Agente mata jovem desarmado em presídio: tinha ‘volume’ na cintura, justificou

Matheus Justino Filgueira, 19 anos, levou um tiro no olho esquerdo em penitenciária de Guarulhos (SP); atirador diz que preso tentava fugir

Matheus Justino Filgueira tinha voltado de saída temporária dez dias antes de ser morto | Foto: Arquivo pessoal

O jovem Matheus Justino Filgueira, 19 anos, chegou a ser levado ao Hospital Municipal de Urgências em Guarulhos, na Grande São Paulo, mas não resistiu. Morreu em 1º de abril deste ano, ferido com um tiro no olho esquerdo. O disparo da Taurus 638 de calibre 380 foi feito pelo agente penitenciário Gilson José Ferreira dentro da Penitenciária I José Parada Neto, localizada na mesma cidade. A arma era de uso pessoal de Gilson, que alegou, em depoimento, que a ação com resultado fatal foi resposta a uma tentativa de fuga. A mãe de Matheus, a doméstica Suellen Justino do Nascimento, 35 anos, não acredita nesta versão. 

Ela diz que o filho sofreu violências verbais e físicas enquanto esteve na unidade e pede apuração rigorosa sobre as circunstâncias da morte. Um inquérito foi instaurado no 4º Departamento de Polícia de Guarulhos. 

A Ponte teve acesso a um trecho do boletim de ocorrência do caso. Gilson, que trabalha no setor de manutenção da unidade há pelo menos três décadas, contou que estava na área externa quando ouviu na frequência do comunicador pedido de apoio para coibir uma fuga. O agente então pegou a arma pessoal e se dirigiu ao local onde Matheus estaria tentando subir em mais um nível do telhado que dá acesso à parte externa da unidade. 

Gilson relatou que apontou a arma para o preso e pediu que ele descesse, ordem que não teria sido obedecida. Na versão do agente, Matheus teria dito “não vou descer, vou matar todo mundo” e teria um volume suspeito na cintura. No momento em que o preso supostamente iria tirar o objeto que carregava, ele foi ferido com um tiro. 

O BO não especifica se de fato havia algo com o preso e a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) também não respondeu sobre o suposto objeto. 

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O agente também foi encaminhado ao hospital após o disparo. Segundo relato do BO, a pressão de Gilson subiu e ele foi atendido no Hospital do Servidor. Após receber alta no mesmo dia, ele foi até a delegacia prestar depoimento acompanhado de um advogado. Um fato que chama atenção é o uso da arma pessoal de Gilson em serviço, o que é permitido pela lei 12.993. A legislação permite ainda que os agentes possam carregar armas fora do ambiente de trabalho.

Também foi ouvido o policial penal Israel Ferreira de Souza, diretor de carceragem da cadeia. Ele relatou que Matheus fugiu do alojamento coletivo no momento em que outro policial penal abriu a carceragem.  O jovem teria então corrido em direção à portaria da unidade, mas ao notar que o portão estava fechado, mudou de rota e se deslocou para a direita do pavilhão, onde escalou o alambrado chegando ao telhado da unidade. 

Foram acionados por Israel os policiais penais Daniel Petralkas e Matheus Sardinha, além de outros três chamados apenas de Gilberto, Everaldo e Virgílio. O diretor de carceragem também disse em depoimento que Matheus ameaçou ferir quem se aproximasse dele. Gilson teria sido chamado neste momento e na sequência ocorreu o disparo. 

Matheus estava preso do regime semiaberto, mas não saia da unidade por não possuir emprego externo e nem estava matriculado em algum curso, conforme prevê o Código Penal para que ele pudesse se ausentar da unidade durante o dia. A mãe diz que dentro da unidade não foram ofertadas oportunidades de serviço ou estudo para o filho. 

Presos deste tipo de regime têm, em tese, liberdade para trabalhar ao longo do dia ou fazer outras atividades relacionadas ao princípio de ressocialização da pena. É o que explica Gustavo Scandelari, coordenador do Núcleo de Direito Criminal da Dotti Advogados e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). 

Scandelari conta ainda que somente no regime semiaberto é permitido ao preso a saída temporária. “O condenado pode sair do estabelecimento e em cada uma dessas cinco oportunidades [por ano] pode ficar até sete dias em liberdade para passar tempo com a sua família”, comenta.

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Um dos principais gargalos deste sistema, define Scandelari, é que há falta de emprego para os condenados. “O que acontece é que muitas vezes não há vagas de trabalho, por que elas são limitadas”, aponta. 

