Manifestantes presos por ocupar secretaria em GO terão de pagar R$ 19 mil à Justiça

    Estudantes e professores, denominados “18 de Goiás”, viraram réus por integrarem protestos contra a implantação de Organizações Sociais nas escolas

    Estudantes e professores foram presos após ocuparem a Secretaria de Educação, Esporte e Cultura de Goiás | Foto: Sebastião Nogueira / O Popular

    Dezoito estudantes e professores presos por protestarem contra a implantação das Organizações Sociais nas escolas de Goiás terão de pagar R$ 19.207 à Justiça. O anúncio foi feito em audiência pública no dia 13 de setembro pelo juiz da 11a. Vara Criminal João Divino Moreira Silverio Sousa. O grupo foi indiciado por dano qualificado (artigo 163, inciso III, do Código Penal) e corrupção de menores (artigo 244-B do Estatuto da Criança e do Adolescente), quando o movimento Secundaristas em Luta ocupou a Secretaria de Estado de Educação, Esporte e Cultura (Seduce), em fevereiro de 2016.

    Durante a primeira audiência do processo, momento em que seriam ouvidas as testemunhas de acusação (dois policiais militares, um servidor público, um vigilante terceirizado e três menores de idade), o Ministério Público propôs suspender a ação penal, que retira a possibilidade de uma condenação, em troca do pagamento de multa e indenização. Os 18 vão pagar um salário mínimo cada um, mais o equivalente a R$133,00 para cada dano supostamente provocado. A multa deverá ser quitada em um período de dois anos, quando os acusados terão de obedecer medidas cautelares – como se apresentar de 60 em 60 dias em juízo e não cometer crimes. As restrições acabam em julho de 2019.

    Embora não exista mais ação penal contra os “18 de Goiás”, o resultado soou como uma condenação à parte. Na ocupação da Secretaria, a polícia prendeu 31 pessoas (sendo 13 menores) “em flagrante delito”, alegando que o prédio público havia sido depredado. O laudo pericial de danos emitido pela Polícia Técnico-Científica apresentou duas portas arrombadas, dois extintores de incêndio abertos, pedaços de pedra e madeira no corredor, mesas, cadeiras, canetas e papéis fora de lugar, documentos espalhados pelo chão, portas de alçapão abertas e um retrato do governador Marconi Perillo (PSDB) rabiscado. Apesar de detalhar o que foi violado no prédio público, o laudo não conseguiu identificar os autores e reconheceu que “várias pessoas adentraram ao prédio”, entre policiais militares, servidores da Secretaria e repórteres.

    No inquérito policial emitido pela Delegacia Estadual de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (DRACO), o argumento principal para indiciar o grupo é o fato de este ter estado na Secretaria realizando o ato político. Consta no documento, assinado pelo delegado Breynner Vasconcelos Cursino: “Muito embora não tenha sido identificado quem, por suas próprias mãos, praticou os danos enumerados e valorados pelos peritos do Instituto de Criminalística do Estado de Goiás, fato patente é que todos os autuados, de forma livre e consciente e, ainda, entendendo o caráter ilícito de sua ação (invadindo prédio público em horário que se estava encerrando o atendimento público, pulando o muro, gritando palavras de ordem etc.) contribuíram para o resultado previsto no tipo penal, qual seja, deterioram coisa alheia pertencente ao patrimônio do Estado de Goiás e mais, o fizeram na companhia de vários adolescentes, o que torna, como já exposto, suficiente para a configuração da autoria do crime previsto no ECA”, sustentou.

    Um ônibus foi usado para levar os detidos até os DPs | Sebastião Nogueira / O Popular

    Com base nesse inquérito, em novembro de 2016, o promotor de justiça Clínio Xavier Cordeiro ofereceu denúncia contra os 18 maiores, pedindo sua condenação. Em março de 2017, o juiz Silvério Sousa acatou a denúncia, indeferindo o pedido de absolvição por parte dos advogados de defesa e encaminhando o caso a julgamento. Em seu parecer, o magistrado deslegitima a luta contra as Organizações Sociais a partir da “materialidade do delito”, algo, para ele, “incompatível com a conduta de se exercer o direito à manifestação”.

    Solidariedade

    Cerca de 100 pessoas acompanharam a audiência na manhã de 13 de setembro, em Goiânia. Antes da sessão ter início, elas organizaram uma manifestação em apoio aos 18, se posicionaram em frente ao Fórum Criminal e, ao lado de um carro de som, portando cartazes e faixas, pronunciaram palavras de ordem. “Presos políticos, liberdade já, lutar não é crime, vocês vão nos pagar”. Policiais militares acompanharam a movimentação enquanto, dentro do Fórum, o juiz e o promotor negociavam o acordo com os acusados.

    Os apoiadores, que consideram o processo uma tentativa de criminalização dos movimentos sociais em Goiás, começaram a se mobilizar dias antes. Entre outras atividades, fizeram uma galinhada para arrecadar fundos e garantir o pagamento de advogados e outros custos dos réus. “Não estive presente no dia da ocupação da Seduce, mas considero importante estar junto com o movimento e ser solidária aos 18. Na verdade, esta é uma luta pela educação. Ninguém fica para trás”, disse a estudante C., que preferiu não se identificar.

