Militar da Marinha é condenado por assédio sexual contra aluna-sargento

Vítima denunciou que sargento Leonardo Vitorino disse frases de cunho sexual durante carona para ensaio de banda da corporação, em 2019; ele também foi condenado em âmbito administrativo após duas militares relatarem terem sido constrangidas por ele

Passeata de militares da Marinha noo Dia Internacional da Mulher, em 2014 | Foto: Divulgação/Marinha do Brasil

O Tribunal da Justiça Militar da União condenou o segundo sargento e fuzileiro naval da Marinha Leonardo Sales Barreto Vitorino, 34, por assédio sexual contra uma aluna, então com 19 anos, do Curso de Formação de Sargento Músico. O caso aconteceu em 2019 e, após a denúncia da vítima, outras duas militares também comunicaram terem sofrido importunação sexual pelo sargento anos antes.

Leonardo foi sentenciado a um ano de detenção em regime aberto – ou seja, em liberdade – por não ter antecedentes criminais e pela pena ser inferior a quatro anos, com base no artigo 33 do Código Penal Comum e no artigo 38 do Código Penal Militar, que preveem a suspensão da pena privativa de liberdade em crimes com pena inferior a dois anos.

Ele deve comparecer trimestralmente em juízo, além de comprovar que fez o curso gratuito online “Assédio Moral e Sexual no Trabalho”, oferecido pelo site do Senado Federal. A decisão foi proferida em 6 de dezembro e cabe recurso.

“Observa-se que uma mulher militar, ao ser vítima de um crime sexual, é duplamente atingida: como mulher, ao ter sua liberdade e sua dignidade sexuais atacadas, e como militar, eis que impacta diretamente na hierarquia e disciplina, princípios basilares das instituições militares, diminuindo-lhe, portanto, a sua autoridade”, argumentou a juíza federal substituta Mariana Queiroz Aquino, da 1ª Auditoria do Conselho Permanente de Justiça para a Marinha.

O assédio sexual, previsto o artigo 216-A do Código Penal, se configura quando o agente usa da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função, para constranger alguém a fim de obter algum tipo de vantagem ou favorecimento sexual. A pena é de um a dois anos de detenção e pode ser aumentada em um terço quando a vítima é menor de 18 anos.

O depoimento da sargento Ana

Na época, Ana*, que é terceiro sargento, relatou que havia sido convidada para compor a Banda da Marinha e tocar em um concerto no Teatro Municipal, no centro da cidade do Rio de Janeiro, sendo que precisava se deslocar do Centro de Instrução Almirante Sylvio de Camargo (CIASC), localizado na Ilha do Governador, até a Companhia de Bandas do Batalhão Naval na capital fluminense para ensaiar.

Segundo seu relato, a corporação não tinha viatura para levá-la. Na véspera, em 19 de março, fora avisada que Leonardo, que então não conhecia, se dispôs a levá-la. O colega que a avisou da carona disse que o sargento estaria tentando contato com ela por celular.

Mas “em razão da conexão fraca no local onde estava – alojamento –, não estava conseguindo receber as mensagens”. Assim, foi até o CIASC por volta das 21h, para conhecê-la e combinar o trajeto. No dia seguinte, Ana afirma que o percurso até o Batalhão Naval “não teve problemas” e que, pelo fato de seu namorado conhecer Leonardo, “teve uma segurança em ir com ele de carona”.

O ensaio ocorreu normalmente. Na saída, precisava experimentar o uniforme da apresentação, que seria na semana seguinte, e almoçar. Leonardo disse que saberia onde levá-la, mas sem dizer onde. Ana afirmou em depoimento que por estar apenas há dois meses no Rio de Janeiro não conhecia direito a cidade e confiou nele.

Ainda segundo Ana, o sargento a levou até um shopping e “perguntou se ela queria ver os filmes em cartaz e a convidou para ir ao cinema”. Ana aponta que “como ele havia contado sobre ser respeitado na vida militar, e, ainda, por ser seu superior, ficou sem saber ao certo se poderia recusar o convite”. Também teve receio de parecer grosseira e acabou aceitando o convite e compraram os ingressos.