“Muitas vezes não há vaga e aí o preso não é sancionado, porque se tem vaga e o preso se recusa a trabalhar, isso é uma falta grave e ele é punido Agora, como não tem vaga, a pessoa fica ali aguardando”, conclui Scandelari. 

A unidade onde Matheus estava preso abriga presos do regime semiaberto e fechado. Inaugurada nos anos 90, a Penitenciária está com lotação acima da capacidade, segundo dados da SAP atualizados em 2 de junho. Com 1.059 vagas, a unidade recebe 1.647 detentos.

Considerando apenas presos do semiaberto, também há superlotação. São 360 vagas ocupadas por 545 presos.

Matheus viu a família pela última vez na saída Dia das Mães

Segundo a mãe Suellen, Matheus havia sido detido a cerca de quatro meses na unidade e viu a família pela última vez ao ser beneficiado com a saída temporária relativa ao Dia das Mães, celebrado esse ano em 14 de maio, mas concedida ao jovem em 14 de março. “Dia 20 [de março] ele retornou e dia 1ª foi assassinado”, conta a mãe Suellen. 

A doméstica contesta a versão do agente prisional e diz não acreditar que o filho tenha tentado fugir. “Se fosse para fugir, ele não teria voltado”, argumenta. Ela também questiona que Matheus carregava algo na cintura, o que na versão de Gilson teria motivado o tiro.

“É tudo mentira. O quê ele vai ter dentro da cadeia? Arma? Como que vai ter arma?”, rebate Suellen. Filho mais velho de três irmãos, Matheus foi sepultado no cemitério Cachoeirinha, na Zona Norte de São Paulo, onde a família vive.

A mãe busca junto à Defensoria Pública que a investigação sobre a morte avance para além da versão dada pelo agente. Ela diz que testemunhas relatam a ela que Matheus sofria ameaças que teriam sido feitas por Gilson dentro da unidade.

“Sete pessoas para pegar um menino de 19 anos. Meu filho era um menino”, lamenta. 

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Gilson foi afastado inicialmente por 30 dias em licença remunerada por motivo de saúde. Segundo Diário Oficial, ele saiu da função no dia 6 de abril, cinco depois da morte de Matheus. Em 6 de maio, Gilson voltou a ser afastado por mais 20 dias.

Outro lado 

A reportagem não localizou os responsáveis pela defesa do agente prisional GIlson. Questionada, a Secretaria da Administração Penitenciária não explicou o que era o volume suspeito na cintura do jovem e se foi insaturado procedimento interno para apurar as circunstâncias da morte. Não foi esclarecido também se Gilson segue atuando na unidade.

Por meio de nota, a SAP descreveu o que teria ocorrido com Matheus de forma semelhante ao narrado por Gilson e informou que “a direção da unidade está em contato com os familiares do reeducando que veio a óbito”.  A mãe diz que não foi procurada pela Secretaria.

Veja a íntegra da nota: 

A Secretaria da Administração Penitenciária informa que dia em 1/04, durante a entrega do jantar, um sentenciado de 19 anos da ala de semiaberto da Penitenciária I de Guarulhos aproveitou-se do momento da abertura da porta para tentar se evadir da unidade, escalando o teto da enfermaria. 

Um dos agentes que estava na parte externa da unidade encaminhou-se ao local da ocorrência, onde viu o reeducando aos gritos ameaçando os demais servidores. Acreditando que o rebelado tinha uma arma de fogo em face do volume que aparentava ter na cintura, o agente efetuou disparo, atingindo-o.

O sentenciado foi socorrido e encaminhado ao Hospital Municipal de Urgências de Guarulhos, onde foram realizadas tentativas de reanimação, porém sem êxito. À época, a ocorrência foi registrada no 4º Distrito Policial de Guarulhos, para investigação. A direção da unidade está em contato com os familiares do reeducando que veio a óbito.

Correções

  • A primeira versão da reportagem informava que Matheus saiu da prisão no dia 14 de maio, Dia das Mães. Mas a saída temporária foi em 14 de março com retorno em 20 do mesmo mês. A mãe do jovem relata que a saída foi alusiva a data citada.
  • Diferente do publicado na versão inicial, a mãe de Matheus não prestou depoimento sobre o caso. Ela corrigiu a informação após repassar inicialmente essa versão. Suellen foi ouvida pela Defensoria Pública.

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