Artigo: A “turba do bem” e o linchamento de um juiz

    Jornalista que foi vítima de abuso no metrô critica ‘justiceiros das redes sociais’ que atacam juiz e não as falhas da lei

    Há um pouco mais de dois anos, um homem ejaculou na minha calça no Metrô de SP. Eu fiz o barulho que eu pude na época e perdi noites de sono com medo da repercussão, mas, como jornalista, eu acreditava que aquilo era um dever. Eu tinha ali a chance de dar voz a muitas outras mulheres que passaram pela mesma coisa que eu. Apesar da coragem que é preciso para expor um caso como este, eu ainda era uma mulher tendo que lidar emocionalmente com a sensação de ser violentada e invadida diversas vezes, tanto pelo abusador quanto por aqueles que duvidavam de mim.

    Veja outro ponto de vista: O estupro, as neves eternas da legalidade jurídica e a esquerda “racional”

    Na época, achei um absurdo o Boletim de Ocorrência ser registrado como Importunação Ofensiva ao Pudor. Cobertura de crimes era a minha área de atuação, então, de cara, eu sabia o que aquilo significava. Mesmo se ele tivesse sido detido, o abusador teria entrado e saído pela mesma porta que eu, além de não surpreender ninguém caso tivesse uma coleção de termos circunstanciados.

    Mas o que não pensei na época é que, mesmo que o B.O. tivesse sido registrado como estupro, lá na frente, esse caso cairia nas mãos de um juiz, que teria que aplicar a lei para tal crime. O resultado seria o mesmo. O abusador acabaria solto, porque a lei do estupro não se aplica a esses casos. Mesmo que o juiz entendesse como estupro, facilmente um advogado conseguiria reverter a decisão, não por querer um cara como este livre, mas porque não existe uma lei específica para mantê-lo preso.

    O artigo 213 do Código Penal é claro sobre como se dá um crime de estupro: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Constranger para o Código Penal significa coagir, o que não aconteceu comigo e nem com a vítima do ônibus na avenida Paulista. Portanto, o artigo é frágil para aqueles que ousarem ter um entendimento ampliado dele. E, se queremos realmente prender abusadores como este, a discussão não está na decisão do juiz.

    A personalização do problema é compreensível em um primeiro momento, porque a semana foi pesada. O caso de estupro da escritora Clara Averbuck ainda estava quente e, de repente, um abusador é preso em flagrante e solto pela Justiça. A comoção é iminente, mas ela passou dos limites quando começou a superexposição do magistrado. Para que divulgar a foto deste juiz, senão para promover um linchamento, uma perseguição? E muitas atitudes duvidosas partiram de pessoas que se dizem progressistas e defensora dos Direitos Humanos.

    Fazer uma crítica geral sobre o machismo e a seletividade do judiciário é muito importante e legitimo, mas não é esse o viés que o debate tomou. A “turba do bem” quer legitimar suas ações e conclusões. Argumentos como “E se fosse a mãe, tia, filha do juiz?” tomaram conta das discussões. Isso sem falar no escárnio do evento criado, chamado de “Ejaculaço”. Passada a emoção do momento, não vejo nada além de pobreza e preguiça nesse tipo de debate.

    Jogar a responsabilidade para a decisão do juiz é ser imediatista, é ser justiceiro. Negligencia-se um debate importante e que realmente poderia mudar essa realidade, que é uma reforma na lei ou a criação de outra que contemple casos como esse. O que temos hoje é um cenário extremista. Ou o abusador pega de 6 a 10 anos de prisão ou enquadrado como um contraventor. Não dá para colocar criminosos diferentes no mesmo balaio, porque isso fere o Estado Democrático de Direito. A culpa é de uma sociedade estruturalmente machista e de um Código Penal falho. Lembrando que estender o entendimento de certas leis tem sido uma das ações responsáveis pelo encarceramento duvidoso de muito cidadão, principalmente em maior estado de vulnerabilidade. Vide muitas das prisões por tráfico de drogas.

    Quero abusadores como estes atrás das grades sem a menor dúvida de que ele é um criminoso e não um contraventor.

    O juiz precisa, sim, levar em consideração tudo que está acontecendo na sociedade, mas ele é pago para aplicar a lei e nosso problema maior tem sido os juízes que fazem o que querem com essas leis, e não o contrário. Se existe um problema, está no Código Penal, que no momento tem desamparado vítima como eu, a do ônibus na Paulista e tantas outras. O juiz deste caso poderia ter atendido a demanda dos juízes das redes sociais, mas jogaria a bola para outro colega, que aplicaria a lei e soltaria o abusador no decorrer do processo, porque assim a lei pede.

    Casos como esses são escrotos, machistas, violentos e traumatizantes, mas não são estupro perante a lei. A gente quer prender abusadores como esses ou não? Se a resposta for sim, o caminho é a reforma da lei ou a criação de outra e não o personalismo e muito menos a violência e o espírito justiceiro que encarna na gente quando o ódio e a revolta aparecem. Foco no problema! Senão, abusadores como Diego Ferreira de Novais seguirão colecionando vítimas e boletins de ocorrência.

    (*) Caroline Apple é jornalista, estudante de Ciência Política, militante de esquerda e ativista do movimento feminista

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