Motoboy negro é abordado a 400 m de casa e acusado de roubo após reconhecimento irregular

Família afirma que Sergio tinha visitado irmão e saiu para comprar coxinha quando foi abordado por PMs em dezembro na capital paulista; BO não tem informações de características de assaltantes

Sergio Nascimento de Jesus tem 21 anos e é motoboy | Foto: arquivo pessoal

“Eu não estou conseguindo comer direito, estou sofrendo demais”, conta a cozinheira Janete de Jesus Nascimento, 42. Ela diz que se sente assim há quase um mês, desde quando um de seus três filhos, Sergio Nascimento de Jesus, 21, foi preso após um reconhecimento irregular e acusado de roubar um carro no bairro da Vila Firmiano Pinto, na zona sul da cidade de São Paulo, em 29 de dezembro de 2021.

Fazia quase quatro meses que o jovem tinha conseguido a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) para trabalhar como motoboy, assim como o irmão mais velho, relata a mãe. “Ele é um menino que não tem maldade com ninguém, sempre buscou ir atrás das coisas dele, de trabalhar, não tem uma passagem e na delegacia nem quiseram ver a carteira de trabalho dele”, afirma.

“Ele me buscou no trabalho e foi para a casa do irmão, era umas 18h e pouco”, diz Janete. Rodrigo, 18, que é o caçula, conta que naquele dia ele e Sergio visitaram o irmão mais velho, o qual tinha viagem marcada para o ano novo com a esposa e os filhos e mora na Vila Gumercindo, na zona sul. Rodrigo e Sergio moram com a mãe na região do Parque Bristol, bairro vizinho. “Deu umas 21h30, mais ou menos, a gente estava com fome e decidiu ir no rodízio do Ragazzo, que fica na Rua Vergueiro, pertinho”, lembra ele.

“Foi um casal numa moto, eu fui de moto com meu amigo e o Sergio foi a pé”, prosseguiu. O percurso da residência até o estabelecimento, conforme o Google Maps, é de aproximadamente 850 metros, o que dá cerca de 10 minutos de caminhada ou três de carro. “Quando a gente chegou lá, já fomos pedindo [cardápio] porque o Sergio ia chegar, mas foi dando 22h e nada”, afirma Rodrigo.

Depois que tinham saído, por volta desse horário, Arilma Reis Gois, 39, que é prima dos jovens, disse que policiais apareceram na casa perguntando de Sergio. “Estavam com umas lanternas e perguntando se ele morava aqui, eu disse que não, que ele tinha saído”, disse. “Daí perguntaram se quando ele saiu usava jaqueta azul e branco e era habilitado, eu disse que sim, porque pensei que os meninos deviam ter sido abordados e precisavam da habilitação, mas não perguntaram se era habilitação de carro ou moto, porque o Sergio tem habilitação de moto, e foram embora”.

De acordo com o boletim de ocorrência, o soldado Paulo Rogério Gutierrez, do 3º Batalhão Metropolitano, informou que estava em patrulhamento de rotina quando recebeu a informação sobre um roubo de um Fiat Toro cinza que havia ocorrido na Rua Major Sucupira e que foram passadas características de três pessoas como os autores do crime. No registro, porém, não há nenhuma informação sobre quais características seriam essas.

Quando estava transitando pela Rua Américo Ribeiro, altura do número 220, o PM disse que avistou um indivíduo com “as características passadas pelo Copom (Centro de Operações da Polícia Militar)” e que “assim que enxergou a viatura, apresentou nervosismo, desviando o olhar – olhando para os lados – e tentando mudar de trajeto”. Gutierrez estava acompanhado do soldado Paulo Cezar de Souza Junior e a dupla decidiu abordar o jovem. O local é 400 metros distante da casa do irmão de Sergio.

Os PMs informaram que nada de ilícito foi encontrado com ele. Segundo os policiais, Sergio negou ser autor do roubo e estava sem documento, mas forneceu “informações desconexas, falando primeiro que ia para casa e depois que ia encontrar amigos nas proximidades, mas os endereços, em ambos os casos, não batiam, tampouco ficavam naquelas imediações”.