Durante o almoço, Leonardo “estava com intenções erradas“. Ele “tentava pegar batata fria e dar na sua boca” e ela ficava sem entender, mas não “cortava” com medo da reação dele. Ao irem para o cinema, “já sabia que não seria uma boa coisa”, mas foi por não saber como negar.

Dentro do cinema, Leonardo tentou pegar sua mão, tendo a retirado em seguida. O sargento “batendo a mão na perna dele [a própria perna], como que fosse para eu pegar em sua mão”. Ana afirma que mudou de posição para não olhar para ele.

O relato da miliar continua. Depois do filme, disse que tinha namorado, o que o sargento desdenhou. No caminho de volta para a Ilha do Governador, o sargento começou a dizer que a amava, que “sentiria sua falta nos outros dias”. Também disse: “mesmo que tivesse um relacionamento sério e você quisesse ficar com alguém, não valeria a pena”.

Então Ana ficou constrangida e com receio de que ele mudasse o trajeto, já que não conhecia a cidade.

Chegando próximo à Ilha do Governador, “ele ficava insistindo em qual relação eles teriam, tendo sido enfática que era só amigos e não passaria disso”.

Em um momento, parou perto da orla da praia e ele teria dito que “ela era um crime que valeria a pena”.

Em determinado momento, declarou: “Eu, Vitorino, gostaria de transar com a [nome da vítima]” e também “Eu poderia agora parar em um hotel e você faria o quê? Você entraria e nós poderíamos ficar 40 minutos um gozando um atrás do outro”.

Ao chegar no estacionamento, Ana pediu para ir embora e ele seguiu o caminho. Afirma que “se sentiu totalmente humilhada e constrangida com a situação” e que “segurou até chegar ao quartel”, onde falou com sua comandante e outra colega.

As duas, além do namorado que também é militar, testemunharam a favor dela assentindo que ela chegou e contou o que havia acontecido chorando muito.

Reincidência

Um inquérito policial militar foi aberto, está em segredo de justiça e a denúncia por assédio sexual feita pela Promotoria Militar foi aceita pelo Tribunal de Justiça em março do ano passado. Por causa da pandemia, as audiências foram suspensas diversas vezes, algumas ocorreram neste ano. E outros casos foram denunciados.

Laura* e Maria* relataram ao menos quatro situações de violência sexual, sendo uma com as duas presentes. Essa situação, segundo a descrição na folha de contravenções de Leonardo, aconteceu há dois anos quando estavam em uma viagem de ônibus da Banda Sinfônica. O sargento teria colocado seu material no bagageiro superior onde as militares estavam sentadas e, ao acessar seus pertences, roçou o pênis ereto no ombro de Laura.

Em outra ocasião, com data não determinada, Laura relatou que Leonardo teria parado na frente dela, também com o pênis ereto, “se exibindo para um grupo de militares homens que estava rindo do que ele fazia, dando a impressão a sargento de que a cena parecia entre eles pré-acordada”.

Maria relatou que, há aproximadamente cinco anos, estava sentada de uniforme TFM, que é camiseta e shorts, para treinos, Leonardo se aproximou dela “com o órgão genital visivelmente excitado” enquanto outros militares riam. Em outra situação, sem data determinada, contou que o sargento a abordou para “para mostrar-lhe no seu celular uma foto sua com uma bicicleta, trajando um short bem apertado e com o órgão sexual excitado”.

Por conta desses relatos, em março deste ano, Leonardo foi condenado em âmbito administrativo a 16 dias de prisão por prática de “atingir física ou moralmente qualquer pessoa, procurar desacreditá-la ou concorrer para isso, desde que não seja tal atitude enquadrada como crime”, contravenção disciplinar prevista no item 29 do artigo 7º do Regulamento Disciplinar da Marinha.

