Justiça do Rio usa lei Maria da Penha contra mulher trans e coloca homem como vítima

    Lei é exclusiva para proteger mulheres e já prevê aplicação nos casos em que a mulher trans é vítima; especialista aponta que decisão de juíza é exceção

    Thifany Monteiro, 28 anos, disse que se sentiu humilhada e que era ela quem precisava de medida protetiva | Foto: arquivo pessoal

    A Justiça do Rio de Janeiro utilizou a lei Maria da Penha para defender um homem de sua ex-companheira, a estudante de técnica de enfermagem Thifany Monteiro, 28 anos, uma mulher trans. Além disso, indeferiu pedido de proteção feito pela Defensoria Pública para Thifany.

    A ocorrência, segundo a liminar, nasceu de uma discussão do casal no dia 24 de agosto. Thifany falou com a Ponte e confirmou a briga com o ex, Renato Coelho Miguelote, que teria saído de casa e voltado apenas na segunda-feira, já com a intimação assinada no dia 25 de agosto, um sábado, durante o plantão judicial da juíza Maria Cristina Dias Aleluia, da Comarca de São Gonçalo.

    A decisão, feita em caráter de urgência, estipulou o afastamento da jovem de seu antigo lar, proibiu que ela mantenha contato com Renato e deve ficar distante no mínimo 500 metros dele. A surpresa veio, porém, quando seu indiciamento se deu através da Lei Maria da Penha, criada especificamente para defender mulheres – e não homens – de violência doméstica.

     

    Medida protetiva em favor de Renato e contra Thifany | Foto: arquivo pessoal

    “Isso causou bastante perplexidade pois o Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, no qual o caso entrou originalmente, existe em função justamente desta legislação”, disse à Ponte Letícia Furtado, do Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos (Nudiversis) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, que primeiro atuou no caso.

    Thifany afirma que ficou muito triste com o mandado, mas principalmente com a atitude do antigo companheiro. “Ele pegou minhas coisas e colocou em um saco de lixo e simplesmente deixou na delegacia”. Além disso, o antigo prédio agora tem um papel que explicita a decisão judicial e cita a estudante por seu antigo registro, com seu nome social apenas entre parênteses. Na decisão, a juíza Maria Cristina Dias Aleluia fez o mesmo. “Eu me chamo Thifany. Isso foi de um abuso e um constrangimento imenso”, desabafou.

    Para a presidente do Conselho LGBT de Niterói, Bruna Benevides, esse é outro agravante do caso. “Não teria nem que constar nome de registro no documento porque Thifany é uma mulher reconhecida pelo Estado Brasileiro”.

    Sobre isso, Symmy Larrat, presidenta da Associação Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), percebeu uma contradição. “Se a juíza não reconheceu o gênero da Thifany, ela sequer poderia aplicar a Lei Maria da Penha, porque daí seria uma ocorrência entre dois homens, portanto fora do escopo da legislação”, pondera.

    Para a Doutora em Direito Penal e presidente da Associação Brasileira de Mulher de Carreiras Jurídicas – ABMCJ – Comissão São Paulo, Alice Bianchini, a análise é sucinta “Como ela já alterou seus documentos, são eles que se encontram válidos para efeitos legais”

    O artigo 5 do provimento 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça, datado de junho deste ano, pontua ainda que tal informação sobre nomes de registro é confidencial. “A informação a seu respeito não pode constar das certidões dos assentos, salvo por solicitação da pessoa requerente ou por determinação judicial, hipóteses em que a certidão deverá dispor sobre todo o conteúdo registral”.

    Medida protetiva para Thifany foi negada

    Para a Defensora Pública, um equívoco nascido da má fé do acusador somado ao volume excessivo de trabalho por parte da juíza pode explicar tal aplicação equivocada da Lei Maria da Penha.

    “Tanto houve erro que logo declinaram a competência do caso para quem seria o juízo da causa, que é o Juizado Criminal”, avaliou, explicando que é nessa esfera que crimes com menor potencial ofensivo, como, por exemplo, ameaça ou lesão corporal leve, podem ser aplicados em favor de um homem.

