

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    Em 20 de janeiro de 2021, o advogado Alex solicitou novamente a revogação da prisão dos três jovens, pontuando a prisão deles era uma “verdadeira arbitrariedade e abuso de poder por parte dos policiais militares” e citando a reportagem da TV Record, exibida no mesmo mês.

    O advogado pontua que familiares e vizinhos presenciaram a abordagem policial feita dentro de casa e a condução dos jovens até a delegacia. O advogado também anexou ao processo prints de conversas de Rafael com a ex-namorada, que aconteceu das 10h54 até às 11h16 daquele dia, coincidindo com o horário do roubo.

    Prints da conversa de Rafael com a ex-namorada no horário do roubo

    Em 29 de janeiro, o promotor Danilo Palamone Agudo Romão, do MP-SP, se posicionou contra o relaxamento da prisão dos três jovens, alegando que não era o momento para tratar das questões citadas pela defesa. A família de Rafael trocou de advogado em 2 de fevereiro, passando a contar com o advogado Wagner Macedo. A próxima audiência do caso está marcada para 8 de março às 15h.

    A pedido da Ponte, a advogada criminalista Débora Roque, integrante da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, analisou o processo. Para a especialista, a única prova contra Augusto, Diego e Rafael, até o momento, é o reconhecimento da vítima.

    “A lei processual penal descreve que, quando há a necessidade do reconhecimento, a pessoa que vai reconhecer deve fazer uma descrição prévia da pessoa que deva ser reconhecida. Tal descrição deveria constar no inquérito de forma detalhada, mas apenas é citado que a vítima descreveu”, aponta.

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    Essa descrição, continua Roque, é importante porque o Brasil possui um processo penal acusatório, onde serão respeitados principalmente o direito da pessoa acusada se defender, ou seja, a garantia da ampla defesa.

    “Uma pessoa, vítima de um crime, foi até a delegacia e confirmou a participação de outra pessoa no crime, como se defender desse fato? Sabemos que existem muitos casos sobre reconhecimentos errôneos de vítimas e testemunhas, mas o sistema judiciário não leva em consideração essa questões”, avalia Roque.

    Para a advogada, se a descrição, conforme consta na lei, fosse feita o processo teria mais segurança. “Outra garantia violada em muitos casos é o princípio da presunção de inocência, onde uma pessoa só será considerada culpada com uma sentença condenatória transitada em julgado, que não caiba recursos”.

    Débora Roque também chama atenção para o fato de que 40% da população carcerária está presa em prisões provisórias, como é o caso dos meninos, e muitas sequer foram julgadas, assim como eles.

    “Precisamos falar dessa banalização da prisão provisória, que traz consequências gravíssimas para as pessoas acusadas, e ainda não resolve as questões da violência. Imagine que, após meses aguardando julgamento, a pessoa seja considerada inocente? Nada poderá apagar as violações sofridas no cárcere por essa pessoa”.

    Famílias lutam para provar inocência dos jovens

    Em entrevista à Ponte, Edilaine Ferreira de Moura, 35 anos, auxiliar de serviços gerais e mãe de Rafael, lamenta a prisão do filho. Ela conta que, durante o tempo que esteve na delegacia, no dia da prisão dos meninos, as famílias foram humilhadas pelos policiais.

    “O delegado disse que eles seriam presos porque a vítima os reconheceu. Eu questionei como havia reconhecido se, na hora do assalto, eles estavam dentro de casa. O delegado disse que eles seriam presos e que deveríamos sair de lá”, denuncia.

    Dona Edilaine também aponta que o reconhecimento foi feito de maneira irregular. “Só estavam os quatro na delegacia, os três e o outro rapaz. O delegado não quis nos ouvir em nenhum momento, só falou que eles eram culpados e pronto”.

    Filho mais velho de três irmãos, Rafael parou de estudar na quinta série para começar a trabalhar e ajudar a mãe. “Um dos policiais militares virou para mim e falou: ‘é preto, pobre, mora na favela, então são tudo bandido, senhora’. Aí eu respondi que meu filho não é bandido, que ele trabalha desde os 9 anos de idade. Quando não tem bico na pizzaria, meu filho vende até água no farol. Ele sempre trabalhou para me ajudar”, completa a mãe de Rafael.

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    “Tá sendo muito difícil. Tem um mês que não vejo o meu filho, não falo com ele. Ainda não consegui fazer a carteirinha e não tive retorno da carta que eu enviei”, desabafa aos prantos. “Rafael sempre batalhou, sempre ajudou em casa, ele quem cuidava da minha mãe, que está doente. Sempre foi um filho muito presente”.

    Para a mãe, a prisão é uma injustiça. “Ninguém quer aceitar a nossa versão, as provas que conseguimos levantar. É horrível saber que o seu filho está preso por algo que ele não cometeu. Como você tira três pessoas de dentro de casa, fala que foram eles e fica por isso mesmo?”.

    A manicure Fabiana Ferreira de Souza, 25 anos, irmã de Augusto, conta que o jovem foi para casa de Diego com a namorada. “Ele é muito estudioso, nunca precisou pegar nada de ninguém. O dia a dia dele é ir de casa pra escola e da escola para casa”.

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    “Tá sendo muito difícil para gente, para mim, para minha mãe, para os minhas filhas. Ele é muito carinhoso, sentimos falta disso. Ele nos mandou uma carta falando que vai sair de lá, que éramos para mantermos a fé. A prisão deles é absurda, quem tem que tá preso não tá. Eles estão presos por algo que não fizeram”.

    Sheila Aparecida Gomes de Resende, 37 anos, mãe de Diego, conta que deixou os policiais entrarem porque sabia que os meninos não tinham feito nada. “Os policiais mandaram os homens saírem, aí saiu o Augusto primeiro, depois o Rafael, que estava na beliche, e o meu filho que estava em cima”.

    “Na delegacia foi bem constrangedor. Os meninos ainda ficaram na viatura um tempo. Aí o delegado começou a xingar todo mundo, foi um absurdo. Não deram chance para os meninos falarem. A única pessoa que foi ouvida foi a vítima”.

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    Dona Sheila conta que o último mês foi muito difícil para a família. Ela conta que Diego também precisou parar de estudar para trabalhar, estudando até a oitava série. “Meu filho é um menino de ouro, tem muitos amigos e família. Ele trabalha na pizzaria comigo e com o Rafinha. Todo mundo gosta dele. Somos pobres, estamos nos endividando para pagar advogado e para eles que não fizeram nada deve tá sendo mais difícil”.

    Outro lado

    A reportagem procurou as assessorias do Ministério Público de São Paulo e do Tribunal de Justiça de São Paulo, questionando a manutenção das prisões, e aguarda retorno.

    Também procuramos as assessorias da Secretaria da Segurança Pública e da Polícia Militar, solicitando entrevista com os policiais citados na reportagem, e com as seguintes perguntas:

    1) A Polícia Civil não precisa investigar os casos levados pela Polícia Militar?
    2) Basta a versão dos policiais militares e o reconhecimento para prisões por roubo?
    3) Como a SSP e a PM enxergam casos como esse, em que há alegação de prisão injusta?
    4) Quais medidas a SSP e a PM estão tomando para evitar prisões injustas?
    5) Em caso de prisões confirmadas como injustas pela Justiça, qual a punição que a SSP e a PM dão aos policiais?

    Como resposta, recebemos a seguinte nota:

    “A Polícia Civil informa que os autores citados foram presos em flagrante e reconhecidos pela vítima, conforme os procedimentos de polícia judiciária realizados nos termos da Lei. O inquérito relativo ao caso foi concluído e relatado ao Poder Judiciário”.

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