MC Soffia: ‘Se as crianças estão brincando, estão aprendendo’

    Empoderamento e representatividade negra são temas latentes da rapper de 14 anos, internacionalmente conhecida desde a sua apresentação na abertura das Olimpíadas do Rio em 2016

    MC Soffia: “Quero ter todos os públicos” | Foto: Victor Compani/Revista AFROCULT

    Com um sorriso doce e euforia típica da idade, Soffia desceu do carro com os olhos fixos na tela do celular. O local era uma escola pública localizada na Zona Leste da capital paulista. Acompanhada da mãe e da avó, a pequena cantora se preparava para o terceiro de uma série de shows organizados pela Prefeitura de São Paulo.

    Com pouco mais de 200 mil seguidores nas redes sociais, a jovem MC é afilhada musical de ninguém menos que Karol Conká. Aos 14 anos, Soffia apresenta uma maturidade e  Engajamento pouco vistos até mesmo em adultos. Internacionalmente conhecida desde a sua apresentação na abertura das Olimpíadas do Rio em 2016, a jovem também ganhou, no ano passado, como artista revelação no prêmio Cláudia, uma das maiores premiações femininas da América Latina. E não foi só isso, ela também entrou na lista anual das 100 mulheres mais inspiradoras do mundo, segundo a rede britânica BBC.

    Nascida na periferia da região de Raposo Tavares, a pequena artista atrai os olhos e os ouvidos de multidões. Suas letras falam sobre distorções sociais para um público pouco óbvio: as crianças. Vinda de uma família militante, desde muito nova a rapper mirim entendeu – e viveu na pele – o preconceito racial. Com o incentivo da mãe e produtora Kamilah Pimentel, ela se apaixonou pela leitura, aprendeu sobre a história de seus antepassados e então começou a questionar a realidade a sua volta. Suas músicas falam sobre a falta de representatividade negra nos desenhos infantis, como ouvimos em Minha Rapunzel tem dread: “Era uma vez uma princesa Rastafari que nasceu no reino de Sabá / Na minha história quem disse que a bruxa é má? / Meninas unidas podem tudo mudar”.

    Em um mundo de valores invertidos e em que as situações de racismo são constantemente minimizadas, a voz de Soffia chega a cortar. A discriminação racial, infelizmente, não tem prazo de validade. Acontece diariamente e com pessoas negras das mais diversas idades. As crianças sofrem e os pais sofrem também. É preciso educar as crianças brancas e ficar atento aos sinais de crianças negras, pois muitas vezes elas não questionam os fatos e apenas se culpam caladas, passando a odiar e negar seus corpos como se fosse errado.

    Por isso o trabalho da MC Soffia se faz tão necessário.

    É preciso conversar com os filhos, sobrinhos, primos e amigos. Empoderar as crianças negras é fundamental.

    A luta se faz em conjunto e é isso que Soffia procura transmitir em cada uma de suas músicas. Confira abaixo como foi o bate-papo da AFROCULT com essa pequena grande mulher.

    Queremos saber da sua relação com as crianças. Como esse público foi escolhido?

    MC Soffia – Como eu comecei muito nova, as crianças me viam cantando e se inspiravam. No lugar delas, eu também adoraria ter uma menina da mesma idade que a minha me dizendo “se aceite, goste do seu cabelo, goste da sua cor, você pode fazer o que você quiser, independente do seu gênero e da sua raça”. Isso é muito importante porque elas estão numa fase de aprendizado, de se reconhecerem como negras. Então acredito que foi uma escolha mútua – nós nos escolhemos.

    Foto: Victor Compani/Revista AFROCULT

    Você anseia focar em um público diferente?

    MC Soffia – Eu estou crescendo e isso me dá vontade de conversar mais com o público pré-adolescente, como eu. Mas eu espero nunca deixar de fazer shows para crianças. São elas que vão, chamam os pais para irem, ficam ansiosas e impressionadas de ver uma menina cantando e ajudando na autoestima delas, e isso é incrível. Na verdade, quero ter todos os públicos, sem essa de um ou de outro! Um dia fazer só show para criança, outro dia para jovem e no outro misturado.

    Qual a influência da sua mãe em sua trajetória profissional?

    MC Soffia – Entrei no Futuro do Hip Hop porque minha mãe conhecia o projeto. Ela que me apresentava mulheres para pesquisar, para que as minhas músicas tivessem mais conteúdo e para que eu pudesse abordar mais assuntos. Ela sempre falava que eu era negra, que eu tinha que me aceitar, gostar do meu cabelo. Além disso, foi a minha mãe que possibilitou que eu fosse cantora. Se ela falasse não, se não me incentivasse, eu não estaria nem cantando agora [risos].