Também foi apontado o não cumprimento de itens elencados no artigo 28 do Estatuto dos Militares que tratam da ética militar: respeito à dignidade da pessoa humana, proceder de maneira ilibada na vida pública e na particular, observar as normas da boa educação, garantir assistência moral e material ao seu lar e conduzir-se como chefe de família modelar e zelar pelo bom nome das Forças Armadas e de cada um de seus integrantes, obedecendo e fazendo obedecer aos preceitos da ética militar.

“Após a conclusão da Sindicância chegou-se à conclusão que as condutas praticadas pelo militar convergem para uma mesma direção, perante a semelhança relatadas pelas militares ofendidas, pois o fato não é isolado e ocorreram em momentos distintos e [com] diferentes militares do sexo feminino e com riqueza de detalhes”, escreveu o comandante Dagoberto Ferreira da Silva Junior.

Na folha que descreve as contravenções de Leonardo, é apontado que “as condutas são absolutamente irregulares, reprováveis, afrontosas e repulsivas, particularmente por expor as militares envolvidas a situações constrangedoras”.

Apesar de os fatos narrados configurarem crime de importunação sexual, como é reconhecido no documento, não foi aberta ação penal porque os casos aconteceram antes de a lei ser promulgada em 2018. O crime se configura quando praticado “ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro” contra a pessoa sem o seu consentimento.

A professora de Direito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Maíra Zapater explica que a decisão de não abertura da ação penal, nesse caso, é correta. “O princípio da legalidade é um princípio constitucional, que está previsto no artigo 5º da Constituição, está previsto no Código Penal, e tem como consequência que você aplica a lei vigente à época dos fatos, que era a Lei de Contravenções Penais que foi revogada nessa parte [que deu origem à lei da importunação sexual]”, pondera. “No campo penal, não tem nada a ser feito, mas é importante pontuar que isso não impede que no âmbito cível não caiba uma indenização por danos morais porque a responsabilidade cível é independente da penal.”

O que diz o sargento Leonardo

Leonardo negou em depoimento que tentou colocar batata na boca da aluna, que tentou pegar em sua mão e dito frases de cunho sexual. Também alegou que foi a aluna que o convidou para ir ao cinema e ainda o teria chamado para tomar sorvete depois. E que parou na orla da praia porque Ana queria mostrar a foto do namorado.

Quando perguntado pelo comando se havia ido ao shopping com Ana, de início o sargento negou, depois, confirmou, quando o comandante Nerias Morel disse que pediria as câmeras de segurança do local. De acordo com o sargento, a negativa da ida ao centro comercial foi por “por receio de vazar tais informações”.

Na ocasião, fora informado de que seria para o deslocado para o Grupamento de Fuzileiros Navais do Rio Meriti, nas palavras dele, a “pior OM [Organização Militar] do Rio” e que estava fora da banda sinfônica. Declarou nunca ter cometido transgressão disciplinar. Também disse que já pensou em tirar a própria vida e que está fazendo acompanhamento psicológico.

Com relação aos casos de Laura e Maria, conforme termos da defesa oral de Leonardo registrado na folha de contravenções, antes de ser condenado administrativamente, disse se tratar de uma “competição de uma minoria barulhenta que insiste em reduzir a minha carreira invicta, o meu casamento implacável através de falácias tão rasas quanto o espelho de sua própria carreira”.

Em relação à denúncia de ter roçado o pênis em Laura, alegou que “mesmo que o militar fosse uma girafa de pernas abertas ao beber água não poderia encostar o membro sexual no ombro da militar” porque ela teria menos 1,65 metros de altura e ele 1,85 metros.

Ajude a Ponte!

A Ponte tentou procurar a defesa de Leonardo, mas não houve resposta.

O que diz a Marinha

A reportagem procurou a assessoria do Comando do 1º Distrito Naval, que tem abrangência no Rio de Janeiro, sobre o caso, a situação atual de Leonardo e das vítimas, bem como perguntou sobre medidas para coibir violência contra a mulher e aguarda uma resposta.

*Os nomes foram trocados para preservar as identidades das vítimas.

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