Leis inadequadas e falta de preparo policial cobram preço das famílias de pessoas desaparecidas

Relatório do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania sobre desaparecidos no RJ conclui que a  dificuldade de articulação entre as instituições e a falta de integração dos diversos bancos de dados dificultam ainda mais investigações

Luciane Torres, desaparecida em 2009, ao lado de imagem de simulação de envelhecimento. “A família tem que virar investigadora”, diz mãe | Foto: Reprodução

Era um dia de alegria na casa de Luciene Pimenta Torres. Sua primeira neta havia nascido há pouco tempo e a família toda estava comemorando a chegada do novo membro naquele 30 de agosto de 2009. Porém, em 15 minutos tudo mudaria. Sua filha mais nova, Luciane Torres da Silva, que na época tinha nove anos de idade, saiu para ir à padaria, que fica muito perto da casa onde mora, e nunca mais voltou.

“Estávamos comemorando o nascimento da minha primeira neta. A Luciane saiu para ir à padaria, que é aqui do lado. Passaram-se 15 minutos e minha filha mais velha estranhou a demora e foi atrás dela. Ela perguntou se a Luciane tinha estado lá, mas disseram que não a viram. Aí foi que começou o nosso desespero”, relata Luciene.

Passados quase 13 anos, o sentimento de angústia nunca mais abandonou o peito da moradora de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, que aos 60 anos ainda tem esperança de encontrar a filha. A luta em busca de Luciane fez com que Luciene criasse a ONG Mães Virtuosas do Brasil, que dá orientação e amparo às pessoas que têm familiares desaparecidos.

Segundo levantamento dos anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), de 2007 a 2020 houve cerca de um milhão de registros de pessoas desaparecidas no país, uma média de 71,6 mil por ano ou cerca de 196 por dia. Diante de números tão alarmantes, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESec) elaborou o relatório “Teia De Ausências: o percurso institucional dos familiares de pessoas desaparecidas no Rio de Janeiro”.

O documento avalia o sistema de atendimento para os parentes de alguém que está desaparecido e também analisa como são feitas as investigações na busca por essas pessoas pela Polícia Civil fluminense. O estudo mostra que o estado até tem legislações e mecanismos voltados para o tema, mas que mesmo assim ainda é falho diante da demanda de casos.

“Fizemos um estudo qualitativo sobre o estado do Rio de Janeiro, pegando informações com instituições que lidam com essa temática, tanto do setor público como ONGs e ativistas”, explica a pesquisadora responsável pelo estudo, Paula Napolião. “Tentamos traçar o percurso institucional pelo qual essas famílias que estão buscando pessoas que estão desaparecidas passam no Rio de Janeiro”, diz.

Busca incessante e rede de apoio

Pessoas desaparecem por diferentes motivos. Seja por formas violentas como um homicídio ou sequestro, ou mesmo como consequência de doenças que afetam a memória, como o mal de Alzheimer, há uma complexidade nas ações para investigar um caso de desaparecimento. Porém, a pesquisa do CESeC indica que são as famílias pobres que mais sofrem durante esse processo.

“Quando se trata de pessoas negras e pobres, uma rede de muitas faltas vai-se tecendo em torno da ausência primordial: falta de ações e informações integradas; de políticas públicas específicas; de instituições devidamente equipadas; de apoio psicossocial e jurídico às famílias; de capilaridade dos poucos serviços de acompanhamento disponíveis; de preparo e sensibilidade dos agentes que lidam com o tema”, destaca um trecho do relatório.

Luciene Pimenta conhece de perto todas essas falhas. Ela relata que nesses 12 anos que está em busca da sua filha passou por diferentes fases e explica que as famílias sofrem de diferentes maneiras quando estão em buscas dos entes desaparecidos.

“A família tem que virar investigadora, a gente tem que ser detetive, a gente tem que saber nadar, a gente tem que saber tudo. Não há uma transparência por parte da polícia de como as investigações são feitas e mesmo assim, somos nós que temos que ir atrás de alguma pista para que possa ser anexada ao processo.”

Há mais de uma década em busca da filha, Luciene faz um trabalho de apoio e direcionamento às pessoas que também estão passando pela mesma situação que ela. Nestes momentos, acaba assumindo diferentes papéis para dar auxílio para quem também está desesperado sem encontrar um parente.

“Eu digo que eu tive um certo privilégio por ter tido acompanhamento psicológico durante um período, mas essa não é a realidade da maioria. Nesse tempo que estou nessa luta, já acolhi muita gente e fiz esse papel de escutar a dor de cada mãe. Hoje eu falo que não tenho só uma filha desaparecida, digo que tenho vários, porque eu também quero encontrar muitos outros que eu sei que estão desaparecidos”, conta a presidente da ONG Mães Virtuosas do Brasil.

Leis que não ajudam

De acordo com a legislação brasileira, o desaparecimento, até que se prove o contrário, não é visto como um crime, mas um fato atípico. A primeira lei sobre o assunto é a 11.259 de 2005, que trata de crianças e adolescentes, e apenas em 2019, com a lei 13.812, foi estabelecido que uma pessoa é considerada desaparecida quando o “paradeiro é desconhecido, não importando a causa de seu desaparecimento, até que sua recuperação e identificação tenham sido confirmadas por vias físicas ou científicas”.

No Rio de Janeiro, a pesquisa do CESec identificou 27 leis sobre o tema dos desaparecimentos aprovadas desde 1996 na Assembleia Legislativa do estado. A primeira criou um memorial em homenagem aos mortos e desaparecidos políticos. Desde de então foram criadas medidas para divulgação dos rostos de pessoas sem paradeiro conhecido em espaços públicos e mais recentemente um texto que determina a busca imediata de desaparecidos menores de 16 anos ou de pessoas de qualquer idade portadoras de deficiência física, mental e/ou sensorial.

“Existe ainda o mito que a polícia só pode notificar um desaparecimento 24 horas após a família ter tido o último contato com a pessoa. Isso não está escrito em lugar algum. A gente precisa deixar claro que uma pessoa deve comunicar às autoridades assim que der falta de alguém. Isso, inclusive, é essencial para que esta pessoa consiga ser localizada mais rapidamente”, explica Paula Napolião.

Na opinião de Luciene Pimenta, é pensado muito pouco na assistência que a família de pessoas que estão desaparecidas precisam. Por mais que já tenham sido criadas tentativas de melhorar a localização das pessoas, ainda é necessário acolher melhor quem está na busca por alguém.

“Somos muitas vezes maltratadas em delegacias, fora o desencontro nas informações. Quase todo mundo que tem alguém desaparecido na família sofre com informações desencontradas que muitas vezes vêm das próprias autoridades”, reclama Luciene.

O estudo do CESec conclui que a  dificuldade de articulação entre as instituições e a falta de integração dos diversos bancos de dados existentes constitui um sério obstáculo à implementação de políticas públicas coordenadas.

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“Conversamos com muitos policiais durante a pesquisa e nos foi relatado que os principais problemas, além da falta de um banco de dados único, é a questão da falta de material humano para acompanhar melhor os casos e também a ausência de núcleos especializados em desaparecimentos. Hoje no Rio de Janeiro esses casos ficam por conta das delegacias de homicídios, além de uma única especializada, a Delegacia de Descoberta de Paradeiros (DPPA)”, Informa Paula Napolião.

O que diz a polícia

A Ponte pediu, mais de uma vez, entrevista com algum representante da Polícia Civil do Rio de Janeiro para comentar as investigações sobre pessoas desaparecidas e enviou uma série de perguntas sobre o tema para a assessoria da corporação, mas não obteve resposta.

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