Mostra da Cooperifa em SP tem ‘palavra da quebrada’ como foco em 2019

    Para Sérgio Vaz, idealizador do evento que chega a 12ª edição, a força da produção poética periférica está no pertencimento

    Panfleto destaca artistas do show de encerramento, em 27 de outubro | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Sérgio Vaz ajeita a cerveja e o copo na mesa de plástico vermelha na laje do Bar Zé Batidão, no Jardim Guarujá, zona sul de São Paulo. Os poetas, no som ao fundo, recitam seus versos no microfone aberto do Sarau da Cooperifa, momento da entrevista dada à Ponte. Entre um trago de cigarro e um tempinho para molhar as palavras, Vaz conta que essa é a maior conquista que poderia ter na vida: ver e ouvir a voz da periferia sendo disseminada dentro da própria quebrada.

    Naquela mesma esquina, o hoje poeta cresceu e viveu na área considerada como a mais insegura do mundo na década de 1990. Isso está no passado, graças também à sua missão de levar a cultura para o próprio quintal. A Cooperifa está mais viva do que nunca e mostrando à favela suas próprias ideias, como ele diz. Neste ano, Sérgio Vaz foi indicado ao Prêmio Jabuti, mais tradicional prêmio de literatura do país, pelo seu projeto “Poesia contra a violência”, apresentado por ele em escolas desde 2014.

    São 18 anos do Sarau e 12 da Mostra da Cooperifa, que em 2019 quer dar ainda mais voz para quem está longe dos centros, físicos e culturais. “Eu acho que o que trouxe a gente até aqui foi a palavra, não foi o livro, não foi a cultura, foi a palavra. Eu falo para você, faço a gentileza de falar e você faz a gentileza de ouvir”, resume Sérgio Vaz.

    A programação cultural, dos dias 19 a 27 de outubro, envolve shows, debates, o Festival Várzea Poética, exposição, espetáculos, oficina de reciclagem, entre outros. Confira a programação completa clicando aqui.

    Ponte – Qual o foco desta nova Mostra da Cooperifa?
    Sérgio Vaz –
    São 18 anos de Cooperifa, é a 12ª mostra com o tema “palavra”. Eu acho que o que trouxe a gente até aqui foi a palavra, não foi o livro, não foi a cultura, foi a palavra. Eu falo para você, faço a gentileza de falar e você faz a gentileza de ouvir. Queríamos celebrar nesses 18 anos a palavra. Pensamos em pessoas que usam a palavra como resistência.

    Ponte – Foi difícil selecionar?
    Sérgio Vaz – Foi porque fica muita gente de fora. São 45 eventos, 11 debates. Foi difícil. Tem muita gente falando, né? [risos] E você não pode repetir quem já veio ano passado, retrasado e tem muita gente. Foi difícil selecionar. Não melhores ou piores, nossa ideia é chamar alguém um pouco mais conhecido para falar com gente da quebrada, fazer essa troca.

    Na laje do Bar do Zé Batidão, Vaz conta o norte da edição 2019 da Mostra Cooperifa | Foto: Carlos Castro/Ponte Jornalismo

    Ponte – Tem preocupação com diversidade?
    Sérgio Vaz –
    Tem! A mostra da Cooperifa é o Brasil que a gente queria, irmão. Que é como? Com todas e todos. Abrimos falando da educação, depois abre com Maria Gadú… Todo mundo tem voz nesses quase 5 dias. Todos têm.

    Ponte – O quanto é importante ressaltar essa voz no atual momento do Brasil com Jair Bolsonaro na presidência?
    Sérgio Vaz –
    Essa voz, no fundo, é para nós mesmos. A periferia hoje, de alguma forma, já produz ideias, não precisa copiar de ninguém se ela quiser. Somos de um tempo que nós, artistas das periferias, queríamos fazer sucesso lá [no centro]. Acho que já temos nossos pensadores, pensadoras, cineastas, dramaturgos, nossos repórteres. É fomentar. Essa voz… Para nós sempre teve um Bolsonaro no poder, tirando o Lula e a Dilma. Não muda muito. Dói mais, mas estamos resistindo faz tempo. O pobre já reconhece essa crise, é mais uma. É pior, mas é mais uma. Você passa na rua aqui, aquela garagem que tinha dois carros agora só tem um, metade virou um espaço para vender cachorro quente, quem tinha uma alugou… O pobre já sabe se virar. Precisávamos dar essa ideia para nós mesmos. É importante falar para o mundo, mas também para a nossa aldeia para que as pessoas da comunidade saibam quem são as pessoas que estão pensando aqui para não abraçar ideia errada. A Djamila vai falar aqui, Valesca Mota, Bianca Santana, Geni Guimarães, Saloma Salomão, enfim, um monte de gente que trabalha na periferia. Então, o importante é a gente ouvir a nossa própria voz, que acho o mais difícil.

