Justiça concede liberdade a Lennon, um de três jovens negros presos por reconhecimento irregular

    Juíza Maria Belli, que havia determinado a prisão preventiva, mudou de entendimento e considerou que Lennon Seixas poderia responder processo em liberdade; ele e dois vizinhos foram presos em janeiro acusados de roubo e sequestro

    Lennon Seixas Vieira da Silva, 27, foi preso com os irmãos os irmãos Bruno e Rodrigo de Souza dos Prazeres, de 27 e 31, em 4 de janeiro após reconhecimento irregular | Foto: arquivo pessoal

    O Tribunal de Justiça de São Paulo determinou, nesta terça-feira (10/2), a liberdade de Lennon Seixas Vieira da Silva, que foi preso junto com os irmãos e vizinhos Bruno e Rodrigo de Souza dos Prazeres, e acusado de ter roubado e sequestrado um médico em 4 de janeiro após um reconhecimento irregular.

    A defesa de Lennon havia anexado reportagem feita pelo UOL, publicada 15 dias depois da denúncia feita pela Ponte, na qual também são questionados o processo de reconhecimento e abordagem feita pelos policiais militares. Na ocasião, familiares afirmaram à Ponte que os rapazes teriam sido fotografados durante a abordagem e que foram reconhecidos sozinhos, sem outras pessoas de perfil semelhante que deveriam ter sido colocadas em sala apropriada, o que fere os procedimentos previstos no Código de Processo Penal. Além disso, um vídeo de uma câmera de segurança contesta a alegação de que, assim que foram abordados, os três rapazes foram levados diretamente para a delegacia, sendo que as imagens mostram Lennon sendo liberado por volta das 23h13.

    Na decisão, a juíza Maria Fernanda Belli, no entanto, preferiu não levar em consideração o mérito dos questionamentos neste primeiro momento e sim a necessidade de Lennon permanecer preso preventivamente (por tempo indeterminado), destacando que até o momento não haveria “equívocos” na forma como o caso foi conduzido, mas há dúvidas levantadas a serem analisadas. “Essas questões, repiso, guardam relação com o mérito e nesta fase não se pode simplesmente desprezar as declarações da vítima e o próprio auto de reconhecimento pessoal ou, ainda, reconhecer de pronto que os policiais estão deliberadamente mentindo. O ponto crucial do presente caso, especificamente no tocante ao implicado Lennon, é a existência ou não de cautelaridade na restrição de sua liberdade”, escreveu.

    Considerando que Lennon não tem antecedentes e possui residência fixa, algo que não foi considerado pela mesma magistrada anteriormente, conforme apontou a Ponte, ela resolveu conceder a liberdade provisória mediante cumprimento de medidas cautelares (comparecimento mensal no fórum, permanecer em casa entre 21h e 7h, não mudar de endereço e nem se ausentar sem autorização do juízo). “Nesse campo, como toda a prova até o momento carreada parece questionável, não se coaduna com a correção que se espera da análise de um caso, que alguém venha suportar a restrição de liberdade cautelar, máxime sendo primário, de bons antecedentes, com comprovante de residência fixa, a despeito da gravidade da infração, pois ilegalmente se estaria diante de uma antecipação de pena”, argumentou Belli.

    À reportagem, em lágrimas, o porteiro Junior Cesar Vieira da Silva, pai de Lennon, comemorou a decisão. “Eu estou comemorando como se fosse o meu alvará porque nesse período todo eu fiquei me sentindo preso junto com ele, meu coração está livre agora, não teve um dia nesse mais de um mês que eu não chorei”, declarou.

    Desde o início do caso, a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, que integra ativistas que denunciam violações de direitos humanos, tem acompanhando as famílias dos três rapazes.

    O alvará de soltura foi expedido no mesmo dia e a previsão é de que o jovem deixe o Centro de Detenção Provisória de Osasco, na Grande São Paulo, nesta quarta-feira (11/2). Bruno e Rodrigo permanecem presos.