    O caso

    A história dos “18 de Goiás”, que teve um aparente fim neste mês de setembro, aconteceu no dia 15 de fevereiro de 2016. Era início da noite em Goiânia e o cenário parecia de guerra: dois helicópteros, tropa de choque e até o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar cercaram e isolaram o prédio da Seduce. Integrantes do movimento Secundaristas em Luta e apoiadores haviam acabado de entrar na Secretaria, com o objetivo de pressionar os gestores públicos para uma negociação que pudesse ouvir a reivindicação dos estudantes.

    Naquele mesmo dia, durante a manhã, protegidos por equipes da PM, servidores da Seduce haviam participado da abertura dos envelopes contendo propostas das Organizações Sociais para administrar os colégios estaduais. Desde o final de 2015, dezenas de escolas vinham sendo ocupadas como forma de protesto ao que parecia ser a grande aposta do governo estadual para a Educação.

    Acuados dentro do prédio, ao perceberem que estavam cercados pela polícia, os estudantes fizeram um chamado público por advogados que pudessem comparecer ao local. Representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) estiveram presentes, mas, no entanto, não foram autorizados a adentrar o prédio da Seduce para uma possível mediação do conflito instaurado.

    Agravou a situação o fato de que uma primeira ocupação do estacionamento do prédio, liderada por sindicatos e partidos políticos, acabara na tarde daquele mesmo dia 15. Segundo manifestantes que acompanharam a movimentação desde o princípio, os integrantes da primeira ocupação teriam se retirado do ambiente com um acordo de não haver mais nenhuma nova atividade daquela natureza na área. Isso, segundo os militantes presos, acabou se tornando um subterfúgio para o cerco da PM. “Não sabíamos desse acordo quando fizemos a segunda ocupação e isso foi usado contra nós”, narrou M., uma das indiciadas.

    Enquanto as tentativas de negociação se davam e boa parte do grupo já estava detida no interior da Seduce, um professor apoiador do movimento estudantil diz que foi convidado pelos policiais para adentrar o prédio e acompanhar a saída pacífica dos manifestantes do local. Junto com dois estudantes, esse professor acatou o pedido dos policiais e logo em seguida recebeu voz de prisão. Os três entraram nos portões da Secretaria pacificamente com os policiais e saíram de lá já algemados.

    Manifestação em fórum de Goiás pedia a absolvição dos acusados | Foto: Bruna Chamelet

    Prisão

    Já rendidos do lado de fora da Secretaria e sentados no chão, 31 manifestantes, entre eles 13 adolescentes, foram algemados por policiais da tropa de choque e encaminhados para um ônibus. Antes, a PM permitiu a entrada de cinegrafistas e fotógrafos para que registrassem imagens dos presos enfileirados. Para encaminhar as pessoas à detenção, a PM usou um ônibus coletivo que circulava nas imediações da Seduce, cujo itinerário foi interrompido.

    No cárcere, foram duas noites: uma dentro do ônibus, em frente ao prédio da DRACO, onde todos foram ouvidos em depoimento durante a madrugada; e uma segunda nas dependências da Delegacia Estadual de Investigações Criminais (DEIC), onde ficaram os 15 detidos do sexo masculino. As mulheres foram encaminhadas ao 14° Distrito Policial, localizado na região noroeste da capital goiana. “Um ônibus é um meio de transporte, é o que contribui com o nosso direito de ir e vir na cidade. Quando se torna o seu cativeiro, você perde a referência”, comentou E., uma das presas.

    Conforme o relato dos homens, o local estava superlotado e os manifestantes presos foram colocados no pátio utilizado para banho de sol. Ao invés de teto, haviam grades na cobertura dessa área que era menor que a metade de um campo de vôlei. Os detidos relataram condições precárias na prisão. Eles urinavam em um canto do pátio onde havia um cano, o chuveiro do banheiro ficava em um cubículo sobre um buraco usado como vaso sanitário e durante o sono dividiam o chão com baratas e lacraias.

    Uma lembrança da prisão foi especificamente traumatizante para alguns: a convivência com o engenheiro agrônomo Antônio David dos Santos Filho, preso suspeito de matar uma mulher após um ritual xamânico com uso de ayahuasca. Menos de um mês depois ele seria torturado e morto por outros detentos, após ser transferido para a Central de Triagem do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia.

    Depois de duas noites sem liberdade, os 18 foram soltos em audiência de custódia, no mesmo fórum onde voltariam mais de um ano depois denunciados pela Justiça por danos ao patrimônio público e corrupção de menores. Ao ser solto, um dos manifestantes chegou a reclamar da situação do cárcere à imprens, ao que um delegado, na época, respondeu em tom irônico que as reclamações eram “conversa fiada” e que a prisão não é “banheiro de hidromassagem”.

    Entre as mulheres, os relatos são de agressão e terror psicológico. “Uma moça levou spray de pimenta nos olhos, outras pessoas foram empurradas, apertaram nossas algemas o máximo que puderam e, quando estávamos a caminho do 14° DP, ouvíamos (de agentes penitenciários) que iríamos sofrer na cadeia”, relatou uma das moças. Ao chegarem na carceragem, do contrário, receberam das detentas a mesma solidariedade dos manifestantes que, do lado de fora, clamavam pela liberdade dos amigos.

     

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