Justiça de SP liberta jovem negro e questiona prova que o condenou

    Igor Barcelos foi condenado a 15 anos por roubo e tentativa de latrocínio de um PM, em 2016; ‘Quero o nome dele limpo’, disse mãe do jovem após anúncio da decisão

    Alívio: dona Elizabeth, mãe de Igor, recebe abraço ao saber da notícia; o padrasto José Tadeu veste camiseta com rosto do jovem | Foto: Mariana Ferrari/Ponte Jornalismo

    O Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu libertar o ajudante geral Igor Barcelos Ortega, 22 anos, que foi condenado a 15 anos de prisão pelo roubo de um Gol e tentativa de latrocínio contra um PM em Guarulhos, na Grande São Paulo, em 2016. O caso transitou em julgado em 11 de setembro de 2018, ou seja, não cabia mais recursos. No entanto, o pedido de revisão criminal foi acolhido e, nesta terça-feira (30/7), a Justiça colocou a perícia que o condenou em xeque, determinando que as provas sejam novamente analisadas, a fim de concluir cientificamente a participação ou não de Igor no caso.

    No quarto andar do TJ, na Sé, centro de São Paulo, os desembargadores iniciaram a sessão às 10h. Do lado de fora, familiares, amigos e advogados que acompanham o caso de Igor estavam ansiosos. Pouco depois das 10h30, o relator Ruy Alberto Leme Cavalheiro anunciou: Igor vai responder em liberdade. O revisor responsável é César Augusto Andrade de Castro.

    Familiares, amigos e advogados na frente do prédio do Tribunal de Justiça de São Paulo, na Sé | Foto: Mariana Ferrari/Ponte Jornalismo

    As provas analisadas serão o projétil que atingiu a perna esquerda de Igor e o DNA na calça que ele usava no dia. O caso foi julgado pelos desembargadores Camilo Léllis, Edison Brandão, Álvaro Castello, Roberto Porto, Luis Soares de Mello, Euvaldo Chaib, Luiz Antonio Cardoso, Toloza Neto.  

    Sem forças, a mãe de Igor, Elizabeth Barcelos, 58 anos, foi tomada de emoção ao receber a notícia de liberdade do filho e desabou no chão. Ela chorava muito. Ainda faltavam 15 minutos para as 11h, o sol não estava a pino, mas a emoção de quem vestia a camiseta com a frase “Igor livre” chegava no ápice do dia. Uma comoção tomou conta da entrada do TJ. Há quase três anos, eles esperam por justiça e a chance de confirmar o grito de inocência. Igor deve sair da prisão nesta quarta-feira (1/8).

    Elizabeth desabou de emoção quando soube da determinação liberdade de seu filho, Igor Barcelos, preso desde novembro de 2016 | Foto: Mariana Ferrari/Ponte Jornalismo

    Em maio, Ruy Alberto Leme Cavalheiro, do 2º Grupo de Direito Criminal de Guarulhos, já tinha votado a favor do pedido revisional e pela absolvição de Igor. O pedido foi feito em dezembro de 2018, pelo Innocence Project Brasil. É o segundo caso que eles atuam em terras brasileiras. Na revisão de Igor a responsável é Dora Cavalcanti, diretora da associação sem fins lucrativos.  

    “Pelas nossas regras do Innocence Project Brasil, a gente acha excelente que eles sigam investigando e procurem confirmar qualquer dúvida que eles ainda tenham. Nós temos a plena convicção da inocência do Igor. O projeto já analisou ponto a ponto todos os indícios, todos os elementos objetivos e hoje está materialmente comprovado que Igor Barcelos não estava naquele local onde ocorreram os crimes e que ele é inocente”, declarou Dora, em coletiva de imprensa ao fim da sessão. A associação sem fins lucrativos foi criada em 1992 nos Estados Unidos e há três anos tem uma unidade no Brasil, intervindo em casos de pessoas inocentes que foram condenadas injustamente em crimes. “É o que ele mais quer, ter um carimbo de inocência”, concluiu a advogada.  

    Dora Cavalcanti presenteia Elizabeth com uma passagem: as duas vão juntas buscar Igor | Foto: Mariana Ferrari/Ponte Jornalismo

    Enquanto Elizabeth se afundava nos braços de quem estava ao seu redor, seus lábios repetiam a frase: “Eu quero o nome dele limpo.” Desde a condenação do filho, ela luta e acredita em sua inocência. Hoje, foram quase quarenta minutos de espera, segundo ela, agonizante. “Não sei explicar a emoção que eu estou sentindo. Foi agonizante e desesperador ficar sem saber o que estava acontecendo lá em cima”, desabafou emocionada, em entrevista à Ponte. E depois anunciou a comemoração: “Vai ter churrasco”.

    O padrasto de Igor, José Tadeu da Silva, conversava com os familiares na frente do Tribunal de Justiça. Com as mãos nos bolsos da calça jeans, ele sorria e descontava a tensão da espera nos pés, que andavam de um lado para o outro. “Recebemos a notícia com o coração apertado, coração a mil. Estamos aqui desde de manhã, aguardando. Não dormi a noite, mas graças a Deus deu certo”, disse à Ponte.  

    O padrasto de Igor, José Tadeu da Silva, também acompanhou a decisão, na frente do TJ-SP. ‘A gente acreditava que ia dar tudo certo sim’, disse | Foto: Mariana Ferrari/Ponte jornalismo

    José e Elizabeth relembraram a dificuldade em visitar Igor, que cumpriu pena a 700 quilômetros de São Paulo. Fora a distância, a família precisava economizar nas despesas para o deslocamento e hospedagem. Para uma única visita era necessário desembolsar R$ 1.500. “Tinha que juntar dinheiro, eu precisava pagar as contas. A gente se humilhava um pouquinho para conseguir ver, mas conseguia. De pouco em pouco, não dava para ir sempre, porque só eu trabalho. Mas toda vez que deu a gente foi”, explica José. Para que a mãe pudesse buscar o filho, junto com os advogados, Dora anuncia que a passagem será por sua conta. A mãe de Igor e advogada de defesa se abraçam e respiram fundo, com alívio.  

