Justiça absolve PMs da Operação Escudo apesar de laudo que aponta ‘tiro de confere’ em pintor

Disparo no rosto, feito após incapacitação e com vítima já morta, foi ignorado pelo juiz que considerou legítima defesa em ação no litoral paulista. Ministério Público, que denunciou dois policiais por homicídio qualificado, vai recorrer da decisão

Barraco onde Wellington foi morto em Guarujá, no litoral de São Paulo, durante a Operação Escudo | Foto: Reprodução

Dois policiais militares do 4º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep), denunciados pela morte do pintor de prédios Wellington Gomes da Silva, de 32 anos, durante a Operação Escudo, em agosto de 2023, foram absolvidos sumariamente pela Justiça de São Paulo. Para o juiz Edmilson Rosa dos Santos, os agentes agiram em legítima defesa. A sentença é de 27 de junho.

O tenente Júlio Cezar dos Santos e o cabo Maykon Willian da Silva haviam sido denunciados pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) por homicídio qualificado — cometido mediante recurso que dificultou a defesa da vítima. O MP-SP também apontou abuso de poder e violação dos deveres do cargo por parte dos PMs, circunstâncias que agravam a pena, conforme previsto no artigo 61 do Código Penal.

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Wellington foi morto em 29 de agosto de 2023, no Sítio Cachoeira, no Guarujá, litoral de São Paulo, durante a Operação Escudo. A ação — que resultou na morte de 28 pessoas — foi deflagrada pelo secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, e respaldada pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) após a morte do policial da ROTA Patrick Bastos Reis, de 30 anos.

Wellington foi atingido por quatro tiros. Segundo o MP-SP, um dos disparos acertou a região do tórax e quebrou algumas vértebras do pintor, o que o deixou incapacitado de reagir — em contradição com a versão apresentada pelos policiais.

Última imagem feita pela câmera corporal do tenente Júlio antes da bateria acabar | Foto: Reprodução

Um laudo complementar apontou que o tiro no rosto foi efetuado minutos depois dos ferimentos no tórax, quando a vítima já estava morta ou à beira da morte. Para o MP-SP, esse disparo caracteriza o chamado “tiro de confere” — feito próximo ao rosto para assegurar a morte.

Apesar de os policiais utilizarem câmeras corporais, os equipamentos não registraram a ação, pois estavam descarregados no momento da morte. A câmera do tenente Júlio parou de gravar por falta de bateria às 15h28, seis minutos após o início da abordagem.

Wellington deixou um filho que tinha apenas três anos na época.

Juiz viu legítima defesa

Na sentença, o juiz Edmilson destacou que a arma supostamente apreendida com Wellington era uma submetralhadora, de uso restrito, e que o local da ação era “área de influência do narcotráfico”. Por isso, entendeu haver um dever legal dos policiais de impedir o domínio da região por homens armados. A decisão teve como base os relatos dos policiais envolvidos, de agentes civis que chegaram após o crime e da mãe da vítima, que não presenciou a ação, mas relatou ter recebido de um vizinho uma versão diferente da oficial. Nenhuma testemunha ocular foi ouvida.

A mãe de Wellington contou que viu várias viaturas ao sair de um mercado, sem imaginar que poderiam ter relação com o filho. Horas depois, uma mulher desconhecida a informou que ele havia sido morto. Ao chegar à casa, um vizinho teria relatado que Wellington estava sentado na porta quando os policiais chegaram, ordenaram que a testemunha se recolhesse e, logo após, ouviram-se os tiros. Os soldados Marco Antônio Tolotto Moreira e Cícero José dos Santos, da mesma equipe, disseram que estavam em patrulhamento quando o tenente Júlio afirmou ter avistado homens armados traficando. Nenhum dos dois presenciou os disparos.

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Um policial civil do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) relatou que o laudo de recognição visuográfica foi feito dois dias após o crime e sem o corpo no local, o que pode ter comprometido a perícia. Nada foi apreendido e ninguém quis testemunhar. O motivo da ordem tardia para a perícia não foi esclarecido. Outro policial civil informou que a perícia fora determinada pelo delegado Thiago Nemi Bonametti, mas não soube dizer se houve ordem superior. A demora teria sido causada por falta de efetivo e risco no local.

Apesar da demora relatada pelos policiais civis, consta no processo um laudo pericial realizado no mesmo dia da morte do pintor pela Equipe de Perícias Criminalísticas do Guarujá. Os agentes fotografaram e descreveram o que encontraram no local. Foram encontrados dois estojos de munição deflagrada dentro do barraco, ambos de calibre 9 milímetros.

