Justiça inocenta Chico: idoso e manco, foi acusado de fazer dois roubos e fugir a pé

Reportagens da Ponte foram usadas no pedido de liberdade, em 2019, e depois no pedido de absolvição; negro, Francisco Carvalho Santos foi preso e condenado em 2018 após reconhecimento feito por foto, contrariando o Código de Processo Penal

Foto 3×4 de Chico, que foi diagnosticado com câncer no cólon em novembro de 2017 e na época em que foi preso se tratava com quimioterapia. Hoje, está curado do câncer | Foto: Arquivo pessoal

“Eu sabia que esse dia ia chegar, foi uma libertação”, disse dona Carmem dos Santos, 53, sem conseguir conter a emoção e alegria. Na tarde desta quinta-feira (20/5), os desembargadores da 9ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo absolveram em segunda instância o pintor e ajudante de pedreiro Francisco Carvalho Santos, 62, das acusações de dois roubos, em 2018, após reconhecimento irregular feito pelos funcionários de um posto de gasolina.

Idoso e manco, Chico, como é conhecido, passava próximo do estabelecimento em agosto daquele ano quando os frentistas ligaram para polícia acreditando ser o assaltante que teria cometido dois roubos, dois meses antes. Segundo eles declararam no boletim de ocorrência, um homem alto, pardo, de cabelo parcialmente grisalho e armado roubou o estabelecimento em junho e julho e fugiu a pé.

Os policiais tiraram uma foto do pintor durante a abordagem e mostraram para as vítimas, processo que contraria o artigo 226 do Código de Processo Penal, já que é determinado que na delegacia seja feita a descrição do suspeito e pessoas com características semelhantes sejam apresentadas. O reconhecimento foi a única base da prisão e da condenação de Chico que, na época, também tratava de um câncer com sessões de quimioterapia.

No acórdão*, o desembargador e relator Alcides Malossi Junior levou em consideração a tese in dubio pro reo (na dúvida, a favor do réu), já que entendeu haver divergências da acusação e as provas levantadas pela defesa do idoso, uma vez que imagens de câmeras do posto de gasolina nunca foram fornecidas, as características descritas pelas vítimas não serem semelhantes ao perfil de Chico e os depoimentos serem controversos. “O que se pode afirmar é que as provas contra o apelante eram fortes e concretas, o que
justificou, perfeitamente, o entendimento do Juízo de primeiro grau, porém, interpretando-as de outra forma, o que se faz possível em sede de recurso, mais ampla e profunda, apesar daquela inicial força, especificamente no presente caso, o que poderia ser suficiente para uma condenação, assim não surgiu, porque a Defesa, de fato, apresentou provas várias que, efetivamente, colocaram em dúvida aquela apresentada pela acusação, não sendo possível fazer uma versão preponderar sobre outra, o que, inquestionavelmente, deve favorecer o acusado”, argumentou.

De acordo com a advogada Débora Nachmanowicz de Lima, os desembargadores levaram em consideração as inconsistências do processo e a dúvida sobre Chico ser o autor dos assaltos. “Os desembargadores analisaram ponto a ponto as questões que a a defesa trouxe, como o posto de gasolina ter câmeras de segurança e não ter fornecido as imagens, da descrição das vítimas não bater com o do Chico e as imagens de uma câmera perto da casa dele mostrar que ele estava em casa na hora dos crimes”, explicou.

Ela também ficou muito emocionada com o resultado do julgamento. “É o caso mais importante da minha carreira e que mais me tocou. A gente vê muitos casos de prisões injustas e é inacreditável que o Chico, um senhor idoso, manco, que fazia tratamento de câncer, ficou sete meses preso no CDP de Pinheiros, um local superlotado”, lamenta. “Fico feliz de ver que a justiça foi feita”.

Em sua fundamentação, a advogada usou reportagens feitas pela Ponte, R7 e TV Record, publicadas entre 2018 e 2020. Em março de 2019, texto da Ponte foi usado no pedido de liberdade provisória de Chico, que foi acatado pelo Tribunal de Justiça. Na época, em fevereiro, ele havia sido condenado na primeira instância a cumprir 7 anos, 9 meses e 10 dias de prisão em regime inicial semiaberto, mas não poderia recorrer da decisão em liberdade. Desde então, o ajudante de pedreiro aguardava o resultado do recurso.

“Agora eu sinto que eu vou viver de verdade, sair na rua, porque eu tinha medo de sair e a polícia me prender de novo”, conta Chico. “O que eu mais quero fazer é viajar, ir lá para Salvador, lá é um lugar muito bonito”, ri ao telefone. “Foi uma emoção muito grande receber a notícia, muita alegria, eu tinha acabado de retornar do serviço”, prossegue. Ele e a esposa, a empregada doméstica Carmem, vivem há mais de 20 anos em São Paulo com o filho de 14 anos e desejam retornar à Bahia.

*Atualização: às 12h11, de 26/05/2021, para incluir o acórdão.

Correções

*Atualização: às 12h11, de 26/05/2021, para incluir o acórdão.

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