Juíza ordena prisão de três jovens negros baseada em reconhecimento irregular

    Polícia abordou trio em frente de casa após carro roubado ser abandonado em rua próxima na zona sul de SP; reconhecimento feito sem respeitar Código Penal não impediu que juíza Maria Fernanda Belli mantivesse prisão

    Em sequência, Bruno dos Prazeres, Lennon Seixas e Rodrigo dos Prazeres | Fotos: Arquivo pessoal

    Quem passa pela casa de seu Junior Cesar Vieira da Silva, 52, encontra na fachada uma faixa grande pendurada pedido de “ajude-me, por favor”, em letras garrafais acompanhada da foto do filho Lennon Seixas Vieira da Silva, 27, abraçado à cachorrinha Gamora, no bairro Jardim São Luis, na zona sul da capital paulista. “Se eu não conseguir tirar meu filho da cadeia, é capaz que eu entre numa depressão profunda”, desabafa o porteiro, sem conseguir conter as lágrimas.

    Lennon foi preso junto com os vizinhos de bairro, os irmãos Bruno e Rodrigo de Souza dos Prazeres, de 27 e 31 anos respectivamente, no dia 4 de janeiro, acusados de terem sequestrado um médico, feito saques com cartão em caixas eletrônicos e roubado o carro dele na saída da AMA (Assistência Médica Ambulatorial) Parque Figueira Grande, distante a aproximadamente 1,6 km de onde o trio mora. Bruno, inclusive, fazia aniversário de 27 anos no dia e as famílias afirmam que os três foram abordados pela polícia na frente da casa dos irmãos, enquanto conversavam na rua, e que não têm relação com os crimes.

    Há dois boletins de ocorrência: um feito pela vítima e outro sobre a prisão e reconhecimento dos três jovens. De acordo com o primeiro, feito na Delegacia de Itapecerica da Serra (Grande SP) um médico de 30 anos relatou que por volta das 20h do dia 4 de janeiro estava no estacionamento do AMA onde trabalha quando foi abordado por dois homens armados que o renderam e entraram no seu veículo. A vítima afirma que permaneceu com os assaltantes por cerca de três horas, seguindo para caixas eletrônicos do bairro Jardim São Luis, onde foi obrigado a fazer dois saques, nos valores de R$ 600 e R$ 300.

    Leia também: Estudante negro foi comprar cortinas para a mãe. Acabou preso por roubo

    Em determinado momento, a vítima relata que passaram por uma comunidade onde o assaltante que dirigia pediu em uma casa para carregar o celular e que em um desses saques, um dos assaltantes retornou com um terceiro indivíduo. Depois, após não conseguirem fazer mais saques nem transferências bancárias, o médico conta que foi abandonado numa estrada de terra na cidade de Embu Guaçu, onde pediu ajuda em uma residência e ligou para a Polícia Militar.

    De acordo com a descrição feita pelo médico, os três assaltantes eram negros. Um tinha bigode, olhos pretos, cabelo crespo curto, cerca de 1,60 m de altura e aparentava ter 20 anos seria o que tomou a direção do veículo; outro usava moletom branco e shorts vermelho, tinha 1,90 m de altura e aparentava ter 17 anos. Já o terceiro usava blusa e calça pretas, máscara branca e aparentava ter 20 anos. O registro foi feito no mesmo dia, às 23h13 e a vítima foi chamada a comparecer no 47º DP após policiais terem ligado informando que encontraram o carro.

    Leia também: João foi preso em flagrante. Por um roubo ocorrido 27 horas antes

    Próximo a esse horário, por volta das 23h, no segundo boletim, os policiais militares Flavio Cristiano Gouveia e Felipe Garcia Grosso, da 1ª Cia do 1º Batalhão Metropolitano da PM, informaram que avistaram o veículo roubado em alta velocidade, sem precisar exatamente onde, e que passaram a segui-lo. Em uma das ruas que o carro entrou, na Rua José Josafá de Araújo, sem saída, os policiais disseram que viram três indivíduos desembarcando e descendo um escadão. A dupla afirma que fez a volta pela Rua Humberto de Almeida e abordaram Rodrigo e Bruno. Em revista, não localizaram nada de ilícito e que, ao entrevistá-los, Rodrigo disse que estava em casa e Bruno, passado numa adega, e que estariam com um terceiro rapaz.

    Os PMs afirmam que pediram para os dois indicarem onde moraria esse terceiro e qual seria seu nome, que se chamaria Lennon. Ao se deslocarem para o endereço, a 300 metros dali, na Rua Baltazar de Sá, alegam que viram um indivíduo e o abordaram. Os policiais disseram que perguntaram a ele se se chamava Lennon e que ele teria dito que não. Ao revistá-lo, nada encontraram de ilícito, mas que ao verificarem o RG viram se tratar de Lennon, que teria negado ser autor do roubo. Na versão policial, os três rapazes foram levados para o 47º DP (Capão Redondo), onde foram reconhecidos pela vítima.

