Justiça Federal nega reabrir caso de jornalista assassinado pela ditadura

    Dois desembargadores do TRF-3 de São Paulo usaram a Lei da Anistia para justificar decisão que mantém impune morte de Luiz Eduardo Merlino

    Angela (à frente, de branco) ao lado da advogada da família, Heloísa Machado (de bege) | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Angela Mendes de Almeida não se conformava com a decisão da 11ª Turma do TRF (Tribunal Regional Federal) 3, em São Paulo. Na tarde desta quinta-feira (10/10), os desembargadores federais decidiram, por 2 votos a 1, que não reabririam o caso da morte de seu companheiro, Luiz Eduardo Merlino, em 1971, quando ele tinha 23 anos. Ele foi assassinado no porão do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) e torturado pelo coronel Carlos Brilhante Ustra.

    “Nós já sabíamos que a decisão seria essa, qual era o voto. São 48 anos, mas o pior é que a decisão, baseada na letra da lei, ela é um incentivo à tortura. É uma insensibilidade muito grande do judiciário”, definiu Angela. Merlino morreu após ser sequestrado no dia 15 de junho de 1971 e ser torturado no DOI-Codi, comandado à época por Ustra, falecido em 2015.

    Os desembargadores federais do TRF-3 votaram recurso do MPF (Ministério Público Federal) para que três agentes da ditadura fossem processados pelo homicídio de Merlino, ocorrido em 19 de julho de 1971. A tentativa era de que o delegado aposentado Aparecido Laertes Calandra e o delegado da Polícia Civil Dirceu Gravina respondessem por homicídio doloso e tortura, e o médico Abeylard de Queiroz Orsini, que trabalhava como legista, pelo crime de falsidade ideológica por conta do laudo da morte de Merlino.

    O MPF também tentou incriminar o coronel Ustra, mas sua punibilidade foi extinta com a morte, quatro anos atrás. Ustra é o único torturador da ditadura militar reconhecido como tal pela Justiça brasileira. Em outubro de 2018, o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) anulou ação de danos morais movida pela família de Merlino contra o coronel. Os desembargadores alegaram “prescrição do crime”.

    Agentes da ditadura disseram que o jornalista havia sido atropelado e esta era a causa da morte. Em um julgamento no TJ-SP, desembargadores consideraram como prova legal o laudo de óbito feito pelo governo militar e apontado como inverídico por membros da Comissão da Verdade feita pela Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo). Testemunhas presas junto com Merlino alegam que as torturas foram o real motivo de sua morte e os próprios torturadores o atropelaram para basear a versão oficial.

    Já na Justiça Federal, a ação criminal não prosperou porque dois dos três desembargadores consideraram que a Lei da Anistia, de número 6.683, assinada em 1979, incluía casos como o do jornalista. José Lunardelli, relator do caso, e Nino Oliveira Toldo, presidente da 11ª Câmara, votaram pela não abertura do processo. Fausto De Sanctis foi o único a votar favoravelmente.

    “Voto na linha que a Anistia foi recepcionada nesses casos, ela representa a construção possível naquele período”, define Lunardelli, dizendo que a família deve, sim, ir atrás da verdade, mas “por outros caminhos” e que não havia ali “elementos que afastassem a aplicação da anistia”. A ditadura militar teve início em 1964 e terminou em 1985, com a Lei da Anistia sendo feita seis anos antes da redemocratização.

    Sessão que votou recurso iniciou às 9h30, mas caso Merlino foi avaliado apenas às 13h30 | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Antes de votar contra a abertura do processo, Toldo prestou solidariedade à família Merlino e se mostrou desconfortável com a consequência de seu voto. “Nós, da Justiça, temos por juramento cumprir a Constituição e as leis existentes. Regramentos vinculam decisões e, nesse caso, há em tribunais superiores, como o STF (Superior Tribunal Federal). Por mais que seja doloroso, houve um conserto político para que a anistia fosse ampla, não o do caminho da batalha, mas o da paz”, explicou o presidente da Câmara.

    Fausto de Sanctis teve entendimento diferente quanto ao STF. Segundo ele, a Suprema Corte brasileira “não é perene” e possui entendimento diversos sobre o assunto, o que possibilita não enquadrar assassinatos no texto. “A Lei da Anistia jamais deveria ser dada e abarcar tamanhas violações contra a natureza humana. Não acredito que foi uma lei fruto de acordo popular, foi votada de maneira sumária e não se pode validar lei imposta goela abaixo”, sustentou o desembargador, votando favoravelmente pela abertura do processo.

    Advogada da família Merlino, Heloísa Machado lamentou a decisão.”Infelizmente, a decisão da 11ª Turma foi manter a decisão de primeiro grau contra os crimes praticados contra Merlino. O próximo passo será pensar como o caso reverberará em instâncias internacionais. São 48 anos de luta da família, não é possível que essa injustiça permaneça tanto tempo”, criticou. “Parece um pretexto usar a Lei da Anistia para não permitir nenhuma dessas investigações”, complementou.

    Ao seu lado, Angela protestava. “Eu fico escandalizada que, nessa situação em que estamos, em que há um presidente da República e outros amigos dele que defendem a tortura e a ditadura militar, haja uma decisão dessas. É preciso que o judiciário brasileiro acolha a legislação internacional”, disse.

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