    Relembre o caso

    Lennon foi preso junto com os vizinhos de bairro, os irmãos Bruno e Rodrigo de Souza dos Prazeres, de 27 e 31 anos respectivamente, no dia 4 de janeiro, acusados de terem sequestrado um médico, feito saques com cartão em caixas eletrônicos e roubado o carro dele na saída da AMA (Assistência Médica Ambulatorial) Parque Figueira Grande, distante a aproximadamente 1,6 km de onde o trio mora. Bruno, inclusive, fazia aniversário de 27 anos no dia e as famílias afirmam que os três foram abordados pela polícia na frente da casa dos irmãos, enquanto conversavam na rua, e que não têm relação com os crimes.

    Há dois boletins de ocorrência: um feito pela vítima e outro sobre a prisão e reconhecimento dos três jovens. De acordo com o primeiro, feito na Delegacia de Itapecerica da Serra (Grande SP) um médico de 30 anos relatou que por volta das 20h do dia 4 de janeiro estava no estacionamento do AMA onde trabalha quando foi abordado por dois homens armados que o renderam e entraram no seu veículo. A vítima afirma que permaneceu com os assaltantes por cerca de três horas, seguindo para caixas eletrônicos do bairro Jardim São Luis, onde foi obrigado a fazer dois saques, nos valores de R$ 600 e R$ 300.

    Em determinado momento, a vítima relata que passaram por uma comunidade onde o assaltante que dirigia pediu em uma casa para carregar o celular e que em um desses saques, um dos assaltantes retornou com um terceiro indivíduo. Depois, após não conseguirem fazer mais saques nem transferências bancárias, o médico conta que foi abandonado numa estrada de terra na cidade de Embu Guaçu, onde pediu ajuda em uma residência e ligou para a Polícia Militar.

    De acordo com a descrição feita pelo médico, os três assaltantes eram negros. Um tinha bigode, olhos pretos, cabelo crespo curto, cerca de 1,60 m de altura e aparentava ter 20 anos seria o que tomou a direção do veículo; outro usava moletom branco e shorts vermelho, tinha 1,90 m de altura e aparentava ter 17 anos. Já o terceiro usava blusa e calça pretas, máscara branca e aparentava ter 20 anos. O registro foi feito no mesmo dia, às 23h13 e a vítima foi chamada a comparecer no 47º DP após policiais terem ligado informando que encontraram o carro.

    Bruno, Lennon e Rodrigo. Bruno completava 27 anos no dia em que foi preso com o irmão e o amigo | Fotos: arquivo pessoal

    Próximo a esse horário, por volta das 23h, no segundo boletim, os policiais militares Flavio Cristiano Gouveia e Felipe Garcia Grosso, da 1ª Cia do 1º Batalhão Metropolitano da PM, informaram que avistaram o veículo roubado em alta velocidade, sem precisar exatamente onde, e que passaram a segui-lo. Em uma das ruas que o carro entrou, na Rua José Josafá de Araújo, sem saída, os policiais disseram que viram três indivíduos desembarcando e descendo um escadão. A dupla afirma que fez a volta pela Rua Humberto de Almeida e abordaram Rodrigo e Bruno. Em revista, não localizaram nada de ilícito e que, ao entrevistá-los, Rodrigo disse que estava em casa e Bruno, passado numa adega, e que estariam com um terceiro rapaz.

    Os PMs afirmam que pediram para os dois indicarem onde moraria esse terceiro e qual seria seu nome, que se chamaria Lennon. Ao se deslocarem para o endereço, a 300 metros dali, na Rua Baltazar de Sá, alegam que viram um indivíduo e o abordaram. Os policiais disseram que perguntaram a ele se se chamava Lennon e que ele teria dito que não. Ao revistá-lo, nada encontraram de ilícito, mas que ao verificarem o RG viram se tratar de Lennon, que teria negado ser autor do roubo. Na versão policial, os três rapazes foram levados para o 47º DP (Capão Redondo), onde foram reconhecidos pela vítima.

