Morte de três trabalhadores com 43 tiros revolta Cristalina (GO): ‘eram pessoas queridas’, diz prefeito

    Trabalhadores rurais assassinados haviam saído para caçar javali, segundo familiares, e levavam armas antigas e de baixo poder de fogo. Mesmo assim, a PM afirma que os matou numa troca de tiros

    Francisco (à esquerda), Aleff e Nelson, mortos pela PM goiana| Foto: TV Anhanguera

    Carreatas e manifestações de rua estão pedindo justiça, na cidade de Cristalina, no Entorno do Distrito Federal, em Goiás, desde que policiais militares mataram a tiros três trabalhadores rurais, na noite de quarta-feira (25/11). Os PMs envolvidos disseram que houve uma troca de tiros, mas as vítimas eram trabalhadores rurais da fazenda e tinham saído para caçar javalis, segundo familiares e amigos, incluindo os donos da fazenda onde foram mortos.

    Até o prefeito, Daniel Sabino Vaz, o Daniel do Sindicato (DEM), que é do mesmo partido do governador Ronaldo Caiado, responsável pela Polícia Militar, se posicionou pedindo investigação urgente e afirmando que os homens mortos pela polícia eram “pessoas idôneas” e “muito queridas”.

    Segundo o boletim de ocorrências, os policiais militares, todos da Patrulha Rural, disseram que efetuaram 43 disparos de pistola e carabina para matar Aleff Nunes Souto, 22 anos, Francisco da Silva Chaves, 41, e Nelson da Silva Cardoso, 38. As três armas supostamente usadas pelas vítimas eram de baixo potencial e precisavam ser recarregadas a cada tiro.

    Durante a ocorrência, os PMs estavam em uma Amarok, da PM goiana, e as vítimas em duas motocicletas. O sargento Ângelo Máximo Morais deu 10 disparos e o soldado Bruno Martins Barros deu 25 disparos, ambos com uma pistola 9 mm. Já o sargento Reginaldo Matos Lima realizou 8 disparos de carabina .40.

    De acordo com a PM, foram apreendidas com as vítimas duas espingardas, uma calibre 28 e outra 36, e uma garrucha de calibre 28. A patroa das vítimas e proprietária da fazenda reconheceu apenas duas das armas como sendo dos trabalhadores.

    Os policiais dizem, em sua versão, que outros atiradores fizeram disparos contra a viatura, mas eles teriam fugido pela mata. A proprietária da fazenda, que prefere não se identificar, diz que apenas os três haviam saído para caçar javali, atividade legalizada no país.

    Ao avaliar as fotos com as armas das vítimas, o instrutor de tiros Leder Pinheiro explica que elas são do tipo monotiro. “O atirador faz o disparo, tem que abrir a arma, retirar o cartucho, colocar novo cartucho para depois fazer novo disparo”, explica o especialista.

    Armas que estavam com as vítimas: antigas e com baixo poder de fogo | Foto: Divulgação

    O caçador profissional Lindomar Dias dos Santos diz que as armas achadas com as vítimas da PM são antigas e não costumam ser utilizadas. “É uma espingarda já bem antiga. Hoje, na caça profissional, a gente nem usa mais esse tipo de arma. É mais o pessoal da zona rural, que não tem acesso a armamento novo, ainda às vezes utilizam essas armas, que eram do pai, do avô. São armas que já foram fabricadas há 40, 50, 60 anos atrás”, relata.

    Recém nomeado como delegado da Polícia Civil de Goiás e responsável pela investigação do caso, Pedro Manuel Democh Assis Brasil diz que ainda não é possível afirmar que as armas são monotiro, já que é necessário esperar o laudo da perícia, feito pela Polícia Científica. “As armas podem ter sido modificadas. Realmente quem irá dizer é a perícia. Difícil concluir alguma coisa só com base em imagens”, avalia.

    Pedro esteve em Goiânia nesta sexta-feira (27) para tratar de assuntos administrativos na Secretaria de Segurança Pública de Goiás e deve começar a ouvir os depoimentos de testemunhas a partir desta segunda-feira (30).

