Juíza é punida por soltar presos provisórios sem consultar colegas

    Kenarik Boujikian determinou a libertação de réus que já haviam cumprido o tempo previsto de pena caso fossem condenados. Segundo a decisão, ela deveria ter ouvido outros desembargadores

    A juíza Kenarik Boujikian. Foto: Reprodução

    A juíza Kenarik Boujikian foi punida nessa quarta-feira (8/2) por ter determinado a libertação de presos provisórios que estavam detidos por mais tempo do que a pena prevista em suas sentenças. A decisão é do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), por 15 votos 9. A pena de censura imputada a Boujikian impede que ela seja promovida por merecimento durante o período de um ano.

    As decisões sobre 11 casos aconteceram quando a juíza integrava a 7ª Câmara Criminal do TJ-SP. Ela é acusada de ter desrespeitado o princípio da colegialidade, segundo o qual as decisões devem ser tomadas por no mínimo três desembargadores. De acordo com o desembargador Amaro Thomé Filho, revisor dos processos, Boujikian deveria ter consultado os demais integrantes do colegiado, pois os recursos julgados não apresentavam informações suficientes que caracterizassem as respectivas prisões como ilegais.

    Segundo Beretta da Silveira, relator do processo administrativo disciplinar aberto contra a juíza em março de 2016, cinco das 11 decisões apresentavam problemas, três delas de maior seriedade. De acordo com ele, em relação a estes últimos havia recursos pendentes do Ministério Público, fato que exigiria a análise dos outros membros da câmara.

    Em entrevista à Ponte Jornalismo em janeiro de 2016, ocasião em que o processo ainda não havia sido instaurado, Kenarik Boujikian explicou suas decisões: “No momento em que verifiquei que o tempo de prisão do indivíduo tinha alcançado a pena fixada pelo juiz na sentença, determinei a expedição de alvará de soltura clausulado e registrei no processo que assim o fazia por cautela, já que não havia informação nos autos de eventual soltura. ‘Clausulado’ quer dizer que o individuo não poderia ser solto se tivesse outro processo que tivesse prisão determinada, o que é uma praxe. Fiz isso de ofício, sem que houvesse um pedido, e penso que esse meu agir foi um agir prudente. Não acho que seria possível verificar essa situação e ficar de braços cruzados, fingir que não vi”, explicou.

    Outro entendimento

    Em seu voto, o desembargador Antonio Carlos Malheiros, que havia feito pedido de vista do processo em novembro do ano passado, afirmou não ver motivos suficientes para punir a juíza, já que é preciso respeitar o princípio de independência dos magistrados e não teria ocorrido dolo ou culpa.

    À revista eletrônica “Consultor Jurídico”, o advogado de defesa Igor Tamasauskas disse que avalia recorrer ao Conselho Nacional de Justiça.

    Na opinião de Marcelo Semer, juiz de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo, conceder a liberdade a réus presos cujas penas fixadas na sentença já haviam sido cumpridas “deve ser encarado como uma obrigação, não algo que se possa censurar”. “O que a juíza determinava, enfim, é exatamente o ponto em que o Conselho Nacional de Justiça criticou em relatório recente sobre o excesso prisional em São Paulo. Por essa razão, confio que o CNJ deva rever a sanção imposta. Até porque punir juiz pelo conteúdo de sua decisão é um enorme risco para a independência que, como ensina [o jurista argentino] Eugenio Zaffaroni, [integrante da Corte Interamericana de Direitos Humanos], é a premissa primeira da jurisdição”, afirma

    À Ponte, Boujikian se defendeu afirmando que em alguns casos cabe a decisão individual. “Eram casos permitidos, pois são cautelares, e, para mim, não só permitido, como devido, nos termos da Constituição Federal, pois se trata da liberdade, bem mais elevado. Todos os casos foram levados para julgamento para o colegiado, que pôde manter ou alterar a minha decisão”, disse. É o mesmo entendimento do jurista Maurício Zanoide, que, a pedido dos advogados de defesa de Boujikian, elaborou um parecer sobre o processo.

    Na entrevista de janeiro de 2016, a juíza também afirmou que o processo que estava prestes a ser instaurado demonstrava a necessidade de se repensar o procedimento das prisões provisórias, “que são, verdadeiramente, uma antecipação de cumprimento de pena”. “Temos uma população de cerca de 630 mil presos, com um crescimento bárbaro de mulheres encarceradas por crimes não violentos. Do total, cerca de 40% são presos provisórios”, disse.

    Juíza desde janeiro de 1989, Kenarik Boujikian integra a Associação Juízes para a Democracia (AJD), da qual foi fundadora e presidenta. Hoje, atua como juíza na 34ª Câmara de Direito Privado.

    * Com informações do Consultor Jurídico
    ** Colaborou Tatiana Merlino, da Ponte Jornalismo

    Leia mais:

    “Não poderia fingir que não vi”, diz juíza que pode sofrer processo por soltar presos provisórios

    Tribunal de Justiça de SP tem histórico de perseguições a magistrados que divergem da maioria

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas