Livro debate ditadura e homossexualidade

    Relação entre a ditadura e a comunidade LGBT é agora exposta no recém-lançado livro Ditadura e Homossexualidades – Repressão, Resistência e a Busca da Verdade organizado por James Green e Renan Quinalha

    Regimes ditatoriais costumam andar de mãos dadas com valores morais conservadores e não foi diferente no Brasil durante a ditadura civil-militar que dominou o País de 1964 a 1985. Embora sem grande repercussão, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTs) também foram alvo de violência, perseguições e atrocidades, assim como protagonizaram manifestações de resistência.

    Essa relação entre a ditadura e a comunidade LGBT é agora exposta no recém-lançado livro Ditadura e Homossexualidades – Repressão, Resistência e a Busca da Verdade (Editora EdUFSCar), organizado por James Green, historiador brasilianista da Universidade de Brown (EUA), e Renan Quinalha, integrante da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.

    Da esquerda para a direita: Jorge Caê Rodrigues, Marisa Fernandes, Renan Quinalha e James Green, na noite de lançamento do livro, em SP. Foto: Ponte Jornalismo
    Da esquerda para a direita: Jorge Caê Rodrigues, Marisa Fernandes, Renan Quinalha e James Green, na noite de lançamento do livro, em SP. Foto: Ponte Jornalismo

    Coletânea composta por nove capítulos, escritos por ativistas e acadêmicos, o livro pretende fazer uma análise sobre as diversas relações entre o regime e as homossexualidades, as raízes ideológicas e morais que sustentaram a associação entre “desvio moral” e “subversão”, além de relatar as ações de resistência promovidas por esse grupo. Com uma narrativa acessível ao público não acadêmico, mas sem prescindir de referenciais teóricos, Ditadura e Homossexualidades…” tem até um ou outro toque de humor, que aparece especialmente na paranoia dos atores da ditadura em vincular a “revolução dos costumes” com a “máquina comunista”. Como bem observa, já no prefácio, o historiador Carlos Fico, um dos mais respeitados pesquisadores do Brasil sobre esse período ditatorial, uma articulação que “hoje nos parece cômica”.

    Essa repressão atrasou o desenvolvimento dos movimentos pelos direitos dos homossexuais. Enquanto o mundo vivia em plena época de revolução sexual e ativistas gays se organizavam em cidades como Nova York e Buenos Aires, no Brasil, ministros pediam laudos psiquiátricos e até proctológicos para caçar homossexuais, vetavam livros, filmes e a divulgação de qualquer notícia de “exaltação da imoralidade e do homossexualismo”.

    Os veículos de comunicação eram vistos como incentivadores desses “desvio morais”. No primeiro capítulo da coletânea, Homossexualidade, ideologia e “subversão”, o professor Benjamim Cowan, da universidade norteamericana George Manson, revela um relatório da Defesa Nacional, datado de 1970, que apresenta os meios de comunicação de massa como a “‘menina dos olhos’ do PC [Partido Comunista]” – maiormente porque filmes e televisão tornaram-se “mais ou menos apologéticos da homossexualidade (e já têm aparecido os primeiros sintomas)”.

    Integrantes da mesma Defesa Nacional acusam o filósofo alemão Herbert Marcuse de promover em suas obras “exibicionismo, fellatio e erotismo anal” – como parte de um plano de “ações no campo moral e político que conduzirão seguramente ao caos, se antes não levassem ao paraíso comunista”. E numa cruzada contra o que o ministro das comunicações Hygino Corsetti (1972) chamava de exaltação ao erotismo, o alcoolismo e as “inversões sexuais”, os estilistas Clodovil e Denner tiveram suas participações suspensas em programas de TV, relata Rita Colaço, doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no capítulo 7, De Denner a Chrysóstomo, a repressão inviabilizada: as homossexualidades na ditadura.

    As violências contra a comunidade LGBT, aponta Quinalha, no capítulo seguinte, se manifestava também na perseguição a travestis, que eram enquadrados nos crimes de vadiagem, por não terem emprego registrado, ou de perturbação da ordem pública; na censura a livros, peças de teatro ou filmes que representassem abertamente formas de sexualidades dissidentes, e até em expurgos de funcionários públicos.

    Como fez o governo Costa e Silva (1967-1969), seu então ministro das relações exteriores, Magalhães Pinto, chegou a instalar uma comissão para investigar a “prática de homossexualismo” por funcionários do governo. Quinze diplomatas do Itamaraty foram cassados, sendo 7 deles sob a acusação explícita de “prática de homossexualismo, incontinência pública escandalosa”.

    Mas o livro vai além das ações de repressão e apresenta as iniciativas de resistência que surgiram na época como grupos gays de defesa de lésbicas, os shows de Ney Matogrosso, o mais que ousado grupo Dzi Croquetes, a literatura de Cassandra Rios – pioneira em ficção sobre lesbiandade e que teve 36 de suas obras censuradas. Mostra também que as dificuldades dos movimentos pelos direitos LGBTs não se originavam apenas no governo militar.

    O Grupo Lésbico Feminista, conforme relata Marisa Fernandes, ativista do Grupo de Feministas Lésbicas (CFL), no capítulo Lésbicas e a Ditadura Militar: uma luta contra a opressão e por liberdade, e que surgiu a partir do Somos – Grupo de Afirmação Homossexual teve mais de um opositor. Além do Estado político-militar de direita, deparou-se com a falta de compreensão da esquerda ortodoxa que se recusava a incorporar à luta pelas causas sociais questões como racismo, machismo e patriarcado. “A primeira inserção lésbica no movimento feminista foi bastante traumatizante…As mulheres ligadas a organizações políticas de uma esquerda autoritária, centralizadora, patriarcal e reacionária pregavam não existir violência contra a mulher, mas sim a violência ditatorial contra homens e mulheres da classe operária, e que propostas de se refletir sobre as especificidades das mulheres eram pequeno-burguesas e elitistas e que pouco interessavam ao povo e à revolução”, escreve.

    A mais reconhecida publicação do movimento LGBT do Brasil, o jornal O Lampião da Esquina, é o tema do capítulo 3. Jorge Caê Rodrigues, professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) conta, com indisfarçável carinho e saudosimo, a história do periódico que circulou entre 1978 e 1981 e cujo acervo está disponível no site do Grupo Dignidade . Lançado por Adão Costa, Aguinaldo Silva, Antônio Chrysóstomo, Clóvis Marques, Gasparino Damata e João Antônio Mascarenhas; o artista plástico Darcy Penteado; o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet; o antropólogo Peter Fry; o poeta e crítico de arte Francisco Bittencourt; e o cineasta e escritor João Silvério Trevisan, o Lampião da Esquina não apenas promoveu resistência e enfrentamento ao regime e à moral conservadora, como foi o primeiro a trabalhar na afirmação da identidade gay.

    O professor José Reinaldo Lopes, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) desenvolve, no capítulo final, uma importante articulação entre os direitos dos homossexuais e a defesa da democracia. Trazendo o leitor para o contexto atual, conclui que por baixo da democracia eleitoral que o Brasil vive hoje, ainda se esconde uma sociedade violenta e intolerante, e toma como prova o número de assassinatos de homossexuais no Brasil.

    Título: Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade
    Organizadores: James Green e Renan Quinalha
    Número de páginas: 332
    Preço: R$ 49,00
    Editora: EdUFSCar

     

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