Mães de Maio, Defensoria e Conectas denunciam desaparecimentos de vítimas dos Crimes de Maio na OEA

    Entidades cobram responsabilização do Estado por desaparecimentos durante massacre de 2006 em petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos

    É a terceira vez que a sociedade civil e a Defensoria recorrem à OEA para solucionar os crimes de maio | Foto: Rafael Bonifácio

    A responsabilização do Estado brasileiro pelos crimes ocorridos no estado de São Paulo em maio de 2006, incluindo os desaparecimentos de ao menos quatro pessoas, é alvo de petição do Movimento Independente Mães de Maio, do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos (NCDH) da Defensoria Pública de SP e da Conectas Direitos Humanos junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), formalizada nesta quarta-feira (12/5).

    Os Crimes de Maio, que completam 15 anos em 2021, deixaram 564 mortos, na maioria jovens e negros, além de pelo menos quatro pessoas que estão desaparecidas desde então. De acordo com as entidades, após quase duas décadas, as autoridades públicas não esclareceram as execuções praticadas por grupos de extermínio nas periferias de São Paulo entre os dias 12 e 21 de maio de 2006.

    Conviver com a ausência de um familiar sem saber se ele está vivo faz parte do cotidiano da assistente social Francilene Gomes Fernandes, 41 anos. Seu irmão Paulo Alexandre Gomes, então com 23 anos foi vítima de um desaparecimento forçado na noite de 16 de maio de 2006, depois que policiais da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) o levaram com vida de Itaquera, bairro da zona leste de SP. “Perder meu irmão desta forma cruel, violenta, sem termos a chance de nos despedir, nos dilacerou”, diz Francilene.

    “Não há um dia das nossas vidas que não pensemos nele. Sentimos muito a falta dele”, conta a doutoranda, que estuda a importância da articulação entre mídias alternativas e os movimentos sociais no enfrentamento à violência policial na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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    Os traumas da perda de entes queridos já faziam parte da vida de Francilene. “Meus pais já perderam outra filha, Juliana, de 17 anos. Para eles, perder dois filhos é algo muito muito pesado. Como é possível, alegarem a prescrição de um crime permanente de desaparecimento forçado? Um crime imprescritível. Essa é a Justiça do nosso país”, critica. 

    Com várias negativas da Justiça, agora as entidades pedem que a CIDH recomende ao Brasil que investigue e responsabilize os agentes envolvidos nas violações de direitos humanos cometidas em episódios como o de Francilene e com isso que reconheça a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela violação da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas. 

    De acordo com a Defensora Pública Letícia Avelar, coordenadora auxiliar do NCDH, os desaparecimentos forçados verificados no período acabaram ficando invisibilizados e sem qualquer resposta estatal mesmo depois de transcorridos 15 anos. “Existe um descaso da Justiça paulista e da Justiça em geral para lidar com esse tipo de violações aos direitos humanos, que atingem majoritariamente as pessoas pobres, negras e periféricas”. 

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    Segundo ela, esse tipo de crime ainda é frequente no Brasil. “Isso faz com que permaneça esse estado de coisas inconstitucionais, que os crimes permaneçam impunes, as famílias permaneçam sem respostas. No caso do desaparecimento forçado por exemplo, ainda é algo muito comum, recentemente casos de desaparecimento tiveram os meninos de Belfort Roxo (RJ), por exemplo, que estão desaparecidos e as famílias se queixam de não terem acesso às investigações, de não conseguirem sequer lavrar um boletim de ocorrência na delegacia”, critica.

    Segundo a defensoria, o documento endereçado à OEA destaca a importância de que o Estado ofereça atendimento psicológico aos familiares das vítimas. “E, entre outras medidas, realize cursos de capacitação para juízes e promotores sobre desaparecimento forçado. Caso o governo brasileiro não atenda às recomendações da Comissão, as organizações pedem que o caso seja encaminhado à Corte Interamericana de Direitos Humanos”.