    Entre um trago e outro, relembra que Cooperifa nunca recebeu recursos, é conquista com suor e esforço próprios da comunidade | Foto: Carlos Castro/Ponte Jornalismo

    Ponte – São 12 anos de Mostra, 18 de Sarau, o projeto de poesia nas escolas sendo indicado ao Jabuti. Nessa trajetória, qual um ponto interessante de mudança que você apontaria?
    Sérgio Vaz –
    Antigamente a gente fazia excursão para ir no Playcenter, agora os caras estão de outra quebrada fazendo excursão para vir no sarau. Já é uma referência, mudou o olhar do que eu quero ver, onde eu quero ir. Sou de uma época que queríamos mudar daqui, hoje estamos mudando aqui. Esse é o conceito. Quando era jovem, tínhamos que sair da ponte para ir no cinema, teatro, e pá. Sempre curti cultura. E na primeira vez que fui no Bixiga, em 1985, 1986, eu vi aquela rua cheia de gente, cheia de luz, os caras fumando maconha na rua. “Esses caras são loucos? Que bagulho louco”. Eu achava que o bairro era a minha extensão. Eu vivia nos bailes blacks daqui, ia no baile ali e não conhecia. Aquilo para mim foi maravilhoso. Eu comecei a frequentar porque ali tinha cultura, mas nunca me senti pertencente àquele lugar. Ninguém me tratou como um estranho, mas eu sentia que “não é essa a ideia, é absorver o que está fazendo aqui e levar para a comunidade e adaptar”. Por isso fizemos a Semana de Arte Moderna da Periferia, assim chamamos a primeira Mostra Cultural da Cooperifa. O conceito de 1922 era pegar as coisas que vinham da Europa, canibalizar e regurgitar de forma brasileira. Canibalizamos o que veio do centro e regurgitamos de forma periférica. Era a nossa ideia.

    Ponte – Teve motivo para não manter esse nome nas edições seguintes?
    Sérgio Vaz –
    Só queríamos afrontar, mesmo. Era uma vez. Os caras chegam aqui e não pedem licença para nada. Nós também pegamos algo muito sagrado para eles, não pedimos licença e fizemos. Fomos muito criticados, pá, mas foi isso mesmo. Somos arrogantes, né?!

    Vaz considera uma conquista que artistas da quebrada se apresentem e mostrem suas ideias para as periferias | Foto: Carlos Castro/Ponte Jornalismo

    Ponte – De novo a mostra acontece em várias quebradas. O quanto essas ações dispersas cumprem essa missão de mostrar a produção de uma quebrada para a outra?
    Sérgio Vaz –
    Quando falamos em fomento à cultura, não entendo muito o que eles falam “o que é fomentar a cultura”. A Mostra da Cooperifa, todos os eventos que não serão feito nas escolas ou no CEU, as escolas são convidadas para ir no evento. Tivemos o cuidado de colocar ônibus para levar todas as pessoas a todos os lugares. Queríamos, queremos e lutamos para que as pessoas vejam o que está acontecendo. Não somos uma atração de circo. Queremos reproduzir o que é feito na periferia e é preciso que as pessoas da periferia vejam. Por isso é feito com jovens, em casas de culturas, nas praças, nos bares, no cinema na laje… A pessoa vai ver cultura no ambiente que ela conhece, que não amedronta, não diminui. Ela está em casa, vê em casa. É importante.

    Ponte – Tem uma tranquilidade para absorver o que é mostrado…
    Sérgio Vaz –
    “Estou em casa, irmão!” Não é? O teatro veio até aqui. Antigamente o cara colocava a gente no ônibus e levava para o teatro, o Playcenter… É daora também, não vou criticar isso. Mas o cara está vendo o teatro, o cinema pela primeira vez na quebrada dele. Isso é muito impactante. Quando traz artistas de fora, o cara fala: “eles vieram aqui”. É isso que a gente queria, sentir que também podemos. Mas não um reduto só nosso, que só nós podemos, um grupinho de intelectuais da quebrada. Isso não funciona. Se o moleque da quebrada não me conhece a culpa não é dele, é minha. Eu vivo aqui, como não me conhece? Tenho que chegar nele. Esse ano temos o festival Várzea Poética com dez times, todos ganharam uniforme. Como vamos chegar na várzea? Assim, na ideia. A festa das crianças da Ponte Preta, o Leme, eles vieram ao sarau e disseram que poderiam colocar um livro. Liguei para a Patrícia Vilela, disse que precisávamos de livro infantil e mandamos brinquedo com livro. A ideia partiu dos caras. Isso quer dizer que as pessoas já estão entendendo.

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