    Ainda assim, a defesa criticou a juíza Maria Cristina Dias Aleluia pela falta de atenção sobre quem requereu a proteção a partir de uma lei tão específica. A Defensoria Pública pedir medida protetiva para Thifany no juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, mas a Justiça do Rio indeferiu a ação.

    “Ou seja, Thifany está desprotegida, enquanto que a liminar para o seu ex, um homem, mesmo que tenha saído posteriormente do escopo da  Lei Maria da Penha, continua valendo” analisou Letícia, clarificando que decisões liminares como essa geralmente são urgentes e baseadas em indícios, e não em provas cabais, só que para proteger as mulheres.

    Atualmente a jovem se encontra em situação de vulnerabilidade, estando de favor na casa de conhecidos. Sem renda fixa, precisou trancar a faculdade de técnica de enfermagem que fazia em São Gonçalo. Seu medo é ter que precisar voltar a atuar como profissional do sexo, profissão que manteve por oito anos e que parou após conhecer o ex.

    O receio, entretanto, não vai paralisar Thifany. A jovem disse à Ponte que deve entrar com uma representação na Corregedoria contra a juíza. “Não existe Lei Maria da Penha que dê direito a um homem de tirar uma mulher de casa”. A defesa da estudante ainda disse que há espaço tanto para uma indenização quanto para uma reparação civil.

    O que diz a lei

    A Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006), criou uma série de mecanismos jurídicos para coibir a violência doméstica contra a mulher e proteger a vítima de agressão por seu cônjuge ou companheiro. A lei torna crime a violência doméstica e familiar contra a mulher, tipificando as violências em física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

    “A Lei Maria da Penha não pode ser aplicada para casos de violência contra homens, já que o âmbito de proteção da lei é a mulher. No entanto, a norma não distingue a opção sexual, podendo, portanto, ser empregada normalmente em caso de uma mulher agredida por sua companheira. A lei já vem sendo aplicada no caso de violência contra transexuais que se identificam como mulheres em sua identidade de gênero.”, diz texto do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) de 2016, sobre o entendimento majoritário da aplicação da Maria da Penha.

    Segundo o texto, a lei já vem sendo aplicada até no caso de violência contra transexuais que se identificam como mulheres em sua identidade de gênero, e pontua que “o fato de a lei não amparar o homem não significa que ele esteja fora da proteção legal nos casos de agressão.” Para isso o homem deve recorrer às delegacias e aos juizados especiais ou varas criminais para crimes com menor potencial ofensivo, como, por exemplo, ameaça ou lesão corporal leve.

    O texto do CNJ também pontua que “o fato de a lei não amparar o homem não significa que ele esteja fora da proteção legal nos casos de agressão”, que deve procurar a justiça comum para denunciar ameaça ou lesão corporal leve.

    A decisão da juíza Maria Cristina segue uma linha de interpretação ímpar no universo jurídico brasileiro, com poucos casos registrados. A reportagem conseguiu encontrar apenas uma outra decisão semelhante, de 2008.

    Há, contudo, interpretações distintas, como pontua Alice Bianchini. “Alguns juízes e juízas aceitam usar a lei Maria da Penha por analogia, mas apenas em casos excepcionais O tema é bastante controvertido. Doutrina e jurisprudência preponderantemente não aceitam tal situação”.

    Para Bruna Benevides, o que o judiciário fluminense fez foi surpreendente. “Jamais iríamos imaginar que uma juíza mulher teria o entendimento contrário ao do próprio CNJ. A Lei Maria da Penha está sendo utilizada de forma que não corrobora com o direito das mulheres”.

    Já Symmy Larrat acredita que essa não seja uma ação isolada por parte do juízes. “Eles fazem e acontecem e ninguém pode fazer nada, e muitas vezes eles estão baseados em seus dogmas para espalhar preconceito e ódio”.

    A Ponte entrou em contato com o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que disse apenas que “não comenta decisões proferidas em ações”. O CNJ também foi procurado, mas não se pronunciou até a publicação desta reportagem. O acusador, Renato Coelho Miguelote, foi contatado mas não respondeu.

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