    Foto: Victor Compani/Revista AFROCULT

    Como foi o seu processo de aceitação e reconhecimento enquanto negra?

    MC Soffia – Nunca tive problema para reconhecer que eu era negra, mas não queria ser negra. Então minha família, tanto materna, quanto paterna, sempre falava “você é negra, você tem o cabelo crespo”, enquanto ostentavam seus cabelos blacks – até que eu me aceitei.

    Você sempre cita a boneca Makena nas suas músicas e shows. Qual a relação dela com a sua infância?

    MC Soffia – A Makena é uma criação da minha vó, Lúcia Makena. Eu sempre tive bonecas negras, nunca tive esse problema de “ela é branquinha, não tem como ser minha filha”, como acontece com a maioria das crianças. Eu podia falar “essa é minha prima, essa é minha irmã, essa é minha sobrinha” e isso foi muito importante.

    Como você lida com a dualidade de públicos que atinge?

    MC Soffia – Eu acho que, enquanto cantora, eu tenho que saber que eu vou fazer shows para todos os públicos, todas as classes e todas as raças. Quando você é cantor, você quer atingir as pessoas independente se elas vão gostar ou não. Eu faço shows em escolas públicas e também para pessoas que são de uma classe mais alta. Acho muito importante eu sempre me adequar a qualquer espaço.

    Foto: Victor Compani/Revista AFROCULT

    Para você, qual a ligação entre educação e brincadeira?

    MC Soffia – A brincadeira é uma forma de educação também. Você pode aprender muitas coisas brincando, estudando ou fazendo os dois. Tinham duas crianças brincando na hora do show e tudo bem, porque as crianças às vezes estão jogando e ouvindo a mensagem. Eu também adoro jogar na minha escola.

    Como você concilia a questão de ser uma criança e falar de assuntos tão sérios?

    MC Soffia – Levo tudo isso como uma brincadeira. Ao mesmo tempo em que estou brincando, estou dançando e passando uma mensagem. Se as crianças estão brincando, estão aprendendo. É uma troca com o público. Elas estão me ensinando e eu as ensino também.

    Foto: Victor Compani/Revista AFROCULT

    Qual a sua maior inspiração na carreira?

    MC Soffia – Acho que a Beyoncé, porque ela está quase que no mesmo foco que eu. Mas eu faço muita coisa: canto, danço, pratico esportes… Não tem uma pessoa que faça o tanto de coisa que eu faço, então eu procuro me inspirar em mim mesma. Quanto mais coisas eu aprender e souber fazer, eu vou fazendo.

    Você sentiu um impacto na sua carreira depois que venceu o prêmio Cláudia?

    MC Soffia – Foi muito importante para as pessoas verem uma menina negra e tão jovem participando de uma premiação tão grande. Estampei capas de revistas para adultos e crianças. As pessoas ficaram espantadas, o que ajudou muito.

    Foto: Victor Compani/Revista AFROCULT

    Qual o seu conselho para as crianças?

    MC Soffia – Eu falaria para elas seguirem os seus sonhos. Sempre que alguma pessoa falar “não, não siga, é coisa de menino”, “é coisa de menina”, “você não deve fazer isso”… sabe, essas coisas que as pessoas falam para travar os outros: não ouçam. Você tem que ter a sua opinião, ser resiliente e falar com convicção “quero ser estilista”, “quero ser engenheiro”, “quero ser médica”, “quero ser veterinária”. Se você for deixar de ir atrás dos seus sonhos por conta de uma pessoa, ficará triste e entrará em qualquer coisa que te colocarem. Então é preciso seguir o sonho, porque ainda que não dê certo, pelo menos você tentou. Ah, e é importante se aceitar, em questão do seu corpo, sua cor, seu cabelo, e ajudar as pessoas que não se aceitam, que estão na fase de reconhecimento, de autoafirmação. E escutar minhas músicas. Ah, escutar músicas de outras pessoas também, senão é chato [gargalhadas].

    (*) A reportagem foi originalmente publicada na Revista AFROCULT. Criada como trabalho de conclusão de curso das jornalistas Giovanna Monteiro, Marina Sá, Mayara Oliveira e Thais Morelli na Universidade Anhembi Morumbi, a revista visa ser um instrumento didático para o auxílio do combate ao racismo no país

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas