Mães de Maio do Cerrado: ampara, instrui e fortalece familiares vítimas da violência do Estado em Goiás

    (*) Renan Omura

    Uma das lideranças do movimento conta que inspiração veio das Mães de Maio, de SP, e das Redes de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, do RJ: ‘eu entendi que a luta tem que partir de nós’, afirma Eronilde da Silva Nascimento

    Eronilde da Silva, fundadora das Mães de Maio do Cerrado, discursa na Câmara dos Deputados, em Brasília | Foto: Renan Omura/Ponte Jornalismo

    Há pouco mais de dois meses surgia, em Goiânia, Goiás, o coletivo Mães de Maio do Cerrado: do luto à luta. Fundado por Eronilde da Silva Nascimento, de 41 anos, o grupo é composto por familiares de vítimas da violência do Estado e luta por ações efetivas de justiça. A união ganhou forças após as mães de dez jovens mortos no incêndio que ocorreu no Centro de Integração Provisória (CIP) de Goiânia, no dia 25 de maio de 2018, se juntarem ao movimento. Além de promover encontros com autoridades locais para exigir a reparação de mães, o coletivo tem atuado fortemente no amparo de vítimas da violência do Estado. O grupo tem cerca de 45 integrantes e atualmente compõe a Rede de Mães e Familiares Vítimas do Terrorismo do Estado.

    O movimento passou a se chamar Mães de Maio do Cerrado: do luto à luta recentemente, mas a busca por direitos fundamentais iniciou há mais de 15 anos. A fundadora, Eronilde Nascimento, participou em 2004 da ocupação do Parque Oeste Industrial, bairro do município de Goiânia. “Estávamos com o aluguel atrasado, então eu, meu marido e meu filho tivemos que ir morar nessa ocupação. Não fazíamos parte de movimentos de lutas por moradia, foi necessidade mesmo”, conta Eronilde. O local ficou conhecido posteriormente como ocupação Sonho Real. A área estava abandonada há mais de 30 anos e, devido à crise habitacional e ausência de políticas de moradias no local, o bairro atingiu três mil moradores.

    Em janeiro de 2015, a Justiça autorizou o processo de reintegração de posse do território. Conhecido como Operação Triunfo, a ação violenta da Polícia Militar que tirou em menos de uma hora os três mil moradores, deixou quatorze pessoas feridas, uma pessoa tetraplégica e duas vítimas fatais. Um dos moradores mortos foi Pedro Nascimento Silva, o companheiro de Eronilde. “Não sabíamos que eles estavam agindo dessa forma violenta. Até por que tinha várias crianças e idosos dentro das casas. Foi uma covardia. Eles invadiram a minha casa, deram um tiro no meu companheiro pelas costas e depois terminaram de executar ele. Me bateram também”, relata.

    Para abrigar os moradores que foram despejados da ocupação, o governo estadual construiu o parque residencial Real Conquista, onde Eronilde habita atualmente. Após o assassinato do marido, ela viveu um momento de luto, mas passou a se fortalecer com outras famílias que também sofreram com a violência do Estado. As vítimas participavam de audiências públicas na Assembleia Legislativa, apoiado pela Comissão de Direitos Humanos de Goiás.

    Eles decidiram fundar o Comitê Goiano Pelo Fim da Violência Policial em abril de 2015. A organização tinha como objetivo apoiar e instruir as vítimas do Estado. Após sofrer algumas ameaças de grupos de extermínio, os participantes da organização deixaram de atuar e o coletivo se desmantelou. No entanto, Eronilde continuou com as ações, pois era procurada por pessoas que eram violadas pelo Estado.  “Eu trabalhava muito com a autoestima das mulheres, pois elas se sentiam culpadas pelos filhos terem sido aliciados pelo crime. Aí eu comecei a fazer rodas de conversas e reuniões para instrui-las”, conta.

    Durante uma reunião realizada juntamente com Debora da Silva, do movimento independente Mães de Maio, de São Paulo, e Patrícia Oliveira, da Redes de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, do Rio de Janeiro, Eronilde passou a perceber que era necessário criar um coletivo. “Eu entendi que a luta tem que partir de nós. E naquele comitê dependíamos muito do outro. Ai então passei a pensar a respeito. E depois de voltar do 3º Encontro Internacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo de Estado, que tinha acontecido em Salvador em 2018, eu tive a certeza e decidi junto com a Luciana, nomear o grupo de Mães de Maio do Cerrado: do luto à luta”, conclui.

    Luciana Pereira Lopes, 34 anos, mãe de Lucas Raniel Lopes, 16 anos, morto no incêndio que ocorreu no CIP (Centro de Internação Provisória) instalado dentro do 7° Batalhão da Polícia Militar de Goiás, em 2018, foi uma das fundadoras do coletivo Mães de Maio de Cerrado junto com Eronilde. Luciana conta que o grupo, além de instruir as mães, as ajuda a enfrentar o preconceito. “As pessoas apontam e julgam muito. A mãe de um menino que está detido é vista pela sociedade como um objeto. Eu tenho meus direitos e hoje sei quando ele é violado”, explica.

