Massacre do Fallet: ao pedir arquivamento, MP chamou remoção de cadáveres de ‘socorro para as vítimas’

    Ministério Público considerou que policiais agiram dentro da lei ao matar 15 jovens no Morro da Fallet-Fogueteiro, no RJ, em 2019. Defensores sugerem levar o caso para cortes internacionais

    Cena reconstituição do crime, feita pela polícia em 29/4/19 | Foto: Yasmin Restum/Ponte Jornalismo

    O promotor Alexandre Murilo Graça, do Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro, solicitou ao Tribunal de Justiça fluminense o arquivamento de um inquérito criminal que investiga as mortes de 15 jovens por policiais militares durante operação no Morro da Fallet-Fogueteiro, no centro da cidade do Rio de Janeiro, em 8 de fevereiro de 2019.

    No pedido, feito em 5 de abril de 2020, o promotor afirma que “os agentes do Estado utilizaram meio necessário e proporcional, sendo certo que era o único que dispunham para se defenderem da injusta agressão iniciada pelos criminosos”.

    Alexandre ainda aponta que “os policiais militares buscaram socorro para as vítimas, levando-as para o atendimento hospitalar”, embora fotos, depoimentos e laudos indiquem que os jovens morreram no local. O que o promotor chama de “socorro” seria a ação dos policiais de empilhar os cadáveres na caçamba de uma viatura e levá-los para o Hospital Municipal Souza Aguiar.

    Moradores da comunidade dizem que as vítimas foram executadas e denunciam ameaças e agressões verbais promovidas por policiais.

    Em entrevista ao Fantástico, exibida no domingo (18/4), o promotor considerou possível que os PMs tivessem removido cadáveres, e não socorrido vítimas vivas, ao contrário do que escreveu no pedido de arquivamento, mas não viu problema na prática. “É comum os policiais a título de socorrerem a vítima levarem a pessoa cadáver pro hospital, talvez até porque eles não queiram responder a processos por causa de confrontos que tenham ocorrido. No caso ali a alteração do local prejudicou a prova? Prejudicou. Mas ela não importa para a conclusão”, declarou.

    Segundo documento (em espanhol) da ONG Human Rights Watch, publicado com base em analise de quatro peritos, sendo três do Conselho Internacional de Reabilitação para Vítimas de Tortura (IRCT, na sigla em inglês, com sedes na Bélgica e na Dinamarca), e um da Fundação de Antropologia Forense da Guatemala (FAFG, na sigla em espanhol), há indícios de que as vítimas foram levadas já mortas ao hospital.

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    Conforme apontou a Ponte em reportagem do ano passado, uma vez que os PMs dizem que usaram fuzis na operação, o entendimento dos peritos estrangeiros é de que os nove homens, dentre eles um adolescente, teriam morrido instantaneamente por conta da intensidade do aparato, e que não havia possibilidade de terem sido levados ainda com vida ao hospital, ao contrário do que afirma o promotor.

    De acordo com a ONG, “em um jovem de 18 anos, o laudo [da Polícia Civil] primeiro diz não haver fraturas no crânio nem sangramento interno nos músculos temporais; mas depois afirma que a causa da morte foi tiros que atingiram o crânio, a pelve – não descrita na autópsia – e as costas”.

    O caso resultou na abertura de um inquérito pela Polícia Civil concluído em 2019. No mesmo ano, a PM concluiu, por meio de Inquérito Policial Militar, que nenhum dos policiais envolvidos cometeu qualquer crime ou transgressão. Outro inquérito militar no Ministério Público apura a conduta dos policiais e ainda não foi finalizado.

    Quando soube que as investigações podem ser arquivadas, uma das mães que teve seu filho e seu sobrinho mortos na ação da polícia foi tomada pela tristeza. A mulher, que não pode se identificar por temer represálias dos policiais, diz achar um “absurdo o pedido do promotor”. “Dói muito, tem dois anos que estão se passando, só eu sei que eu estou sentindo. Toda operação que tem, eles vêm e dizem que vão matar mais”, afirma.

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    Na entrevista, ela relembrou incoerências na investigação que apontou 107 tiros disparados pela polícia. “Que troca de tiros foi essa? Sentaram em cima dos corpos dos meninos na caçamba da viatura, não tinha ambulância”, afirma. 

