Militantes denunciam racismo na portaria de evento antirracista em SP

    Encontro organizado pela ONG Conectas tinha como objetivo discutir a violência do Estado, entre elas o racismo estrutural

    Segundo dia de formação foi cancelado e grupo foi para o Sindicato dos Advogados para conversar sobre o ocorrido | Foto: arquivo pessoal

    Um segundo dia de evento que pretendia discutir maneiras para combater a violência do Estado, principalmente o racismo estrutural, terminou antes mesmo de começar. O motivo? Um ato racista. O evento aconteceria na quinta-feira (20/2) em São Paulo, na sede da ONG Conectas, mas foi cancelado por pressão dos participantes.

    O encontro “Elementos forenses para a defesa dos direitos humanos” tinha como objetivo discutir alternativas para combater a violência do Estado, principalmente o racismo estrutural. O encontro era organizado pela ONG, pelo CAAF (Centro de Antropologia e Arqueologia Forense), da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), o Movimento Mães de Maio e a Redes da Maré. Diversos coletivos e movimentos sociais de todo o Brasil participariam.

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    Na chegada dos convidados e convidadas, durante o processo de identificação, Priscila França, 36 anos, integrante da Educafro e do Instituto Equânime, afirmou ter sido vítima de racismo na portaria do edifício Condomínio Barão de Ouro Branco. Outros participantes também relataram tratamento racista na recepção do prédio.

    À Ponte, Priscila relatou que foi convidada pelo movimento Mães de Maio a participar do evento. Como está em preceito, período religioso da umbanda em que uma pessoa precisa se resguardar e não vivenciar situações que envolve contato com muitas pessoas, não poderia comparecer ao encontro, mas foi em respeito ao movimento Mães de Maio, que fez o convite a ela.

    “Estive lá [na Conectas] em novembro, o meu cadastro não deveria estar vencido. A recepcionista me questionou onde eu iria, pediu a minha identificação. Entreguei a ela e ali percebi que já estava rolando algo diferente”, narrou Priscila. “Nesse meio tempo, outras pessoas foram chegando e foram atendidas normalmente. Pegaram o cartão de acesso e começaram a subir. E eu ali esperando”.

    A situação causou constrangimento na ativista, que percebeu que as suas roupas, todas de cor branca, poderiam ser o problema, como explicou à reportagem, já que outras pessoas não estavam sendo barradas. A recepção acionou funcionários da Conectas para liberar a entrada de Priscila no prédio.

    “Foi constrangedor, totalmente humilhante, porque ali é um local que eu frequento, que eu tenho acesso. Foi uma questão de racismo religioso, foi uma questão estruturante, de algo que está enraizado na nossa sociedade. Foi porque eu estava vestida da forma que eu estava”, argumenta. 

    Priscila conta que quis ir embora imediatamente, mas que preferiu subir para contar o ocorrido e não perder a narrativa do ato de racismo que sofreu. “Eu não tenho o poder de liberdade, que é uma questão de democracia, não posso manifestar a minha fé, não posso falar a minha religião, isso me feriu muito”, relembrou. “Pensar que eu estou iniciando na religião me fez pensar nessas mulheres da minha ancestralidade, do quanto elas sofreram”. 

    Buba Aguiar, integrante do coletivo Fala Akari, contou que o clima para a realização do debate acabou depois do ocorrido. “Foi doloroso demais, ela iria embora, mas batemos o pé de que se uma de nós não é bem-vinda, nenhuma é”, explicou.

    Priscila França, que atua junto à EduCafro, foi vítima de racismo religioso em evento que pretendia discutir racismo estrutural | Foto: arquivo pessoal

    Muitas pessoas negras que estavam na reunião sentiram a dor de Priscila e choraram, contaram pessoas que estavam no local. Buba foi uma delas, revelou. “Discutimos como o racismo era estrutural e estruturante, como a nossa base política, econômica e social é fundada no esquema escravocrata”, afirmou. “Por mais que a maior parte da população seja negra, ainda vemos esse tipo de situação acontecer de forma cotidiana porque ainda não houve um reparo”, apontou Buba.

    Priscila contou que o seu choro foi de dor em pensar no quanto seus ancestrais já sofreram para que hoje ela viva a sua religião. “Eu tive apoio ali, irmãos me falaram que não iriam ficar naquele espaço porque eu não ia ficar. Eu tive apoio, acolhimento, em momento nenhum eu fiquei sozinha”, criticou.