Depois é descrito que a vítima reconheceu Sergio como “um de seus algozes” e o detido foi conduzido para o 16 DP (Vila Clementino), “para as providências de Polícia Judiciária cabíveis”, não deixando claro se o jovem foi apresentado à vítima do roubo, um médico hondurenho, de maneira informal, antes de ser levado à delegacia. O BO aponta que, durante o registro, o Fiat Toro foi encontrado estacionado e trancado na rua Jaci, 163, no bairro da Saúde, e foi recuperado. O local fica a cerca de 1,4 quilômetro da Rua Américo Ribeiro, onde o motoboy foi abordado pelos PMs.

No depoimento à Polícia Civil, o médico não informa o horário em que o crime aconteceu. O próprio boletim diz que a ocorrência foi 22h, mas não especifica se foi o horário do roubo ou da abordagem a Sergio. A vítima disse que havia estacionado o carro em frente de casa para abrir o portão da garagem quando foi abordado por três homens, dois deles armados, exigindo que saísse do veículo e entregasse seus pertences. Ele aponta que um o abordou pela janela dianteira esquerda, outro pela janela dianteira direita e o terceiro ficou na frente do automóvel, sendo que os que entraram pelas laterais que estavam armados, mas sem especificar que tipo de arma. O médico entregou seu relógio e o celular ficou no painel do Fiat Toro – os dois objetos não foram encontrados. O trio fugiu.

Ele afirmou que pediu ajuda a um vizinho que chamou a Polícia Militar e passou as características dos assaltantes – as quais não são descritas em nenhum registro do inquérito. De acordo com ele, uma viatura foi até o local “e, nesse momento, tomou conhecimento de que haviam localizado uma pessoa com as características de um dos rapazes que o roubou, assim como que o seu automóvel fora localizado”. “Assim, foi até sua casa para pegar a chave reserva do automóvel e conduziu-o para o Distrito Policial junto com os militares”, prossegue o depoimento. Depois, é informado que Sergio foi reconhecido pela vítima na delegacia como um dos assaltantes, sendo aquele que “fez a abordagem pelo lado do motorista (dianteiro direito), apontando uma arma de fogo para sua cabeça e exigindo que saísse do automóvel”.

O auto de reconhecimento, no entanto, não informa descrição das características dos suspeitos nem se foram colocadas outras pessoas semelhantes juntas a Sergio para o procedimento. À Ponte, a mãe de Sergio disse não ter visto outras pessoas serem levadas para a sala de reconhecimento. O advogado Ricardo Martins, que ainda não sabe se permanecerá representando o motoboy, declarou que Sergio disse a ele ter sido colocado sozinho na sala, o que fere o artigo 226 do Código de Processo Penal.

Esse artigo prevê como um reconhecimento de suspeito deve ser feito: a vítima descreve as características, depois são selecionadas pessoas que tenham semelhanças com as descrições, as quais são colocadas juntas, e é feito o reconhecimento. Reconhecer por foto antes de descrever, apresentar apenas um retrato ou uma única pessoa para a vítima são formas que acabam enviesando e contaminando o procedimento, como a Ponte já denunciou em diversos casos e entrevistas com especialistas que pesquisam o assunto.

Os familiares de Sergio disseram à reportagem que só souberam que ele estava detido quando acionaram a PM. “A gente entrou em desespero porque ele não aparecia e começamos a procurar”, conta Rodrigo. “Daí a gente ligou para o 190 e disseram para gente ir na delegacia”.

“Só consegui ver meu filho na cela chorando dizendo que não fez nada”, lamentou Janete. Em depoimento, Sergio negou que tinha roubado o carro e declarou que tinha saído da casa do irmão para ir ao Ragazzo. “Eu fiquei perguntando lá como que a prisão foi em flagrante se ele não tinha nada, como que uma pessoa fica presa só porque outra acusou? Mas é preto e pobre, não querem nem saber”, criticou a cozinheira.

A delegada Daniela dos Santos Borelli entendeu que houve flagrante e indiciou Sergio por roubo com o agravante de ser cometido por mais de uma pessoa e por ter sido usada de arma de fogo no crime com base no reconhecimento da vítima e nas declarações dos policiais.