    PMs em viatura apoiam suas pernas no corpo de pessoas mortas no Morro do Fallet | Foto: Arquivo pessoal

    Após a tragédia, a moradora da favela do Fallet-Fogueteiro conta que foi incluída no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas do Estado do Rio de Janeiro, em 2019, mas nunca recebeu nenhuma ajuda do Estado e hoje, sem emprego e com três filhos menores de idade, vem passando necessidades. “Me mandaram ir para o Provita, me deixaram em um hotel, meus filhos ficaram sem estudar um tempão, falaram que iam arrumar casa, colégio, mas nunca arrumaram.”

    Depois, seus filhos conseguiram proteção por meio do Programa de Proteção à Criança e Adolescente Ameaçados de Morte, com isso, ela ficou quatro meses em Araruama, cidade do interior do RJ. “As crianças sem estudar, sem nada”, diz.

    Ainda em 2019, o mesmo programa a mandou para Maceió (AL) sem avisá-la. “Eu nem sabia que estava indo para lá, eles me avisaram dentro do avião, se eu soubesse não ia. Cheguei em Maceió e me colocaram em uma área de risco, uma facção ameaçou meu filho com uma faca. Me deixaram passar necessidade, não deixavam eu falar com ninguém, nem com a advogada.” 

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    Mais de dois anos depois, as dificuldades só aumentaram. A mulher, que trabalhava como manicure e conseguia dar um certo conforto aos filhos antes da execução do mais velho, agora se vê sem um lugar seguro para viver. “Eu fico em um canto, fico em outro, me deram o aluguel social de R$ 400, mas não consigo alugar casa com esse valor, não estou trabalhando, consegui um quarto e um banheiro”, lamenta.

    A moradora que não quis se identificar responde convidando o promotor a conhecer a realidade da favela carioca. “Esse promotor tem que ficar um dia na comunidade, para ver a quem ele vai dar razão e olhar o que os moradores passam na mão do Estado. É um absurdo você acordar às 6h da manhã com alguém arrombando a sua porta. Eles alteram a cena do crime, não é possível que a lei não está vendo isso”.

    Defensoria e Human Rights Watch discordam de arquivamento

    O pedido de arquivamento foi visto com crítica pelo Defensor Público do estado, Daniel Lozoya, que acredita que deveriam ser considerados outros elementos probatórios em confronto com a versão dos policiais nas investigações. “Discordamos veementemente do arquivamento porque, na nossa análise, não houve uma investigação diligente, imparcial e aprofundada das mortes”, alega.

    Agora, o arquivamento será decidido por um juiz, que poderá homologar o arquivamento ou rejeitá-lo e mandar o caso para o procurador-geral do Estado do Rio de Janeiro. Caso haja o arquivamento, o defensor defende a federalização das investigações, bem como a denúncia do caso perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

    A federalização é prevista na Constituição em hipótese de grave violação de direitos humanos, e tem que ser feita a pedido do procurador-geral da República ao Superior Tribunal de Justiça. “Com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, deslocando a competência do caso para a Justiça Federal, atraindo assim a investigação para a Polícia Federal e o Ministério Público Federal”, explica Lozoya. 

    A Human Rights Watch também não concordou com a posição do promotor. Para César Muñoz, pesquisador da organização, o caso mostra a fórmula da impunidade. “A polícia mata e destrói evidência, a investigação da Polícia Civil é falha e o MP pede arquivamento após fracassar no controle externo da PM e em garantir investigações adequadas”, disse.

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    Muñoz conta que a HRW enviou os laudos de necropsia a peritos forenses internacionais, que concluíram que “não houve perícia das roupas ou de resíduos de pólvora nas mãos”, explicita o pesquisador. 

    Em publicação feita no Twitter nesta semana, Muñoz avalia que, desta forma, o promotor encarregado do caso “admite que os policiais levaram os cadáveres ao hospital para destruir a evidência no local do crime”. Para ele, “no mínimo [o promotor], deveria denunciá-los por fraude processual”. 

    Segundo ele, a situação ficou pior com o fim do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp). “Em vez de enfrentar o enorme problema dos abusos policiais, o novo Procurador-Geral de Justiça no Rio de Janeiro eliminou o Gaesp, o grupo de promotores especializado no controle externo da polícia. Ele deveria restaurá-lo.”

    Perícia em 3D

    O Ministério Público contou com um investimento próprio nas investigações. A empresa Studio Kwo reconstruiu de forma digital as versões dos policiais. A tecnologia em 3D resultou em um vídeo, que teve uma parte exibida no Fantástico. 