    Porém, não há indicação de como esse reconhecimento foi realizado. O artigo 226 do Código de Processo Penal prevê que é preciso descrever os suspeitos e depois devem ser apresentadas diversas pessoas com características parecidas para o reconhecimento. Além disso, o carro do médico foi devolvido sem realização de perícia.

    Família de Lennon Seixas na Avenida Paulista, durante concentração de ato contra a retirada de passe livre para idosos entre 60 e 64 anos, em 8/1/2021 | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

    As famílias discordam da versão dos policiais. Iara Paula Souza da Silva, 60, mãe de Bruno e Rodrigo, afirma que desde as 21h os filhos estavam em casa. “O Bruno tinha voltado do trabalho como panfleteiro de uma pizzaria daqui do bairro e o Rodrigo tinha saído de uma bicicletaria onde estava trabalhando de montador. O Lennon passou aqui nesse horário e ficou conversando com eles no portão”, contesta.

    De acordo com Iara, ao invés de uma abordagem, os policiais fizeram três. “Primeiro passaram aqui dois policiais da Rocam [Ronda Ostensiva Com Apoio de Motocicletas], pediram documento do Bruno e do Lennon que estavam no portão. Os policiais tiraram foto deles, liberaram e foram embora”, conta. Lennon teria ido embora para casa também logo em seguida, segundo ela.

    Imagens de câmera de segurança de uma das casas vizinhas na Rua Humberto de Almeida mostram a abordagem policial por volta das 23h13 e, logo depois, Lennon sai caminhando pela rua. É possível ver que Lennon usava calça clara, jaqueta e boné. Dos três, ele é o único que usa bigode, segundo familiares.

    Segundo Iara, duas horas depois, os policiais voltaram à sua casa em uma viatura. “Eles bateram na porta, o Rodrigo atendeu e disse que eles estavam chamando o Bruno”, afirma. “Vieram com uma conversa de que esqueceram de devolver o documento do Lennon, mas eu vi que eles já tinham entregado, depois falaram que tinham que levar o Bruno para a delegacia para averiguação”, continua.

    Iara lembra que chamou um motorista por aplicativo para ela e o marido irem ao 47º DP, já que Bruno foi levado pelos policiais dentro da viatura. Segundo ela, Rodrigo permaneceu em casa. “Quando a gente chegou na delegacia, o Rodrigo estava saindo algemado da viatura”, afirma. De acordo com ela, os mesmos policiais retornaram à sua casa e levaram Rodrigo para a delegacia. “Disseram que levaram o Rodrigo para ser testemunha, mas testemunha de quê? Nunca vi testemunha ser presa”, prosseguiu. Ela também aponta que os filhos vestiam roupas diferentes das descritas pela vítima: Bruno estava com uma camiseta laranja e azul, calça jeans azul e tênis; já Rodrigo usava uma blusa com a marca Nike cinza, calça azul e tênis.

    Leia também: Inocente, Wilson passou 32 dias preso. Para a Justiça, ele não merece reparação

    Dona Maria José Narciso da Silva, mãe de Lennon, aponta que estava saindo de casa por volta das 20h25 quando cruzou com o filho na porta. “Eu trabalho de faxineira na garagem de uma empresa de ônibus e assim que estava saindo, meu filho estava chegando”, afirma. Ela acredita que ele estava na casa de amigos, já que um deles, Claudemir Damasceno, 37, disse à reportagem que o cumprimentou na Rua José Maria Schumak, onde mora e que é próxima da casa de Lennon, por volta desse horário. “A gente tem certeza que não foi ele porque ele passou por aqui, trocou uma ideia com a gente por uns cinco minutos e seguiu”, disse Claudemir à reportagem.

    Lennon teria passado na casa dos irmãos para parabenizar Bruno. Depois da primeira abordagem, retornou para casa e foi passear com a cachorrinha, segundo o pai. “A minha filha estava em casa quando ele chegou. Os policiais bateram na porta falando que iam levar o Lennon para averiguação”, conta Junior Cesar. “Ele chamou minha filha e ela foi atrás para a delegacia. Eu estava trabalhando de porteiro e a minha esposa na faxina, tudo isso de madrugada”, prossegue.

    Leia também: Reconhecidos por foto, irmãos negros têm álibis ignorados pela Polícia Civil e pela Justiça

    Tanto as famílias quanto a Ponte percorreram as ruas do bairro e questionaram os donos de residências e estabelecimentos com câmeras de segurança. Na casa de onde foi extraída e gravada parte da abordagem mostrada acima, o dono argumentou que não tinha mais as gravações as quais se apagavam automaticamente. Em outros locais, a resposta também não foi diferente: ou os equipamentos não funcionavam ou regravavam por cima das filmagens anteriores, sem armazenar o conteúdo.

