Justiça condena e absolve homem pelo mesmo tipo de crime em uma semana

Magistrados de varas diferentes tiveram decisões distintas sobre um mesmo acusado; reconhecimento irregular é o único elemento que o mantém preso

Familiares e a esposa de Ivan pediram justiça por Ivan em manifestação, em 17/7/22 | Fotos: Rede de Resistência e Proteção Contra o Genocídio e Arquivo Pessoal

O advogado Glauco Batista Hengstmann encontrou com seu cliente Ivan Santos Trindade, 41 anos, no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Itapecerica da Serra, na Grande SP, avisando que tinha duas notícias para lhe dar. Uma boa e outra ruim. Vivendo atrás das grades há nove meses por um crime que não cometeu, o ex-ajudante em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), na cidade de Embu das Artes, ouviu que foi absolvido e condenado pela justiça do estado de São Paulo quase que simultaneamente.

Pesa contra Ivan a acusação de ter participado de dois assaltos a pessoas que tinham acabado de deixar uma agência bancária, prática conhecida como saidinha de banco. As duas ocorrências se deram no mesmo lugar, na unidade do Itaú de Interlagos, na zona sul da capital paulista, porém em dias diferentes.

O primeiro roubo teria acontecido no dia 26 de janeiro deste ano e o segundo em 7 de fevereiro. Para cada crime foi aberto um inquérito diferente no 102º DP (Capela de Socorro) e por isso cada fato foi julgado em varas diferentes e por magistrados distintos, que não tiveram o mesmo entendimento sobre a participação de Ivan nos crimes.

Para o juiz Augusto Antonini, da 28ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, em razão das falhas no reconhecimento feito na delegacia, ficou claro que o ajudante não participou da ação criminosa e por isso o absolveu do crime que aconteceu no dia 7 de fevereiro. 

“A folha de ponto da Prefeitura Municipal de Embu das Artes (SP), sua empregadora, indica que ele estava trabalhando em um posto de saúde naquele município no dia e horário dos fatos. Da mesma forma, a régua fornecida pela operadora TIM, atinente ao celular do acusado, indica que ele realmente estava em Embu das Artes (SP) naquela data e horário”, declarou o magistrado em sua decisão, publicada em 25 de novembro.

“Eu entrei no caso quando ele já estava em andamento. O juiz da 28ª vara aceitou que eu pudesse levantar e o entregar. Conseguimos provas irrefutáveis, como a folha de ponto e a quebra do sigilo telefônico, que mostram que era impossível ele estar ao mesmo tempo no trabalho e numa agência bancária a 30 quilômetros de distância”, conta o advogado de defesa Glauco Hengstmann.

Porém, a juíza Lilian Lage Humes, da 9ª Vara Criminal, não levou em conta a provas que foram juntadas ao processo pela defesa, como a geolocalização do celular do acusado, e condenou Ivan baseada apenas no mesmo reconhecimento que serviu para o processo onde ele foi absolvido.

Na sua decisão, a magistrada faz questão de ressaltar que está julgando apenas um crime, não importando outras decisões que utilizaram das mesmas alegações para a acusação. “Inicialmente, embora seja bastante óbvio, deve-se consignar que os fatos que estão sendo julgados neste feito ocorreram em 26 de janeiro de 2022. Logo, a conduta do réu em data anterior ou posterior a 26 de janeiro de 2022 é irrelevante para a comprovação dos fatos ocorridos em 26 de janeiro de 2022. De outra parte, os aparelhos de telefone celular são objetos móveis e por isso podem ou não acompanhar seu proprietário em seus deslocamentos. Inclusive, é bastante corriqueiro que traficantes ou roubadores contumazes utilizem, em suas empreitadas criminosas, diversos chips e aparelhos de telefonia a fim de não serem rastreados”, escreveu Humes em sua decisão, em 17 de novembro.