    Ainda não foi identificado a pessoa que teria testemunhado o roubo de gado, o que teria motivado a ação policial com três mortes. Também não foram localizados os outros atiradores que teriam fugido pela mata, segundo a versão dos militares. O delegado responsável pelo caso, Pedro Manuel Democh Assis Brasil, explica que ainda não é possível afirmar se a versão oficial é verdadeira. “A gente não tem condição de afirmar nem que a versão dos PMs está correta, nem que a versão dos familiares está correta. Isso só a investigação dirá.”

    Sem acesso ao corpo

    Além da dor da perda e do sentimento de injustiça, familiares dos três trabalhadores rurais mortos pela Polícia Militar relatam que corpos das vítimas estavam muito maltratados. A doméstica Lúcia Maria Rosa, 45 anos, prima da vítima Nelson, conta que ele estava com um buraco no pescoço, maxilar afundado, região da testa deformada e os braços e rostos com machucados parecidos com arranhões. Ela teme que isso seja sinal de tortura. A Polícia Civil aguarda o laudo cadavérico para saber.

    Familiares também reclamam que não puderam fazer o reconhecimento do corpo pessoalmente, nem no Instituto Médico Legal (IML), em Luziânia, nem da Unidade de Pronto-Atendimento (UPA), em Cristalina, para onde os policiais levaram os três baleados.

    Nelson tinha três filhos, sendo dois adolescentes do primeiro casamento e um bebê. Um dos seus sonhos, segundo Lúcia, era terminar uma reforma que estava fazendo na sua casa própria. Ele trabalhava há três anos na fazenda, que trabalha com o plantio de grãos.

    Lucia conta que, quando chegou na Unidade de Pronto Atendimento, ouviu um policial dizer: “Matei três pebas”. Ela critica o fato de os policiais terem levado as vítimas para a unidade de saúde, porque isso mudou a cena do crime. Além disso, questiona a versão de confronto. “Aquelas armas (das vítimas) são próprias para caça. Você não mata ninguém com aquelas armas. Eles falam nas reportagens que teve confronto. Onde? Tiros que deram neles foi tudo nas costas”, desabafa.

    Pessoas ‘idôneas’ e ‘muito queridas’

    O prefeito de Cristalina, Daniel Sabino Vaz, fez uma publicação nas suas redes sociais dizendo que cobrou a investigação sobre as mortes dos três trabalhadores rurais durante operação policial. Familiares das vítimas se reuniram na Prefeitura com representantes da Patrulha Rural da PM.

    “A nossa Cristalina está enlutada pela tragédia que aconteceu essa semana, resultando numa ação policial que teve a morte de três trabalhadores rurais, que eram pessoas idôneas, conhecidas na cidade e muito queridas pela família e pelos amigos”, escreveu o prefeito nas redes sociais.

    Daniel diz ainda na publicação que a administração municipal decidiu auxiliar no diálogo entre a família e a PM. Segundo o prefeito, participaram da reunião o subcomandante da Patrulha Rural da Polícia Militar do Estado de Goiás, Major Moraes e o comandante local, major Werik.

    Durante a reunião, familiares das vítimas e seus patrões pediram uma nota da Polícia Militar, “ressaltando que (as vítimas) eram trabalhadores, técnicos e que tinham carteira assinada e sustentavam as suas famílias trabalhando dignamente, contrário ao que foi relatado para a imprensa estadual”, diz trecho da publicação do prefeito.

    ‘Vocês não são justiceiros para tirar a vida’

    Na sexta-feira (27), foram realizados dois protestos em Cristalina pedindo justiça para a morte dos três trabalhadores. O primeiro protesto foi no início da tarde e foi no formato de carreata. Já o segundo foi na praça da prefeitura e os manifestantes levaram uma faixa e balões pretos e brancos. Também houve carreata e buzinaço em apoio. Manifestantes prometem que farão mais protestos.

    A manifestação foi acompanhada por policiais. No momento em que estava parada, em frente ao posto da PM do município, participantes fizeram discursos direcionados para os militares presentes. “Juiz debaixo dessa terra é só o juiz lá no fórum. Aqui, polícia nenhum (é juiz). A não ser que seja para defender a vida de vocês (policiais), se vocês têm que matar para defender a vida de vocês. Vocês não são juízes aqui e nem justiceiros para tirar a vida, ainda mais de inocentes, três inocentes”, declarou uma manifestante, com apoio dos demais.

    Reportagens originalmente publicadas no jornal O Popular

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