Na ocasião, não houve audiência de custódia por causa do plantão judiciário. A promotora Mayara Cristina Navarro Lippel pediu a conversão da prisão em preventiva (sem tempo determinado) ao alegar a necessidade de manutenção da ordem pública, “gravidade do fato praticado e a periculosidade do autor”, com agravante de o crime ter ocorrido durante a pandemia. A juíza Fabiana Marini acolheu a manifestação em 30 de dezembro.

Polícia Civil não investigou caso

Como não havia registro do horário específico do roubo nem características dos assaltantes, a reportagem tentou contato com a vítima, mas o médico não quis atender.

Fomos até a Avenida Susana, onde fica a casa do irmão de Sergio, e identificamos três câmeras de segurança que poderiam ter gravado a movimentação do local: a de um prédio residencial, um galpão de uma loja de fantasias e uma casa de um morador numa rua da esquina. A do prédio, o porteiro disse que as imagens são armazenadas por 15 dias e que só poderia fornecê-las mediante autorização judicial. A do galpão, não havia campainha nem contato na fachada, mas encontramos o telefone da empresa cujo atendente disse que o equipamento não armazena filmagem. Já a da residência, o morador mostrou o celular com o aplicativo do equipamento e disse que, por causa das chuvas desta semana, o sistema da câmera e do HD foram afetados e não havia registro do dia 29 de dezembro após as 14h.

Também percorrermos a Rua Jaci, onde o carro roubado foi encontrado. Nela, há 17 imóveis, entre prédios, casas e estabelecimentos comerciais, que dispunham de câmeras de segurança. O prédio da altura do número 163 forneceu as imagens à reportagem que mostram que o veículo foi estacionado mais abaixo, às 21h24, e é possível ver que uma viatura cruza o local, mas nada percebe, e depois uma pessoa deixa o veículo e sai andando pela Rua Guiratinga, que é na esquina. Às 23h56, o carro parece ser examinado por duas pessoas que depois deixam o local. À 0h11 do dia 30 de dezembro, viaturas aparecem e o veículo é retirado da rua.

O prédio da altura 187 da Rua Jaci também forneceu parte das imagens à Ponte, em que essa movimentação da pessoa que estaciona o carro roubado fica mais nítida, mas não é possível ver com clareza quem é o suspeito que usa uma jaqueta aparentemente com uma cor escura, uma listra branca e uma cor semelhante a vermelho. Com exceção desses dois locais, a maioria dos porteiros, zeladores e síndicos desses imóveis que a reportagem procurou disse que apenas forneceria registros a pedido da polícia ou por meio de autorização judicial. Outros não retornaram o contato da reportagem até a publicação. A Polícia Civil não procurou nenhuma câmera para verificar a versão de Sergio ou visualizar a movimentação dos assaltantes. Também não buscou por testemunhas.

Em 12 de janeiro, sem questionar nenhum desses detalhes sobre o caso, o promotor Marcelo Luiz Barone denunciou o motoboy por roubo, reproduzindo o relatório da Polícia Civil. A denúncia foi aceita pelo juiz Paulo Fernando Deroma De Mello na última segunda-feira (17/1). Sergio se encontra no Centro de Detenção Provisória de Santo André.

A família ainda não conseguiu visitá-lo. “Tem muita burocracia para fazer carteirinha, mas o advogado disse que ele está muito triste, muito mal”, afirma Hugo de Jesus, irmão mais velho de Sergio que também trabalha como motoboy.

“Eu vou até o final, mas vou provar que meu filho é inocente”, declarou Janete, mãe do rapaz.

O que diz a polícia

A Ponte encaminhou as imagens que obteve dos prédios mencionados, solicitou entrevista com a delegada e os PMs, bem como questionou sobre o auto de reconhecimento e a ausência de informações sobre o crime e aguarda uma resposta.

O que diz o Ministério Público

A reportagem solicitou entrevista com o promotor e questionou sobre a investigação do caso, mas não houve retorno.

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