“Não conseguimos a folha de ponto do Ivan do dia 26, mas a quebra do sigilo telefônico dele mostra que o celular dele não saiu de Embu e acredito que a juíza poderia sim considerar as outras provas, por se tratar da mesma pessoa que teria cometido o mesmo crime que estava sendo acusada em outro processo e que tinham provas consistentes que ele não havia cometido delito algum”, esclarece Glauco Hengstmann, que afirma que irá apelar da decisão da magistrada.

Entenda o caso

Segundo o depoimento da vítima registrado no boletim de ocorrência assinado pelo delegado Lawrence Luiz F. Ribeiro, da 102ª Delegacia de Polícia (DP) da Capela do Socorro, em 26 de janeiro, uma vítima foi surpreendida às 9h55 da manhã por um homem, que a ameaçou com uma arma quando a mesma tentava efetuar o pagamento de uma conta. 

Segundo o relato da mulher, que carregava R$ 6.125, um rapaz negro e forte saiu da fila da agência, retornando pouco tempo depois, com um capacete preto e uma bolsa tira colo preta. Nesse momento, ele se aproximou e colocou a arma contra seu queixo, exigindo que ela passasse a carteira. De acordo com a vítima, o suspeito ainda pegou a carteira de sua mão e tentou roubar seu celular. Ela tentou resistir, mas foi ameaçada novamente. O celular acabou caindo no jardim ao lado do banco e o suspeito correu em direção à sua moto Honda. 

Em 7 de fevereiro, outro crime ocorreu na mesma agência por volta das 12h20. Segundo o boletim de ocorrência assinado pelo delegado José Roberto Gil, da 102ª DP da Capela do Socorro, um homem subtraiu R$ 700,00 e um celular em outro roubo. De acordo com o relato da vítima, um homem, o acusado o abordou e ordenou a entrega do dinheiro e do celular, já fora da agência. Na sequência, teria fugido com a moto Honda. O homem que sofreu o roubo diz que o suspeito tinha aproximadamente 1,80 metro de altura, sobrancelhas grossas e curvadas. 

Em 10 de fevereiro, um homem chamado Gabriel (nome fictício) foi preso em flagrante próximo da agência. Policiais civis monitoravam a agência e perceberam ele e um suposto comparsa ao lado de duas motos: uma Honda/CG e uma Honda/Twister que, segundo os policiais, batiam com a descrição das usadas com os roubos. Gabriel estava armado com um revólver 38 e foi preso em flagrante. O outro homem, segundo os policiais, se evadiu antes de se aproximarem.

O nome de Ivan seria envolvido nos crimes no dia seguinte. Segundo os autos, durante investigações, a delegacia especializada da seccional, 6º CERCO [Corpo Especial de Repressão ao Crime Organizado] chegou ao nome de Ivan dia 11 de fevereiro, um dia após a prisão de Gabriel. Os policiais alegam que conseguiram uma “informação privilegiada”, mas não entram em detalhes sobre a origem desta informação nos autos.

O relatório da investigação assinada pelo delegado Julio Jesus Encarnação da 102ª DP da Capela do Socorro, traz fotos das redes sociais de Ivan. O documento assinado em 16 de fevereiro aponta que a vítima do primeiro roubo foi chamada então para analisar fotografias de Ivan para identificá-lo. No álbum de fotos, todos os homens estão de máscara de proteção contra a Covid-19. Ainda assim, ela o identificou. Na sequência o delegado solicitou a prisão temporária de Ivan, bem como um mandado de busca em sua residência. Ivan foi preso em 22 de fevereiro, inicialmente na 101ª DP em Interlagos, sendo transferido depois para o DP do Belenzinho e, por fim, ao CDP de Itapecerica da Serra.

Nada de ilegal foi encontrado com ele e nem em sua residência. No mesmo dia, o ajudante da UBS foi reconhecido pela primeira vítima presencialmente na 102ª DP. Quanto ao homem que sofreu o roubo em fevereiro, esse apontou Ivan por reconhecimento fotográfico.

Outro lado

A Ponte questionou o Tribunal de Justiça de São Paulo sobre as diferentes decisões contra uma mesma pessoa em casos semelhantes e se fazendo valer das mesmas provas. Até o momento, não foi enviada resposta pela assessoria de comunicação do TJSP.

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