    Luciana, mãe de Lucas Raniel, uma das vítimas de incêndio em área para internação dentro de um batalhão da PM goiana | Foto: Renan Omura/Ponte Jornalismo

    Após perder o filho, Luciana buscou assistência na CAPS (Centro de Assistência Psicossocial) mais de 15 vezes, porém não conseguiu ser atendida. Buscou então fazer consultas particulares, mas o alto valor a impossibilitou de continuar. “Desde que aconteceu eu sempre me vi sozinha. Não tive o apoio de ninguém. Não posso tirar meu esposo do trabalho e nem meus filhos da escola. O Lucas morreu, mas a vida de todo mundo continua. Por isso quando ficamos sabendo que tem alguma mãe em crise, nós vamos até ela. Choramos juntas e passamos por isso juntas. E nesse grupo, uma ajuda a outra. As Mães de Maio do Cerrado foi um meio de nos fortalecer, nos ajudar e nos esclarecer. Essa reunião tem feito muito bem pra mim”, conta Luciana.

    Além de Lucas Raniel, outros nove jovens morreram no incêndio do dia 25 de maio de 2018. Daniel Paulo de Souza, 15 anos; Wallace Feliciano Martins, 18 anos; Lucas Oliveira de Araújo, 16 anos; Elias Santos Bonfim, 17 anos; Jhony Barbosa Cardoso, 17 anos; Gabriel Gonçalves Sena da Silva, 16 anos; Douglas Matheus Pantoja, 17 anos; Eliseu Araújo, 17 anos e Daniel Freitas, 18 anos, foram as outras vítimas.

    De acordo com as versões oficiais, por volta das 11h30 os jovens atearam fogo em um colchão, próximo ao alojamento 1, na ala A para se rebelarem contra uma possível transferência de dois presos. Após investigações da Polícia Civil, 13 servidores públicos estaduais foram afastados das funções e indiciados por homicídio culposo. A corporação condenou os servidores por negligenciar ajuda em combater as chamas. No entanto, o caso foi arquivado.

    Marilene Martins de Araújo, de 37 anos, mãe de Eliseu Araújo, relata a última vez que viu o filho com vida. “Eu chorei muito, pois tive que fazer uma revista íntima e isso é muito humilhante. Aí ele sorriu pra mim e disse ‘mãe você nunca mais vai precisar passar por isso’. Foi uma das últimas coisas que ele falou pra mim. Na hora de se despedir, ele me abraçou, mas uma das servidoras me empurrou com bastante força. Eu pedi para que ela deixasse eu dar um beijo no meu filho e ela me mandou calar a boca. Então eu saí pela porta e nossos olhares se arrastaram. Essa foi a última vez que eu vi ele”, relembra.

    Marilene encontrou as Mães de Maio do Cerrado em uma manifestação e logo foi convidada por Luciana a fazer parte do coletivo. “Eu tenho muita dificuldade para conversar a respeito do ocorrido. Até mesmo no grupo, mas com o tempo elas têm me ajudado a superar isso. Elas também mostraram que muita coisa que acontecia lá dentro era errada. Uma vez o Eliseu estava furado, havia um corte na barriga dele. Ele não quis dizer, mas era por consequência de uma briga interna. Ninguém fez um curativo nele”, conta.

    Cleonice Lourenço de Freitas, 41 anos, mãe de Daniel Freitas, 18 anos, outra vítimas do incêndio, conheceu o coletivo por meio de Luciana e faz parte do grupo desde março deste ano. “Naquela sexta-feira que aconteceu o incêndio, eu saí de Anápolis 10h30, que é onde eu moro, e fui para Goiânia ir visitar meu filho. Mas antes parei em uma lanchonete para comprar um lanche e levar para ele. Foi quando o rapaz que me atendeu me falou sobre o incêndio. Meus familiares todos souberam pela televisão, eu soube dessa maneira”, conta a mãe de Daniel.

    Cleonice comprava um lanche para levar ao filho quando soube do incêndio que o vitimou | Foto: Renan Omura/Ponte Jornalismo

    Cleonice relata que o coletivo deu oportunidade para ela expor o que sentia e ajudou a enfrentar a depressão. “Eu sempre tive depressão. Mas depois que meu filho faleceu, eu passei a tomar remédios. Eu tenho vários pesadelos com o Daniel gritando e as Mãe de Maio do Cerrado me ajudaram a ter coragem parar enfrentar tudo isso. Conhecer outros casos, nos fortalece, pois demonstra que não estamos sozinhas. Compartilhar esse sentimento alivia muito e as mães são muito carinhosas também. O grupo também me dá a oportunidade para clamar por justiça, pois o caso foi arquivado e isso não pode continuar assim”, ressalta.

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