Justiça libera atuação social de médico-palhaço perseguido pela polícia

Tribunal acatou pedido da Defensoria Pública para que Flavio Falcone atue com projeto para pessoas em situação de vulnerabilidade e dependência química na região da “Cracolândia”, no centro de SP; bicicleta de som continua apreendida

O psiquiatra e palhaço Flavio Falcone com cartaz escrito “Vidas na Craco Importam” no Teatro de Contêiner, no centro de São Paulo | Foto: reprodução/Facebook

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo acatou, nesta segunda-feira (19/9), um pedido da Defensoria Pública para que o psiquiatra e palhaço Flavio Falcone possa circular e atuar livremente com seu projeto social Teto, Trampo e Tratamento em qualquer horário e via pública.

O juiz José Fernando Steinberg, do Juizado Especial Criminal (Jecrim), entendeu que “as atividades desempenhadas pelo Projeto Social, em questão, têm aparência de lícitas” e, não havendo provas de cometimento de crime, restringir a atuação viola o direito de locomoção dos artistas.

“Eventualmente, caso haja a prática de infrações penais, as ocorrências deverão ser lavradas, com a identificação da autoria, além da colheita de provas e indícios necessários para a caracterização de eventual conduta criminosa, normalmente, uma vez que a livre circulação não implica na exclusão da ilicitude, nem tampouco, poderá cercear a autoridade policial de cumprir com seu dever funcional, também, de relevante valor social”, argumentou o magistrado.

Steinberg negou a solicitação de suspender a investigação da Polícia Civil contra o médico e o grupo de outras 14 pessoas que foram detidas no início do mês na região conhecida pejorativamente como “Cracolândia”, no centro da capital, no âmbito da Operação Caronte, que visa combater o tráfico de drogas. De acordo com elas, só na delegacia foram informadas que a detenção se deu por suposta “perturbação de sossego” e “recusa de dados sobre a própria identidade”, que são contravenções penais, ou seja, infrações de menor potencial ofensivo.

A decisão é em caráter liminar (de urgência) e cabe recurso. De acordo com Falcone, a atividade que realiza toda a quinta-feira não aconteceu na semana passada por receio de truculência policial. “É uma vitória muito importante nesse momento! Agora vamos ver o quanto que o governo vai estar disposto a usar de influência política pra mudar a decisão desse juiz ou pra derrubar em segunda instância”, declarou à Ponte.

A bicicleta de som que utiliza como parte de um show de talentos e apresentações que faz junto a dependentes químicos e artistas nessa atividade foi apreendida e permanece com a Polícia Civil. A Defensoria Pública entrou com um pedido, há quase duas semanas, ao juíz do Departamento de Inquéritos Policiais da Capital (Dipo) para que o equipamento seja devolvido ao psiquiatra. Segundo Falcone, o magistrado está analisando o caso.

Em reunião do Conselho de Segurança Comunitário (Conseg) dos bairros de Santa Cecília, Campos Elíseos e Higienópolis, em 13 de setembro, o delegado Severino Vasconcelos, do 77º DP (Santa Cecília), declarou que pediu ao Tribunal de Justiça que a bicicleta seja destruída e incentivou os moradores a fazer um abaixo-assinado contra as atividades do psiquiatra.

“O caso do palhaço está solucionado, a menos que nós tenhamos uma decisão judicial para a devolução do equipamento, coisa que eu não acredito, já que é um bem material ilícito”, disse. “É claro que ainda estou no inquérito e existe a possibilidade de existir outras vítimas ou de juntar um abaixo-assinado, se vocês assim o fizerem chegar até a delegacia. É importante que vocês façam com que a perturbação desse caso tenha materialidade. Eu fiz a minha parte.”

A reunião foi transmitida online pelo canal no YouTube do Conseg e o trecho divulgado pelo movimento A Craco Resiste, que denuncia violações de direitos humanos no território, que considerou a declaração como “absurda” e que o delegado “avançou sobre os redutores de danos, da mesma forma que tem feito contra as pessoas em situação vulnerável nas ruas da região”.

Segundo a Defensoria Pública, o delegado se recusou a fornecer boletins de ocorrência que moradores teriam registrado contra as atividades do médico com a bicicleta de som. “Quando chegamos na delegacia, primeiro disseram que tinha um inquérito, depois que, na verdade, eram boletins de ocorrência. A gente pediu para ver e o delegado fez muita volta e disse ‘quem na verdade se incomoda sou eu’”, declarou na ocasião a defensora Fernanda Balera.

Ela explicou que o pedido, feito em forma de habeas corpus coletivo, foi uma forma de “resguardar as atividades na região da Cracolândia porque a gente entende que o trabalho do Flávio é um meio de resistência de atendimento à população vulnerável em relação às ações de espalhamento dos usuários que vêm acontecendo”.

Nos depoimentos colhidos pela Defensoria, aos quais a Ponte teve acesso, tanto os profissionais de saúde quanto os artistas relataram um clima “tenso” na região diante do aumento de abordagens e truculência policiais. Um dos episódios aconteceu uma semana antes, quando MC Nego Bala, 23, que participa do projeto Teto, Trampo e Tratamento, questionou uma abordagem pela GCM a um homem negro em situação de rua depois que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que guardas municipais não têm poder de polícia. Na ocasião, discutiu com um guarda que também filmava a ação e que registrou um boletim de ocorrência por desacato e injúria.

O delegado Roberto Monteiro, da seccional Centro, cita uma parte do que aconteceu ao afirmar em postagem do Instagram que “a referida bicicleta de som foi também usada para desacatar as forças policiais e até para a prática de injúria racial contra um GCM a serviço, pela pessoa do MC Nego Bala, que tem antecedentes criminais por roubo (condenado a 4 anos de prisão) e pratica atos infracionais desde os 12 anos de idade”.

Ponte contou a história do MC em janeiro deste ano após o lançamento do seu primeiro álbum. À reportagem, o advogado do jovem, Erik Torquato, disse que ainda estuda com ele as medidas que vão ser tomadas diante da publicação do delegado.

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Monteiro também afirma que o Instituto de Criminalística teria constatado que “o som da bicicleta funciona a 95 decibéis, em volume bem superior ao suportado, configurando, portanto, crime ambiental”. No entanto, nem o boletim de ocorrência nem o auto de apreensão indicam essa informação ou cometimento de crime ambiental. “A gente não viu ninguém medindo a caixa de som da bicicleta”, disse a psicóloga Ludmila Frateschi, que foi atingida por uma bala de borracha e também foi detida enquanto acompanhava o projeto de Falcone.

A Secretaria de Segurança Pública informou que houve reclamação de moradores, sendo que oito já teriam sido ouvidos e “novos depoimentos serão colhidos nos próximos dias”. “A caixa de som foi apreendida para perícia, que constatou a prática de crime ambiental, tendo em vista que a caixa de som estava com a altura em 96 decibéis”, declarou a pasta em nota.

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