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    Gabriel Sampaio, coordenador do programa de Violência Institucional da Conectas, ressalta que é preciso cobrar uma resposta sobre os Crimes de Maio. “Nós temos informações suficientes da existência de situações de desaparecimentos forçados. Com base em um amplo arcabouço probatório levaremos adiante a responsabilidade do Estado para além dos homicídios, para que a OEA tome providências sobre a falta de esclarecimentos, de atendimento de vítimas de familiares de situações de desaparecimentos em maio de 2006”.

    Sampaio explica que as denúncias encaminhadas para a OEA devem ser admitidas e depois julgadas. O julgamento, no entanto, não tem poder de decisão nas esferas jurídicas nacionais, mas deve chamar a atenção para a  responsabilidade do Estado. “Os nossos pedidos na OEA visam o reconhecimento da responsabilidade do Estado e juntamente identificar e recomendar ao nosso país que tome medidas para reparação, como a indenização das vítimas e familiares”.

    Crimes sem solução

    Esta é a terceira vez que a sociedade civil e a Defensoria recorrem à OEA sobre os Crimes de Maio. Uma primeira denúncia foi encaminhada à CIDH em 2009. Nela a Conectas e os familiares das vítimas denunciaram o caso alegando violação do Estado brasileiro à Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo país em 1992. 

    Em 2015, houve uma segunda ação, quando a Defensoria Pública de São Paulo acionou a Comissão solicitando o reconhecimento das violações cometidas pelo Estado brasileiro contra as vítimas identificadas e a reparação integral das suas consequências dos crimes. Essa ação aguarda a admissibilidade.

    Já as investigações nacionais sobre as mais de 500 mortes em 2006 nunca foram concluídas. Com as dificuldades encontradas em investigar e responsabilizar o Estado, em 2009 a Conectas pediu à PGR (Procuradoria-Geral da República) que o caso da chacina do Parque Bristol, um dos mais emblemáticos Crimes de Maio, fosse transferido para a esfera federal, para que as investigações fossem reabertas e realizadas por peritos independentes do Ministério Público Federal e pela Polícia Federal. O pedido segue sem julgamento. Apenas em maio de 2016, dez anos após os assassinatos, Rodrigo Janot, o então Procurador-Geral da República, acatou a solicitação e apresentou ao Superior Tribunal de Justiça o pedido de federalização.

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    O representante da Conectas segue defendendo a medida. “Tramita no STJ, lamentavelmente com um ritmo que nos desaponta bastante. Nós encaminhamos um novo pedido de audiência ao tribunal para que possamos insistir nos nossos argumentos de que haja esse desfecho do deslocamento de competência. Continuamos a insistir nessa medida, que é a mais adequada diante do atual cenário de falta de investigação e de responsabilização do Estado diante desses crimes”, diz Sampaio.

    Há ainda uma investigação em andamento no Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de Santos (SP). Fora isso, a Defensoria Pública ingressou com oito ações de indenização por danos morais e materiais contra o estado de São Paulo, em favor dos familiares das vítimas, das quais três tiveram resultados favoráveis. 

    Também com objetivo de fazer com que os crimes de maio sejam reconhecidos como grave violação de direitos humanos, e que seja feito pagamento de indenizações por danos morais individuais e coletivos, em 2018 a Defensoria Pública e o Ministério Público ajuizaram uma ação civil pública (ACP) contra o estado de São Paulo. 

    Ajude a Ponte!

    Em 2019, o desembargador Marcelo Theodósio, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) alegou que as denúncias prescreveram e, por causa disso, a Justiça se recusou condenar o estado a pagar R$ 153 milhões em indenizações. A defensora Letícia Avelar contesta a decisão: “A gente defende que não, que são crimes de lesa à humanidade, são imprescritíveis segundo inclusive o sistema internacional de direitos humanos”.

    Recursos levados ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não foram analisados. A partir desta quarta-feira (12), as Mães de Maio, em parceria com outras instituições defensoras dos direitos humanos, promovem uma série de encontros. Os debates terão transmissão pela internet, no entanto, alguns deles precisam de inscrição prévia. Acesse aqui e saiba mais detalhes.

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