Outros quatro estojos, com o mesmo grau de preservação, estavam nos dois lados externos da casa — sendo de calibre .40 e 17 CBC. Os peritos também identificaram vestígios de sangue no interior do barraco. Em uma das fotos da perícia, é possível ver um chinelo ensanguentado, com marcas de sangue também visíveis no chão de contrapiso do imóvel.

Croqui mostra partes do corpo onde Wellington foi atingido por tiros | Foto: Reprodução

PMs alegaram troca de tiros

Júlio contou ter visto um grupo correr ao avistar a viatura. Um usuário de drogas teria informado que estavam armados. O tenente relatou ter visto Wellington com uma arma longa e ouviu disparos — não ficou claro de onde partiram. Disse ter atirado duas vezes após ordenar que ele largasse a arma. O pintor teria então entrado no barraco. Não havia marcas de sangue na parte externa, segundo a perícia.

O cabo Maykon afirmou que entrou no barraco a mando de Júlio e viu a vítima com uma submetralhadora, “pronto para o disparo”. Atirou três vezes. Disse estar a curta distância e que os dois últimos tiros foram dados com Wellington já no chão. O tenente afirmou ter encontrado um carregador vazio e um rádio comunicador no local.

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Para o MP-SP, os policiais alteraram a cena do crime ao simular necessidade de socorro, o que prejudicou a perícia, “impedindo o confronto do trabalho técnico pericial com as versões apresentadas pelos acusados”. A denúncia foi assinada pelos promotores Marcio Leandro Figueroa, Raissa Nunes de Barros Maximiliano, Daniel Magalhães Albuquerque Silva e Francine Pereira Sanches.

Os soldados Tolotto e Cícero, que não participaram diretamente da abordagem, não foram denunciados por homicídio. Mas o MP-SP defendeu que eles deveriam ser investigados por possível crime militar por acionarem o resgate quando a vítima já estava morta.

O parecer técnico produzido pelo MP apontou que Wellington morreu em decorrência de hemorragia causada pelos tiros no tórax. O laudo concluiu que apesar de ter provocado a morte, o tiro não matou Wellington instantaneamente. Assim, a demora no atendimento médico também é destacada pelos promotores. A gravação da ligação ao Copom mostrou que houve uma demora de 23 minutos para o resgate ser acionado. Mesmo com a vítima morta, o corpo foi levado à UPA, onde a morte foi constatada.

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O bombeiro que atendeu a ocorrência disse ter chegado cinco minutos após o chamado. Relatou que Wellington estava sem sinais vitais, mas foi levado à unidade por protocolo — vítimas só não são socorridas em casos de “morte evidente”, como decapitação ou carbonização. Um perito ouvido pela Ponte sob anonimato disse que não é comum o acionamento dos Bombeiros Militares para esse tipo de ocorrência. O laudo também identificou uma lesão de defesa no antebraço direito de Wellington, o que sustenta a versão dos promotores de que ele não reagiu aos disparos.

Segundo o MP-SP, Wellington já estava morto quando foi atingido no rosto já que o ferimento não apresentava reações biológicas típicas de um corpo vivo. O documento também indica que ele foi baleado ao menos uma vez fora do barraco, mas não precisa qual foi o primeiro disparo que o atingiu. 

Histórico de decisões pró-policiais

O juiz Edmilson tem histórico de atuação em casos envolvendo letalidade policial. Em dezembro de 2023, concedeu liberdade a três PMs acusados de matar um jovem negro e ferir outro em Guarujá, em 2022. Considerou que os réus eram “legalmente primários”, tinham ocupação lícita e endereço fixo, e que não havia previsão de julgamento. Na ocasião, determinou que os policiais deixassem o patrulhamento de rua e atuassem apenas em funções administrativas.

Em outro processo da Operação Escudo, Edmilson tornou dois PMs réus pela morte de Rogério de Andrade Jesus, no segundo dia da operação. Um dos agentes teria executado a vítima, enquanto o outro ajudou a esconder as câmeras da farda para simular um cenário e forjar a apreensão de arma.

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Mesmo assim, o juiz negou o afastamento completo dos policiais da corporação, permitindo que permanecessem em funções administrativas por considerar a medida “excessiva” e que não houve “conduta desabonadora”.

Rafael Rocha, coordenador de projeto do Instituto Sou da Paz, avalia que o caso escancara obstáculos institucionais para responsabilização. “Quando não é uma investigação problemática ou uma atuação omissa do Ministério Público, é um tribunal do júri ou o Judiciário que vê os policiais como heróis”, afirma.

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou o MP-SP, que informou que irá recorrer da sentença.

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