    O caso e as provas 

    Em 2 de outubro de 2016, Igor foi levado ao Hospital São Luiz Gonzaga, no Jaçanã, zona norte de São Paulo, com um tiro no tornozelo esquerdo. De acordo com depoimento do irmão dele, Natanael Raul Barcelos Mozinho, hoje com 20 anos, os dois estavam com outro amigo voltando de uma festa em duas motos, sendo uma delas a Honda ML 125 de Igor, quando foram surpreendidos por disparos vindos de um carro que se aproximou do trio na avenida Sezefredo Fagundes, próximo ao bairro onde moram. Ele foi socorrido por amigos.

    Igor Barcelos sempre teve a inocência reivindicada pela família | Foto: arquivo pessoal

    No mesmo dia, PMs foram ao hospital e fotografaram Igor. Ele foi, então, reconhecido pelo dono de um automóvel Gol e de um aparelho celular roubados horas antes, na rua Monsenhor Paulo, Jardim Marilena, em Guarulhos, na Grande São Paulo. O rapaz foi acusado de participar do crime e também de uma suposta tentativa de latrocínio contra o soldado da PM Felipe Bruno dos Santos Pires, ocorrida na rua Pedro de Toledo, também em Guarulhos, logo após o roubo do carro. 

    Na petição de 45 páginas, os advogados do Innocence Project sustentam a impossibilidade de Igor estar em dois locais ao mesmo tempo, a posição dos tiros que atingiram um dos acusados do roubo ao Gol, além do reconhecimento irregular feito pela vítima do roubo – ponto este, segundo a advogada Dora Cavalcanti, o que mais pesou na condenação porque “o processo no Brasil é oral, dá mais importância para a palavra da pessoa em detrimento de todas outras provas periciais”. 

    A diretora do Innocence Project argumenta que não se trata de tirar a credibilidade da vítima, mas a forma como ela pode ser induzida a reconhecer alguém de forma equivocada mesmo que não seja a intenção. “Quando o policial militar tira a foto de uma pessoa e mostra para vítima, como foi o caso do Igor, sem atender os procedimentos previstos para reconhecimento, ele induz a pessoa e aquela imagem fica gravada na cabeça dela. Quem sofre um assalto passa por um momento de estresse, de tensão, que dificulta a pessoa a guardar características de forma precisa, o foco dela vai ser a arma que o assaltante segura, não o rosto dele”, explica. Esse método de sugerir apenas um suspeito à vítima é chamado de show-up. 

    No boletim de ocorrência, o policial Felipe aponta que foi abordado às 5h40 do dia 2 de outubro, porém, o prontuário do Hospital Luiz Gonzaga, distante 12 km do local da ocorrência e que levaria de 20 a 35 minutos de percurso, indica que Igor chegou no local às 5h44 do mesmo dia. 

    A mãe de Igor, Elizabeth Barcelos, reuniu imagens de câmeras de segurança na Avenida Sezefredo Fagundes que mostram o filho sendo socorrido pelo irmão, mas o Tribunal de Justiça, nas duas instâncias, não reconheceu como “nítidas” as filmagens. 

    Outro ponto levantando é a posição dos tiros. O laudo do Instituto de Criminalística indica que o automóvel que ficou lado a lado com o veículo do policial tinha marcas de tiros do lado direito, na porta direita e no banco passageiro, enquanto a motocicleta e a perna de Igor foram atingidas do lado esquerdo. Além de que outro detido na mesma noite, o estudante Rodrigo Generoso Andrade, confessou ter participado do roubo ao Gol e foi o único reconhecido pelo PM Felipe. Rodrigo foi atingido por cinco tiros, justamente o número de disparos efetuados pelo policial Felipe, já que no boletim de ocorrência constava que das 15 balas que a arma dele comportava, 10 estavam intactas e, por isso, Igor não poderia ter sido alvejado por esse PM. Além disso, Rodrigo disse que estava acompanhado de outros dois rapazes e que não conhecia Igor. 

    Além disso, outra prova que não foi reconhecida no processo é uma foto que um amigo de Igor tirou no dia 2 de outubro, às 2h25, mostrando que ele estava na festa de aniversário no dia e que o jovem usava o mesmo moletom de quando foi socorrido ao hospital. 

    Postagem mostra que Igor estava em uma festa de aniversário| Foto: reprodução

    Após a condenação, a família contratou uma perícia particular. Eduardo Llanos é natural do Chile e entrou com uma dura análise criminalística das provas. Ele concluiu que o trabalho pericial havia sido “errado e ineficiente” para determinar a participação de Igor no crime. “Solicitamos novos trabalhos periciais, que não foram atendidos. [As solicitações foram] Especificamente, DNA, que solicitaram agora no pedido de diligência. Mas, veja bem, precisamos esperar anos para fazer um trabalho que deveria ter sido feito na fase de inquérito. Se não foi feito a fase de inquérito, o Ministério Público deveria ter solicitado e eles não solicitaram. Então, a pobreza dos elementos provatórios, que determinavam que ele poderia participar do crime, não cumpriam completamente com um ponto objetivo para falar que ele cientificamente participou do caso. Não. Foi algo muito subjetivo que, até hoje, manteve ele na cadeia”, explicou Llanos. Para ele, será concretizada a inocência de Igor. “Não por falta de provas, e sim, inocente mesmo. Ele não teve nenhuma participação”, concluiu. 

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