Júri condena a 16 anos de prisão PM de folga que matou jovem negro por causa de celular

Jurados não acolheram versão de legítima defesa do cabo Silvio Neto; policial declarou ter reagido a tentativa de roubo, mas aparelho foi encontrado dentro do carro do próprio PM, em 2021

Em sequência: cabo Silvio Pereira dos Santos Neto e Clayton Abel de Lima | Fotos: reprodução/Polícia Civil/redes sociais

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) condenou, nesta quarta-feira (28/9), o cabo Silvio Pereira dos Santos Neto, 30, pela morte de Clayton Abel de Lima, 20, ocorrida em agosto do ano passado, na Vila Medeiros, na zona norte da capital. Na ocasião, aos PMs que atenderam a ocorrência, o cabo alegou que tinha sido vítima de roubo em um bar e havia reagido, mas o dono do estabelecimento disse que os dois chegaram juntos ao local e tiveram uma discussão após Silvio acreditar que Clayton havia furtado seu celular, atirando contra ele. O aparelho, porém, foi encontrado dentro do carro do policial após perícia da Polícia Civil.

O Conselho de Sentença, que é um grupo de sete jurados da sociedade civil, rechaçou a tese de legítima defesa sustentada pelos advogados do policial e acolheu todos os pedidos feitos pelo Ministério Público ao reconhecer que ele matou Clayton e praticou com crime por motivo fútil e com recurso que dificultou a defesa da vítima, qualificadoras que aumentam a pena de homicídio.

A juíza Fernanda Salvador Veiga, da 2ª Vara do Júri do Fórum Criminal da Barra Funda, fixou a pena em 16 anos e quatro meses de prisão em regime fechado e não permitiu que o cabo recorra da sentença em liberdade “para garantir a ordem pública” e pela gravidade do delito.

Silvio está preso desde o dia 7 de agosto de 2021, quando o crime aconteceu e sua prisão foi convertida em preventiva (por tempo indeterminado) após uma audiência de custódia. Ele retornará ao Presídio Militar Romão Gomes. No âmbito da PM, o procedimento administrativo disciplinar ainda está em andamento.

Procurado pela Ponte, o advogado do acusado disse que vai recorrer. “Na visão da defesa, a condenação foi injusta e sustenta que o Silvio agiu em legítima defesa”, declarou Mauro Ribas. “As perícias do processo, principalmente o laudo de local e o laudo necroscópico confirmam a tese de legítima defesa e que o Silvio agiu de forma correta naquela hora”.

Entenda o caso

De acordo com o boletim de ocorrência, os policiais militares Fernando Amista Soares e Diego Santhiago Santos de Jesus, da 3ª Companhia do 5º Batalhão Metropolitano, disseram que foram acionados para atender uma ocorrência de disparo de arma de fogo num bar na Rua Basílio Alves Morango, em 7 de agosto de 2021. Ao chegarem no local, afirmam que viram Silvio Neto “agitado”, “aparentando estar embriagado”, e que teria dito a eles que tinha sofrido uma tentativa de roubo e que reagiu contra o suspeito.

O proprietário do estabelecimento, porém, disse que por volta das 3h da manhã Silvio e Clayton haviam entrado juntos no local, aparentando estar muito bêbados. Os dois pediram para passar o cartão de Silvio e pagar o restante em dinheiro, tendo passado R$ 50 duas vezes na máquina de cartão e recebido R$ 10.

Em seguida, conta a testemunha, eles foram para o fundo do bar, onde existem três máquinas caça-níquel inoperantes e ouviu Silvio questionando a Clayton onde estava seu celular, que respondia não saber. O cabo ainda teria ido até o dono e também perguntado sobre o aparelho, que disse desconhecer. Depois, viu Silvio retornar ao fundo do bar e ouviu um disparo.

O dono afirma que correu e viu Clayton caído no chão e que tirou a arma das mãos do cabo e a descarregou. Silvio tentou pegá-la de volta e apresentou sua carteira funcional de policial militar, mas o homem não a devolveu. A testemunha disse que pediu para pessoas no local chamarem o resgate e a polícia. Quando os PMs chegaram, entregou a eles o revólver calibre 357.

A equipe de perícia do DHPP (Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa), da Polícia Civil, identificou que Clayton estava apenas com seu documento de identidade e um cartão bancário em seu nome, sem nenhuma arma ou aparelho celular. Ele foi atingido por um tiro no tórax.

O carro de Silvio, que estava estacionado na mesma rua, a poucos metros do local, também foi periciado. Nele, estavam um cartão do SUS e um comprovante de banco em nome de Clayton, além do aparelho celular do cabo.

