Justiça condena Estado a indenizar familiares de mulher assassinada em operação do Exército no Rio

    Família de Raimunda Cláudia Rocha Silva, 47 anos, morta dentro de casa em 15 de abril de 2015, ganhou ação contra o Estado no valor de R$ 250 mil; para Justiça Federal, Exército foi responsável pela morte

    Militares fazem operação na Rocinha durante a intervenção federal | Foto: Noah Friedman Rudovsky/ Agência Pública

    Era 15 de abril de 2015 quando Raimunda Cláudia Rocha Silva, 47 anos, foi atingida na cabeça por um tiro dentro de casa, na Vila do João, no Complexo da Maré, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, decorrente de um intenso tiroteio entre o Exército e grupos criminosos. Ela não resistiu e morreu.

    Suas filhas July Rocha Sant’Anna e Fabíola Rocha Brito Reis decidiram não deixar a morte da mãe ser impune e entraram com uma ação contra o Estado. Em 12 de janeiro de 2021, 2110 dias depois, o juiz federal Sérgio Bocayuva decidiu que o Estado deveria pagar uma indenização de R$ 250 mil à família, além de arcar os custos de tratamento psiquiátrico e psicológico e despesas pelo funeral de Raimunda.

    Na ação, as filhas de Raimunda alegaram que “os agentes públicos assumiram o risco do resultado, pois iniciaram uma operação armada sem qualquer aviso prévio, o que resulta em obrigação decorrente de responsabilidade civil objetiva”.

    A União negou, disse que “não há provas de que o disparo que atingiu a autora decorreu do confronto onde atuava a Força de Pacificação”. De abril de 2014 e junho de 2015, as Forças Armadas ocuparam o Complexo da Maré, em ação da política de “pacificação” do governo do Rio de Janeiro. A ideia era instalar uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na Maré.

    Para Bocayuva, mesmo se o disparo tivesse sido efetuado por terceiros, é “possível atribuir nexo de causalidade ao ente público se os seus agentes estão envolvidos na criação do risco gerador do dano” já que “a atividade arriscada e perigosa de segurança pública, num contexto de troca de disparos, em perímetro urbano, é o tipo de risco social que não pode ser concentrado em desfavor do indivíduo lesado”.

    O juiz também argumentou que, se é certo dizer que os militares agiram em benefício da população, também é certo afirmar que “o individuo não arca sozinho com o custo dessa ação que é feita em nome de todos, isto é, da segurança pública”.

    Por isso, continuou, “o fundamento jurídico de que é possível indenizar a pessoa inocente vitimada mesmo que o disparo seja proveniente de quem entra em confronto com as forças de segurança pública, ou seja, dos ‘bandidos’, porque a ação dos agentes de segurança é feita em benefício coletivo, de maneira que os riscos provenientes dessas ações (dentre eles, o disparo de criminosos) não podem ser suportados, apenas, pelo indivíduo inocente que é lesado, mas sim repartido com a coletividade que, na lógica das ações de segurança, é a destinatária e legitimadora do uso da força por agentes de segurança”.

    Leia também: Exército é acusado de matar inocentes em operações de segurança pública

    Bocayuva argumentou que isso bastava para configurar a responsabilidade da União: “A Sra. Raimunda foi vitimada dentro de sua própria casa, lugar que é, na forma da Constituição, asilo inviolável. No ambiente de violência difusa do Rio de Janeiro, nem em seu próprio lar a cidadã tem paz, porque pode ser, repentinamente, colocada na linha de fogo cruzado. Esse local era o ambiente de convivência da família”.

    “Pela ação das tropas da União, tornou-se também local da morte trágica e violenta da Sra. Raimunda. E mais, a vítima foi atingida por um disparo de arma de fogo. Isso liga a causa do dano a uma ação que deveria ser vista como uma exceção ou raridade numa grande cidade de um país democrático que, em tese, tem a paz como diretiva constitucional”, completou o juiz.

    Para Lidiane Malanquini, coordenadora do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, da Redes da Maré, que auxilia moradores e familiares vítimas de violações de direitos desde 2009, a responsabilização do Estado é muito importante.

    “Cada vez que vemos avançar processos judiciais de responsabilização do Estado, fortalecemos no território da Maré que é possível, que isso é crime, que isso precisa ser denunciado. Existe uma descrença muito grande da possibilidade de responsabilização dessas instituições do Estado”, afirma à Ponte.

    Malanquini acredita que seja importante por dois motivos: responsabilizar efetivamente o Estado e reparar as vítimas. “Temos uma Constituição, temos leis e servidores públicos que cometem crimes. Não é responsabilizar aquele soldado ou policial da ponta, a perspectiva é que o Estado precisa assumir isso, seja o Exército, a Polícia Militar, a Polícia Civil ou a Polícia Federal”.

    “Essas corporações precisam esses crimes e quantos mais vezes eles forem responsabilizados vamos perceber que não são exceções, são práticas cotidianas. São padrões de violações de direitos que se repetem”, completa.

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    Sobre a reparação para as vítimas, explica Malanquini, deve ser direcionada “para as pessoas diretamente afetadas por essa violência institucional, seja com tratamentos de saúde especializados, seja reparação pecuniária quando você perde um ente querido, como foi o caso da Raimunda. Tem esse duplo papel que é super importante”.

    É esse o trabalho que a Redes da Maré vem construindo no território: acompanhamento de vítimas de violações de direitos, principalmente violações de direitos que acontecem pela violência armada, seja por grupos armados ou por agentes do Estado. “De 2016 até agora acompanhamos cerca de 30 casos de pessoas que sofreram violências e violações estão formalizando suas denúncias junto ao sistema de justiça”.

    Outro lado

    A reportagem procurou a Advocacia Geral da União, que informou brevemente que “a AGU não comenta processos em tramitação judicial.”

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