    Debora Maria da Silva, fundadora do movimento Mães de Maio, que co-organizou o encontro, revelou que partiu dela a necessidade de sair do local e acompanhar Priscila. “Como uma mãe, eu carrego meus filhos, e falei para irmos embora. Tanto os brancos como os pretos foram embora, fomos para o sindicato dos advogados, lá tivemos um debate e decidimos os encaminhamentos”, explicou.

    A mãe de maio criticou o posicionamento da Conectas que, no seu ponto de vista, deveria ter orientado os funcionários da portaria sobre os corpos que ocupariam aquele local: pessoas negras, favelas e periféricas.

    “A gente vê que aquele espaço não é nosso, é um espaço que leva o nome de um barão escravagista. É um local opressor, racista e fascista. A avenida Paulista não se compara às ruas sem afasto das favelas, é um espaço que patrocina o nosso genocídio, o nosso encarceramento, a nossa tortura”, pontuou Debora. “Temos que descentralizar essas ONGs que direitos humanos porque lá nós somos oprimidos”, apontou.

    Para Edson Teles, 51 anos, coordenador do Centro de Antropologia, é dever das instituições pensarem em todos os detalhes antes de organizar um evento que pretende discutir violências estruturais. “A cidade não tem muros, mas os territórios são marcados”, justificou.

    “Você estar em um evento que pretende discutir as violências estruturais, que fala que o racismo é uma régua para a polícia atuar de forma violenta, que estamos em meio a um genocídio do povo preto e periférico, e aí vai em território como a avenida Paulista, um lugar que a pessoa negra vivencia situações de racismo, faz com que o clima fique desfavorável à atividade”, argumentou.

    Cleiton Ferreira, integrante do Quilombaque, relembrou que chegou e já viu Priscila esperando uma resposta das atendentes e que, logo em seguida, outros participantes do debate chegaram e logo foram liberados. Eles eram brancos. “Ligaram na Conectas, esperou alguém descer e liberar. Fizeram o procedimento de tirar foto mesmo sabendo que era uma companheira que sempre frequentou [o espaço]”, citou. “Ela estava vestida com as roupas de axé, né. Isso acho que incomodou os atendentes”.

    O que diz a Conectas

    Juana Kweitel, diretora-executiva da Conectas, conversou com a Ponte sobre o caso. A situação, para Juana, foi muito grave e, por isso, inviabilizou uma atividade que vinha sido trabalhada longamente. Ela explicou que a ONG protocolou nesta sexta-feira (21/2) uma notificação extrajudicial contra o condomínio.

    “Além de solicitar um posicionamento oficial da administração do edifício, entendemos que é necessário que toda a equipe do prédio participe de formações sobre temas relacionados ao racismo, machismo e LGBTfobia para evitar que episódios como este voltem a ocorrer”, explicou Kweitel.

    Juana salientou que a Conectas vai auxiliar nesses treinamentos, pois o compromisso da ONG é “transformar os lugares que ocupamos e frequentamos para que eles sejam seguros para as pessoas e movimentos com os quais trabalhamos”.

    “Seremos incansáveis neste esforço. É importante descentralizar as atividades para as periferias, mas também é importante que a Paulista seja de todos e de todas, e não só de alguns”, argumentou Kweitel.

    Em nota, a Conectas repudiou o ocorrido e toda forma de racismo. “Como entidade de direitos humanos, é nossa responsabilidade enfrentar o racismo nos diferentes espaços que ocupamos, incluindo nosso condomínio, de forma a promover lugares seguros e acolhedores para todos os corpos”.

    Diante da gravidade do episódio, informou a ONG, que causou enorme sofrimento e indignação em todas as pessoas presentes, que estavam reunidas justamente para tratar de estratégias do combate à violência do Estado, marcada pelo racismo estrutural, a atividade foi suspensa.

    “Atos racistas como o de hoje são frequentes na vida das pessoas negras e devem ser combatidos firmemente, evitando qualquer forma de cumplicidade”, afirmou nota.

    A Conectas também disse que tem compromisso de lutas contra o racismo estrutural e que cobrará providências por parte da administradora do condomínio. “Nossa permanência no local está sujeita a que sejam tomadas medidas concretas para que episódios como o de hoje não se repitam”, informou a ONG.

    A Ponte entrou em contato com a administração do prédio Barão de Ouro Branco, onde fica a sede da Conectas, e aguarda um posicionamento.

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