    Porém, não há indicação de como esse reconhecimento foi realizado. O artigo 226 do Código de Processo Penal prevê que é preciso descrever os suspeitos e depois devem ser apresentadas diversas pessoas com características parecidas para o reconhecimento. Além disso, o carro do médico foi devolvido sem realização de perícia.

    A versão das famílias

    As famílias discordam da versão dos policiais. Iara Paula Souza da Silva, 60, mãe de Bruno e Rodrigo, afirma que desde as 21h os filhos estavam em casa. “O Bruno tinha voltado do trabalho como panfleteiro de uma pizzaria daqui do bairro e o Rodrigo tinha saído de uma bicicletaria onde estava trabalhando de montador. O Lennon passou aqui nesse horário e ficou conversando com eles no portão”, contesta.

    De acordo com Iara, ao invés de uma abordagem, os policiais fizeram três. “Primeiro passaram aqui dois policiais da Rocam [Ronda Ostensiva Com Apoio de Motocicletas], pediram documento do Bruno e do Lennon que estavam no portão. Os policiais tiraram foto deles, liberaram e foram embora”, conta. Lennon teria ido embora para casa também logo em seguida, segundo ela.

    Imagens de câmera de segurança de uma das casas vizinhas na Rua Humberto de Almeida mostram a abordagem policial por volta das 23h13 e, logo depois, Lennon sai caminhando pela rua. É possível ver que Lennon usava calça clara, jaqueta e boné. Dos três, ele é o único que usa bigode, segundo familiares.

    Segundo Iara, duas horas depois, os policiais voltaram à sua casa em uma viatura. “Eles bateram na porta, o Rodrigo atendeu e disse que eles estavam chamando o Bruno”, afirma. “Vieram com uma conversa de que esqueceram de devolver o documento do Lennon, mas eu vi que eles já tinham entregado, depois falaram que tinham que levar o Bruno para a delegacia para averiguação”, continua.

    Iara lembra que chamou um motorista por aplicativo para ela e o marido irem ao 47º DP, já que Bruno foi levado pelos policiais dentro da viatura. Segundo ela, Rodrigo permaneceu em casa. “Quando a gente chegou na delegacia, o Rodrigo estava saindo algemado da viatura”, afirma. De acordo com ela, os mesmos policiais retornaram à sua casa e levaram Rodrigo para a delegacia. “Disseram que levaram o Rodrigo para ser testemunha, mas testemunha de quê? Nunca vi testemunha ser presa”, prosseguiu. Ela também aponta que os filhos vestiam roupas diferentes das descritas pela vítima: Bruno estava com uma camiseta laranja e azul, calça jeans azul e tênis; já Rodrigo usava uma blusa com a marca Nike cinza, calça azul e tênis.

    Dona Maria José Narciso da Silva, mãe de Lennon, aponta que estava saindo de casa por volta das 20h25 quando cruzou com o filho na porta. “Eu trabalho de faxineira na garagem de uma empresa de ônibus e assim que estava saindo, meu filho estava chegando”, afirma. Ela acredita que ele estava na casa de amigos, já que um deles, Claudemir Damasceno, 37, disse à reportagem que o cumprimentou na Rua José Maria Schumak, onde mora e que é próxima da casa de Lennon, por volta desse horário. “A gente tem certeza que não foi ele porque ele passou por aqui, trocou uma ideia com a gente por uns cinco minutos e seguiu”, disse Claudemir à reportagem.

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    Lennon teria passado na casa dos irmãos para parabenizar Bruno. Depois da primeira abordagem, retornou para casa e foi passear com a cachorrinha, segundo o pai. “A minha filha estava em casa quando ele chegou. Os policiais bateram na porta falando que iam levar o Lennon para averiguação”, conta Junior Cesar. “Ele chamou minha filha e ela foi atrás para a delegacia. Eu estava trabalhando de porteiro e a minha esposa na faxina, tudo isso de madrugada”, prossegue.

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