    A reportagem também tentou buscar um vizinho que aparece na filmagem observando toda a abordagem, mas a pessoa não quis dar entrevista. Para seu Junior Cesar, moradores têm medo de algum tipo de retaliação. “A gente sabe que o tipo de abordagem da polícia aqui na periferia é diferente. Eu trabalho no Morumbi e vejo isso”, desabafa.

    De acordo com ele, o filho estava desempregado e a família estava juntando dinheiro para comprar uma churrasqueira. “Ele queria vender churrasquinho para ajudar a gente em casa”, lamenta Junior. “Eu tenho 100% de certeza que meu filho é inocente. Levaram meu filho porque ele é negro”.

    Leia também: O reconhecimento de um nariz, via WhatsApp, levou Anderson a ser preso por roubo

    No indiciamento e no relatório de investigação, o delegado Antonio Carlos Renno Miranda, do 47º DP, usou apenas como prova o reconhecimento feito pela vítima. A vítima apontou Lennon como o motorista, Rodrigo como o que o rendeu com arma no banco de trás do carro e Bruno como o terceiro integrante que apareceu depois. A promotora do Ministério Público de São Paulo Maria Luiza Motomo Matusaki também acusou os três de extorsão (com agravante de ter sido cometido por duas ou mais pessoas sob ameaça, emprego de arma de fogo e com restrição da liberdade da vítima) e roubo (com os mesmos agravantes) com o mesmo entendimento. A denúncia do Ministério Público foi aceita pela juíza Maria Fernanda Belli, do Tribunal de Justiça de São Paulo, na última sexta-feira (22/1). Agora o caso entra na fase de instrução, quando são marcadas audiências e as partes reúnem provas e testemunhas são ouvidas.

    Reconhecimento como único elemento é prova frágil, diz especialista

    Para Ingrid Leão, doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP, professora da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e articuladora da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, o reconhecimento como único elemento para acusar alguém de um crime é uma prova frágil. “Já existe uma decisão no STJ [Superior Tribunal de Justiça], de dezembro de 2020, que aponta que o reconhecimento não é suficiente para condenar alguém, ainda mais não seguindo os procedimentos legais”, analisa.

    A professora se refere a uma decisão proferida pelo ministro Rogerio Schietti Cruz (leia aqui) que revertia a condenação de um homem acusado de cometer um assalto a mão armada num ônibus em São Paulo que teve como base apenas o reconhecimento do motorista. O ministro destaca que a vítima não descreveu as características do suspeito e a autoridade policial não procurou pessoas com perfis semelhantes para serem agrupados ao lado do suspeito e assim ser feito o reconhecimento. Cruz é o mesmo ministro que decidiu, em outubro de 2020, que reconhecimento por foto também não é suficiente para condenar alguém, destacando que o reconhecimento de pessoa, seja presencial ou por fotografia, só é apto quando segue as formalidades do artigo 226 do Código de Processo Penal e quando tem outras provas colhidas durante a fase judicial.

    De acordo com as famílias, não havia outras pessoas para serem reconhecidas além dos três jovens. Elas também acreditam que fotos deles podem ter sido mostradas para a vítima antes, já que Iara, mãe de Rodrigo e Bruno, afirma que os policiais fotografaram o trio na abordagem.

    Ajude a Ponte!

    Para Ingrid Leão, o registro na delegacia também não deixa claro o por que os policiais decidiram abordar os rapazes. “O policial atribui um atestado de culpa os rapazes estarem na rua ou, segundo eles, o Lennon ter dito, de acordo com o B.O., que não se chamava Lennon”, critica. Ela também aponta que o fato da vítima ser um médico branco traz uma mudança de tratamento em relação ao caso. “A gente não pode deixar de levar em consideração de que se trata de um médico, os policiais querem mostrar serviço e solucionar logo o caso”, enfatiza.

    Outro lado

    A reportagem entrou em contato com a Secretaria Municipal de Saúde, responsável pela AMA, e solicitou as imagens das câmeras de segurança do estacionamento da unidade, já que a defesa de Lennon tentou requisitá-las, mas não conseguiu e também não obteve resposta em pedido ao Tribunal de Justiça. Em nota, a assessoria declarou que está dando apoio ao médico, mas que “tendo em vista o princípio constitucional da proteção à intimidade das pessoas, o risco à segurança da Unidade de Saúde, seus funcionários e pacientes, as imagens das câmeras de segurança são divulgadas apenas para fins policiais”. E negou o pedido.

    Também procuramos a Secretaria da Segurança Pública e solicitamos entrevista com os policiais e com o delegado que registrou a ocorrência, bem como questionamos sobre a versão das famílias e do reconhecimento realizado. A In Press, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte nota:

    A Polícia Civil esclarece que os três homens foram presos em flagrante e reconhecidos pela vítima, que indicou a conduta deles durante o crime. O inquérito policial foi concluído, após as diligências necessárias, e relatado ao Poder Judiciário neste mês. Todos os procedimentos de polícia judiciária no flagrante foram realizados nos termos da legislação vigente.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas