Morte, espancamento e bala de borracha: ações violentas da PM se espalham por Joinville

    Em menos de 30 dias, ao menos uma pessoa foi morta, um adolescente espancado e uma pessoa atingida por balas de borracha em ações da Polícia Militar de Santa Catarina

    Pertences de Leandro e cápsulas encontradas por familiares no quintal em que ele foi morto | Foto: Adrieli Evarini/Paralelo

    Aos 69 anos, a tarefa que Malvo Wisbecki teve que cumprir é, para ele, longe de ser natural. O aposentado não desviou o olhar durante um só segundo enquanto o filho mais novo, Leandro Wisbecki, de 32 anos, era enterrado no cemitério São Sebastião, na zona Leste de Joinville. Naquele momento, a indignação deu lugar ao cuidado de estar atento à sepultura do filho. E a indignação de Malvo é direcionada à Polícia Militar de Santa Catarina e à Guarda Municipal de Joinville, responsáveis pela ação que, ao final, deixou o corpo do caçula da família estendido, sem vida, no quintal da própria casa.

    De acordo com testemunhas que presenciaram a ação, Leandro, que era usuário de drogas e sofria de transtornos mentais, estava se mutilando no quintal e na calçada da residência da família quando o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) foi acionado para ajudar a contê-lo e encaminhá-lo à uma unidade hospitalar. “A gente chamou porque ele precisava de ajuda, ele estava chamando atenção, estava pedindo ajuda”, lamenta o pai. Sem conseguir conter Leandro, o Samu acionou a Polícia Militar, que também teve o apoio da Guarda Municipal.

    Naquela segunda-feira, dia 18 de setembro, o homem seria atendido no Caps AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas). Mas o pai não teve tempo de tornar o encaminhamento que guarda junto aos pertences do filho em atendimento efetivo. Momentos antes do horário marcado para o atendimento, Leandro foi morto no quintal de casa.

    Uma testemunha – que não será identificada a seu pedido – acompanhou o desenrolar da ação e contou que ouviu, pelo menos, seis tiros. Antes, ele teria sido atingido por disparos de taser (pistola de choque usada para imobilizar suspeitos) que não teriam sido suficientes para fazê-lo soltar a faca com a qual se machucava. Após ser atingido e já cercado por guardas municipais e policiais, Leandro teria tentado se defender e, neste momento, os tiros de arma de fogo começaram a ser efetuados contra ele, de acordo com a testemunha.

    “Eu vi quando atiraram no braço dele e o braço meio que caiu para o lado, poderiam ter imobilizado. Depois, o guarda municipal, não sei se se desequilibrou, mas caiu aqui [apontando para o canteiro ao lado do muro] e quando foi caindo já foi atirando no peito dele. E atrás tinha uma policial atirando também, nas costas. Eu vi uns três tiros, aí me abaixei e só escutei os outros disparos”, diz.

    Enquanto a testemunha via os disparos, Malvo estava trancado dentro da ambulância. Segundo ele, assim que a polícia e a GM chegaram ao local, que fica em frente a uma escola, ele e a esposa foram encaminhados para a ambulância e as portas foram fechadas.

    “A gente foi achando que ele iria conosco para o hospital, o PA, algum lugar, mas trancaram a gente para matar nosso filho”, lamenta. E foi de dentro da ambulância que Malvo e Maria Solange Wisbecki ouviram os tiros que mataram o filho. “Eles falaram: vamos fazer nosso serviço, se não conseguirmos conter, vamos atirar. Eles falaram que iriam matar meu guri e mataram”, dispara.

    Segundo Malvo e testemunhas, cerca de oito agentes, entre policiais e guardas municipais, participaram da ação. “Eles executaram o meu guri aqui no meu quintal. Se eu não estivesse preso naquela ambulância eu mesmo tirava aquela faca dele, nem que eu precisasse pegar um sarrafo e quebrar as pernas dele, mas não era pra matar o meu guri”, lamenta.

    A Prefeitura Municipal manifestou-se apenas por meio de nota e afirmou que não houve disparo de arma de fogo pelos agentes municipais e que eles apenas prestaram apoio solicitado pela Polícia Militar. O caso está sendo investigado pela Delegacia de Homicídios e, de acordo com o delegado Elieser José Bertinotti, os disparos foram efetuados pela Polícia Militar. Agentes envolvidos, familiares e testemunhas foram e continuam sendo ouvidas pelo delegado. As armas utilizadas foram recolhidas e encaminhadas para a perícia.

    Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina, nos sete primeiros meses do ano, foram registrados dois homicídios em decorrência de ação da Polícia Militar em Joinville. Em Santa Catarina, foram 28 registros de janeiro a julho.

    Adolescente espancado por policiais militares no Ulysses Guimarães | Foto: Divulgação

    Após morte de PM, adolescente é espancado por policiais na zona Sul

    Ir para a escola e depois andar de skate na pista da praça era rotina na vida de um adolescente de 16 anos da zona Sul de Joinville. Era. Depois do dia 28 de agosto, a rotina de Diego* mudou completamente. Foi no início daquela noite que o cabo da Polícia Militar Joacir Roberto Vieira foi assassinado em um bairro próximo, também na zona Sul. O assassinato do policial teve reflexos no bairro Ulysses Guimarães, para onde o jovem voltava depois de andar de skate próximo à escola em que estuda.

    De acordo com a investigação, foi no bairro que o carro utilizado na fuga após a morte do policial foi abandonado e incendiado. Em poucas horas, as ruas estavam tomadas por policiais que realizavam buscas aos suspeitos de matar o cabo Joacir. Por volta das 19h30, o garoto voltava a pé na companhia de um amigo quando foi abordado duas vezes. Na terceira, os policiais desceram do carro e o espancaram.

    “Em três minutos a minha vida mudou”, diz. Já separado do amigo, Diego seguia sozinho para o “final do bairro”, no loteamento Juquiá, quando foi espancado. “Só me batiam, não falavam, não perguntavam nada. Eu até falei que não estava com droga, com nada e eles falaram ‘ah, não quero nem saber, vai apanhar do mesmo jeito’. E me bateram. Eu só senti meu dente caindo. Foi tudo muito rápido. Na hora eu não senti nada, estava com o sangue quente, quando eu cheguei mais perto [de casa] começou a dar uma tontura, daí eu vi minha mãe. Ela parou o carro e eu só senti que tinha quebrado meu nariz quando tentei respirar e não conseguia. Olhei e vi o casaco todo vermelho de sangue. Naquela hora começou a doer”, conta.

    Os três minutos de socos e chutes refletiram em um dente e o nariz quebrados, a mandíbula deslocada, uma cirurgia para correções faciais e a colocação de uma placa para restauração de um osso da face, fraturado no espancamento. Diego passou uma semana internado no Hospital Municipal São José e saiu um dia após a realização da cirurgia. Para o pai, Lucas*, que cobra uma posição firme da polícia, os agentes saíram às ruas para “fazer justiça com as próprias mãos”.

    “Nem pareciam policiais, pareciam justiceiros. Eu só queria perguntar pra eles se eles têm filhos ou se têm irmão pequeno porque queria que parassem pra pensar. Uma família toda está sofrendo, eles acabaram com o rosto dele. Eu perdoo eles, mas em nenhum momento eles poderiam ter feito isso, eles agiram por impulso, agiram pelo sentimental, emocional. Não colocaram a cabeça no lugar. Eles saíram pra rua e quebraram tudo, eles destruíram uma família porque ele está com trauma, não quer mais sair de casa e nós estamos assustados, apavorados, horrorizados”, lamenta.

    Cuidadosa com os machucados do filho quando voltou para casa, a mãe, Joana* tem sentimentos divididos. De um lado, o agradecimento pela vida do filho. De outro, a insegurança em saber que ele foi espancado por policiais. “É triste, é bem triste porque ele estava tão bem, estava feliz e daqui a pouco tudo vira, muda em questão de segundos. Ele poderia estar morto, eles poderiam ter matado o meu filho, poderia ter sido pior. Agora, a gente está com medo, mas a gente não tem para onde ir, eu me sinto insegura porque com eles [policiais] não dá pra contar mais”, desabafa.

    Para Diego, o sentimento agora é de medo. “Agora é medo, não quero nem sair de casa. Eles vêm batendo em todo mundo, não perguntam nada, só porque moramos aqui”, diz. “Se eu passasse hoje por eles? Só poderia passar bem devagar ou pedir para alguém me trazer pra casa. Apanhar de novo eu não quero e eu não poderia falar nada, a minha voz é mais fraca perto da deles”, completa.

    Para a advogada Cynthia Pinto da Luz, que está acompanhando o adolescente, os casos de violência policial só se repetem graças a uma cumplicidade. Ela, que acompanhou Diego no registro do boletim de ocorrência, no encaminhamento para o exame de corpo de delito e na queixa junto à Corregedoria da PM, destaca ainda que os casos só irão acabar quando as instituições de segurança mudarem completamente a postura de repressão.

    “É preciso voltar o olhar aos direitos humanos, para a dignidade humana. Há, ainda, uma cultura de encobrir, de não punir, no sentido de não manchar a imagem da instituição”, enfatiza. Cynthia explica ainda que aguarda a finalização do corpo de delito de Diego para impulsionar tanto o inquérito policial na Polícia Civil, quanto a queixa na Polícia Militar.

    Moradora atingida por dois disparos de bala de borracha | Foto: Adrieli Evarini/Paralelo

    Moradores relatam ação violenta da PM em condomínio

    A presença da Polícia Militar no bairro Jardim Paraíso, zona Norte de Joinville, é constante e já se naturalizou entre os moradores. Na “entrada” do bairro, a base da PM já mostra que os policiais costumam estar presentes no local. Mas, o que não é natural é uma ação que atinge moradores com balas de borracha e deixa marcas de tiros de arma de fogo nas paredes de um prédio. Isso aconteceu no dia 8 de setembro em um residencial do bairro.

    Segundo moradores, que estavam no pátio do condomínio conversando após uma assembleia, era por volta das 23h quando os disparos foram ouvidos na entrada do condomínio. Fernanda* conta que a mãe de um adolescente ouviu o disparo, olhou na direção da portaria e viu o filho no chão, ao lado de pelo menos outros três jovens. Ao ver a cena, a mãe se desesperou e correu para socorrer o filho. Mas, antes de chegar no local onde os jovens estavam sendo abordados deitados no chão, ela desmaiou.

    “Ela tem problemas de saúde, pensou que aquele tiro que ela ouviu tinha sido no filho dela, ele ali caído, ela desmaiou na hora e nenhum policial se mexeu para ajudar, muito pelo contrário”, conta. Neste momento, o grupo, de cerca de 20 pessoas já havia se deslocado para a entrada do condomínio, onde a ação se desenrolava.

    Tatiana* contou que, ao ver a mãe desmaiar, o garoto levantou para socorrê-la e um dos policiais bateu nele com a arma. “O policial batia nele com a arma, pensei que ia dar morte. O menino correu pra socorrer a mãe porque viu ela ali, desmaiada e o PM batendo nele”, diz. Ela tentou afastar mãe e filho de perto do policial e, neste momento, iniciaram disparos de balas de borracha. Tatiana foi atingida duas vezes nas costas. “Na hora do nervosismo nem senti dor, só senti falta de ar e larguei o menino”, afirma.

    Segundo os moradores, cerca de 10 viaturas da Polícia Militar, duas da Companhia de Patrulhamento Tático e cães da PM participaram da ação no condomínio. Luciano*, padrasto de um dos garotos abordados no início da ação, destaca que eles não querem “manchar” a imagem da corporação, mas condena a atitude dos policiais naquele dia.

    Os policiais sempre entraram aqui, mas esse não foi um procedimento legal. Eles dispararam sem que tivesse qualquer resistência. Chegaram atirando. Aquela marca lá na parede não é de bala de borracha não. O primeiro, infelizmente, não foi de borracha”, destaca.

    A mãe de outro adolescente que fazia parte do grupo abordado pelos policiais, afirmou que ficou o tempo todo ao lado do grupo para ter certeza que o filho não seria agredido e, foi enquanto estava próxima aos policiais que ela ouviu a suposta justificativa para a truculência dos policiais. Eles alegaram que os disparos iniciaram porque um dos jovens teria feito menção a sacar uma arma do bolso do moletom. “Eles falaram que o menino colocou a mão no bolso como se fosse tirar uma arma, mas cadê a arma?”, questiona.

    Segundo Jofrey Santos Silva, comandante do 8º Batalhão de Polícia Militar, responsável pela região Norte da cidade, um Inquérito Policial Militar foi instaurado no dia 11 para apurar a ação e apontar as responsabilidades. De acordo com ele, nenhuma arma foi apreendida no residencial, mas negou que tantas viaturas estivessem presentes.

    *Os nomes foram alterados a pedido das testemunhas e vítimas por temor de represálias

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