    Perícia em 3D de forma gratuita foi feita a pedido da perita Maria do Carmo Gargaglione, do MP | Foto: Reprodução/TV Globo

    Questionado se teve acesso ao vídeo, o defensor público, Daniel Lozoya disse que não. “Apesar de reiteradamente, termos pedido vista do mesmo. Gostaríamos de entender melhor como se deu essa participação de uma empresa numa perícia criminal”. 

    Para Lozoya, faz sentido que eles tenham se utilizado da versão dos policiais. “A reprodução simulada (analógica) realizada pela perícia oficial só considerou a versão dos policiais na reconstituição das versões, porque todas as vítimas foram mortas e não havia testemunhas do fato, somente os moradores da casa, cujos depoimentos não ajudaram muito”, argumentou. 

    Mesmo assim, ele não concorda com o rumo das investigações. “A questão é que deveriam ser considerados outros elementos probatórios em confronto com a versão dos policiais: especialmente as perícias e as fotos que os próprios policiais tiraram no local. Isso não sei se foi feito. Seria importante não ficar somente com a palavra deles.”

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    Procurada pela Ponte, a empresa Studio Kwo explicou que a ideia partiu da perita Maria do Carmo Gargaglione, da Divisão de Evidências Digitais do Ministério Público fluminense, em 2019, após assistir a uma palestra feita por representante da empresa na casa Firjan, sobre uso de realidade virtual e aumentada na indústria em geral. 

    De acordo com Nelson Porto, um dos sócios da empresa, a perita contou a eles os detalhes do caso e pediu que fosse feita a reconstituição virtual da operação. “Nós já sabíamos a respeito do caso, e foi uma situação bastante difícil decidir realizar esse serviço para o MP, por conta da violência do caso, e também por conta da polêmica envolvendo a atuação da polícia”, diz.

    Questionado do porque realizou o trabalho gratuitamente, o empresário alegou que a empresa acredita que realizar esse tipo de trabalho pode ser uma ferramenta para ajudar a “transformar a realidade trágica da política de segurança pública do Rio de Janeiro”. 

    Para realizar a simulação de maneira isenta, ele conta que os profissionais fizeram questão de ir ao MP e ler todo o processo: “Tendo acesso às imagens do dia, da remoção dos corpos, às informações sobre as falhas periciais, deixando o mais claro possível como os fatos ocorreram no dia, de forma a não basear a simulação apenas no depoimento dos policiais”.

    Para a empresa, uma simulação assim permite chamar atenção para o caso. “E evitar que ele seja esquecido, ou arquivado, como alguns gostariam. Nossa motivação principal para realizar esse trabalho foi fazer nosso dever de cidadão, em busca de uma sociedade menos injusta e com menos violência policial. Dentro da simulação, por exemplo, fica claro como foi realizada a remoção dos corpos, modificando a cena do crime, que impediu a realização de um processo de perícia adequado”, diz.

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    A reportagem pediu acesso a perícia em 3D, mas Nelson explicou que a reconstituição é em Realidade Virtual. “Não é um vídeo, é uma experiência imersiva. A gente não tem a experiência toda capturada em formato vídeo. Pra ver a experiência imersiva o ideal é ser presencialmente, com agendamento para assistir. O conteúdo é público”, diz.

    Outro lado

    Procurada pela Ponte, a assessoria de imprensa do Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro não respondeu como foi feita a solicitação da reconstrução da ocorrência em um vídeo 3D à empresa Studio Kwo. Também não explicou porque foi feita de forma gratuita e nem porque os pedidos de vista da Defensoria Pública foram negados.

    A Polícia Militar afirmou que tanto o inquérito instaurado pela Polícia Civil quanto o Inquérito Policial Militar da Corporação concluíram que as mortes dos criminosos ocorreram em decorrência de confronto armado. Portanto, “não houve execução”.

    A assessoria de imprensa do órgão afirmou ainda que “além das provas técnicas produzidas na apuração dos fatos, vale lembrar que aquela operação foi planejada pelo Comando de Operações Especiais (COE) para intervir na guerra entre facções rivais que vinha levando pânico aos moradores”.

    A corporação apontou que os criminosos que vieram a óbito faziam o que se chama de contenção, ou seja, atiraram contra os policiais do Batalhão de Polícia de Choque “para possibilitar a fuga dos líderes da facção, que estavam na mesma casa invadida pelo bando”.

    A Ponte questionou o Tribunal de Justiça do RJ sobre a assistência prestada às vítimas por meio dos programas de proteção à testemunha, mas nenhuma pergunta foi respondida.

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