Na delegacia, acompanhado de advogado, Silvio preferiu se manter em silêncio. O delegado Ricardo Lemes de Araujo, do DHPP, entendeu que o crime não tem relação com a função policial, conforme Silvio teria dito aos PMs que chegaram ao local. Além disso, justifica que ele tinha relação com a vítima, já que os pertences foram encontrados em seu veículo e o dono do bar testemunhou a ação.

Araujo indiciou o cabo por homicídio doloso (quando há intenção de matar) ao argumentar que ele “não estava confinado em situação de perigo que justificasse reação imoderada e desproporcional, consistente em disparar contra indivíduo desarmado, o levando a óbito no local”.

No relatório final da investigação, o delegado também sustenta que o caso “não é compatível com o instituto da legítima defesa” pois a vítima não estava armada e o cabo não tinha nenhum sinal de luta corporal.

Silvio foi submetido a exame toxicológico cerca de sete horas após o crime (às 10h48 da manhã), em que o Instituto Médico Legal (IML) atestou que ele não estava embriagado pela avaliação de hálito, lucidez e pulso, já que o cabo não permitiu a coleta de sangue e urina para análise. Também identificaram lesões leves nos antebraços.

Dois dias depois do crime, o Ministério Público Estadual pediu a realização de perícia no celular de Silvio e ofereceu denúncia contra ele por homicídio qualificado por motivo fútil e que dificultou a defesa da vítima, que foi aceita pelo Tribunal de Justiça. Contudo, a Polícia Civil não conseguiu desbloquear a senha do aparelho para averiguar possíveis trocas de mensagens.

Apenas durante o período das audiências é que Silvio deu sua versão da história. No entanto, em fevereiro deste ano a juíza Fernanda Salvador Veiga, da 2ª Vara do Júri do Fórum Criminal da Barra Funda, argumentou que a alegação de legítima defesa não ficou totalmente comprovada e o depoimento do dono do bar colocou em dúvida a versão do policial. Por isso, decidiu que ele fosse julgado por um júri popular.

Silvio afirmou que naquele dia, por volta das 22h, estava de folga, havia ido ao um bar com amigos, bebeu cerveja, e foi para a festa de uma amiga em Guarulhos (Grande SP), onde ingeriu mais bebida alcoólica. Duas horas depois, segundo ele, decidiu “tomar um ar” numa praça em frente à residência. Ao sentar-se em um banco, Clayton, que disse não conhecer, teria lhe oferecido droga.

Silvio disse que se levantou, colocou a mão na arma, que estava na cintura, sem sacá-la, identificou-se como policial e declarou que Clayton seria preso. A vítima, segundo ele, teria pedido para não prendê-la e afirmou que o levaria até o traficante “que lhe vendeu e armazenava as drogas” em um endereço na região do Jardim Brasil, na zona norte da capital, a qual ele conhecia como ponto de tráfico de drogas.

Ao invés de prendê-lo, Silvio alegou que decidiu acompanhar Clayton para prender o suposto traficante porque estaria com maior número de porção de drogas. A própria juíza destaca que esse tipo de ação não é previsto no procedimento operacional da Polícia Militar.

O cabo disse que Clayton “ingressou em seu carro, no banco do passageiro, indicando a rua que deveriam parar” e, ao desembarcarem do veículo, Clayton entrou em um bar e Silvio ficou do lado de fora na calçada. Depois, “a vítima deixou o local, dizendo que estava procurando ‘Chiquinho’ e ingressou em um segundo bar, na mesma rua”, e Silvio disse que continuou na calçada.

Ajude a Ponte!

Em seguida, de acordo com o policial, Clayton pediu o seu cartão para passar R$ 100 no estabelecimento comercial a fim de trocar a quantia por dinheiro em cédula para “simular a comprar de drogas”, o que foi acatado por Silvio. Em seguida, foram ao fundo do bar para combinar a compra da droga na viela, momento que o cabo declarou que percebeu que havia máquinas caça-níquel no local “e decidiu prender a vítima, dizendo que pediria apoio da polícia”.

Nesse momento, Clayton teria se desesperado e empurrado Silvio contra a parede com uma mão, na altura do pescoço, “enquanto que com a outra tentava tomar a posse da arma de fogo” do cabo, que estava na cintura. Silvio disse que “para se defender”, conseguiu pegar sua arma e disparou contra Clayton, atingindo-o no peito com um disparo, e negou que havia o acusado de roubar seu celular.

Em seguida, o dono do bar viu Clayton no chão e pegou a arma de Silvio, tirando a munição. Ele se identificou como PM e a testemunha chamou a polícia. Silvio afirma que relatou aos policiais que chegaram ter sofrido uma tentativa de roubo da arma.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas