Motorista está preso há cinco meses acusado por roubo ocorrido enquanto trabalhava

Julio Damasceno estava em uma adega em SP em junho de 2021 quando foi preso junto com outras três pessoas e acusado de roubo e tráfico; policiais civis alegam ter encontrado drogas no local, mas vídeo não registra apreensão

Motorista de aplicativo Julio Cesar Damasceno de Souza, 30, está preso desde o dia 28 de julho de 2021 no CDP de Pinheiros. | Foto: arquivo pessoal

Há quase seis meses, a rotina da família do motorista de aplicativo Julio Cesar Damasceno de Souza, 30, mudou completamente. Desde que ele foi preso no ano passado, Ana Caroline Alencar de Lima e Silva lida com a falta do marido ao mesmo tempo que luta para provar a inocência dele em dois processos: uma acusação por tráfico de drogas e outra por roubo.

Era a tarde do dia 28 de julho de 2021 quando Julio decidiu encontrar a esposa que voltava do trabalho em uma adega na Rua Professor João de Lorenzo, no Jardim Arpoador, zona oeste da capital paulista, para ir buscar a filha mais nova na creche localizada no bairro. Ele estacionou o carro do outro lado da rua, entrou na adega e um tempo depois soube que sua esposa havia chegado.

As imagens da câmera de segurança do estabelecimento registraram quando o motorista se despediu de Matheus Souza de Figueiredo, motoboy de 22 anos, retornou ao veículo por volta de 16h30, e logo foi surpreendido e detido pelos policiais civis do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais). Nesse momento, os policiais também abordaram o atendente da adega Daniel Semionato Ribeiro, 26 e alegaram que foram até o local realizar diligências após receberam uma denúncia anônima sobre tráfico de drogas de três suspeitos que teriam praticado um sequestro-relâmpago na região contra uma escrivã da Polícia Civil no dia 20 de julho.

Segundo o boletim de ocorrência assinado pelo delegado Fillipe W. Arco Verde M. Paiva, a vítima relatou que foi abordada por dois homens próximo à Rodovia Raposo Tavares e forçada a entrar no carro que havia acabado de estacionar. Um dos assaltantes assumiu a direção e o outro, que estava armado, fez ameaças. Ainda de acordo com o relato, os assaltantes realizaram uma chamada de vídeo com um terceiro suspeito enquanto percorriam as ruas dos bairros Jardim João XXIII e Jardim Paulo VI.

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Foram levados o carro, o celular, o distintivo, os documentos, incluindo a carteira funcional de escrivã, cartões e R$ 300 em espécie. O caso foi encaminhado para a Delegacia de Investigações sobre Roubos e Furtos de Veículos (Divecar) do Deic e a investigação é assinada pelos policiais Denis Kapitanovas e Manoel Francisco dos Santos Junior, ambos presentes nas diligências.

Ainda na tarde do dia 28, os policiais localizaram e detiveram o motoboy Matheus no mesmo bairro e momentos mais tarde o jovem Lucas Gomes Tavares de Moura, 26, apontado como um dos envolvidos no roubo. Na imagens, de dentro da adega, é possível ver que um dos policiais retira duas placas de carro do local e outro desliga a câmera do escritório.

Na versão policial, teriam sido encontrados “seis tijolos de maconha” no comércio e, durante diligências na casa de Matheus, foram apreendidos uma pistola semiautomática calibre .380, arma semelhante à utilizada no crime, e “treze tijolos de maconha”. Foi decretada a prisão em flagrante de Julio, Daniel e Matheus por supostamente estarem em posse da maconha. Junto com Lucas e seu irmão Luan, eles foram levados ao 75º DP (Jardim Arpoador) onde participaram de um reconhecimento.

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De acordo com o processo, a vítima reconheceu “com clareza” que Lucas seria o suspeito que estava armado, Matheus o que conduzia o veículo e Julio o que participou da chamada de vídeo. A vítima ainda apontou Daniel como sendo um quarto suspeito que teria se encontrado e conversado com Lucas em certo momento do sequestro.

Ao contrário do que prevê o artigo 226 do Código de Processo Penal, que diz que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança”, os cinco rapazes, com características distintas, foram colocados juntos.  

Apesar disso, a juíza Luciana Menezes Scorza do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) converteu a prisão temporária dos quatro rapazes em preventiva, onde seguem presos no CDP IV de Pinheiros. Em 10 de agosto, o promotor Cassio Conserino denunciou Julio, Daniel, Matheus e Lucas pelo roubo.

Defesa e família dizem que prisão foi forjada

Em entrevista à Ponte, Ana Carolina reitera que o marido não tem envolvimento com as acusações, não tem antecedentes criminais e relata como tem sido a rotina nos últimos meses. Ela conta que no dia do sequestro Julio estava indo até Cotia, na Grande SP, buscar uma passageira a pedido da irmã dele e que agora aguarda a perícia no celular do marido para poder provar com prints da conversa e do aplicativo.

Ana também contesta a versão dos policiais sobre o momento da prisão e a apreensão de drogas. “Eles levaram a gente para a delegacia e lá eles faziam ameaças porque eles queriam que a gente entregasse um menino chamado Lucas, que a gente não tinha conhecimento sobre quem era”. Segundo ela, o marido frequentava a adega por jogar futebol com os amigos no bairro.

A ausência de Julio é sentida também pelos filhos do casal, de 4 e 6 anos. “Eles perguntam do pai toda hora. Tentamos até esconder deles no início, mas foi uma coisa difícil porque ele nunca ficou fora de casa, longe das crianças”, lamenta. “A minha menina tem dia que pergunta muito dele e é o dia que geralmente ela acaba tendo febre, chamando pelo pai de noite”.

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“É difícil imaginar ele lá dentro, porque o Julio é uma pessoa cheia de vida. Gosta muito de fazer festa em casa, com a família, churrasco com os amigos. O negócio dele era muito isso: família e futebol”, relembra. Ana diz que precisou trancar a faculdade e ficou desempregada um tempo depois da prisão de Julio, principal fonte financeira da família.

Desde então, familiares e amigos tanto de Julio quanto de Daniel, que também é apontado como inocente, tentam reverter a situação deles. A atual advogada de defesa de Julio, Luzia Diniz Vieira, acredita que os policiais saíram do estabelecimento sem apreender a suposta droga, a partir do que indica as imagens da câmera de segurança e as testemunhas que presenciaram a abordagem.

Luzia diz que Matheus teria confirmado a ela o envolvimento no sequestro. “Eles identificaram quem, de fato, participou do sequestro, que é o Matheus. Mas, para prendê-lo, os policiais montaram uma campana fraudulenta, falsa e alegam ter encontrado drogas em um local de trabalho. Ali foi uma situação criada, para prender a qualquer custo”.

Com o pedido da revogação da prisão preventiva negado, Luzia entrou com um pedido de habeas corpus no fim do ano passado. No entanto, a petição também foi negada por conta da supressão de instância, ou seja, a decisão não poderia ser tomada antes que o juiz de primeira instância analisasse as provas. Agora, a defesa aguarda a audiência do processo do tráfico de drogas, que está marcada para o próximo dia 20, para tentar a absolvição de Julio e unir provas para o processo do sequestro.

Contradições e reconhecimento irregular

A advogada criminalista Débora Nachmanowicz de Lima, que integra o Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), analisou o processo do roubo a pedido da Ponte e apontou contradições: “no relatório de investigação, o número de envolvidos no sequestro vai de três para quatro pessoas”.

Em outro ponto, o relatório diz o irmão de Lucas foi levado para a delegacia para o reconhecimento. “Eles não deveriam ter colocado alguém que não tenha a ver com nenhuma suspeita. Eles colocaram cinco pessoas, sendo que pelo menos quatro eram apontados como suspeitos. Eles deveriam ter colocado um de cada vez com outras pessoas parecidas”, explica.

Débora também chama atenção que a descrição das características dos suspeitos pela vítima tenha ocorrido apenas momentos antes do reconhecimento e sem detalhar como foi o procedimento. Segundo ela, “tem um problema no reconhecimento e tem um problema de um interrogatório informal”, quando os policiais alegam que Julio, Daniel e Matheus teriam apontado “espontaneamente” o envolvimento de Lucas no caso.

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Os policiais também alegaram que teriam abordado três indivíduos e um deles, o Matheus, teria fugido. Segundo ela, os vídeos da câmera de segurança mostram uma situação diferente. “A gente vê que Matheus vai embora e que momentos depois, os policiais abordam Julio do outro lado da rua e Daniel dentro da adega”.

Para a advogada, casos como este continuam acontecendo porque “a Polícia Civil trabalha com dado de suposta eficiência, de número de prisões, apreensões por exemplo, que levam a bonificações, gratificações”, ressalta. “Esse princípio de gerencialismo e de eficientismo que acaba a levando a esse tipo de atitude”.

O que diz a SSP, o MP e o TJ

A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública sobre as medidas adotadas para evitar as prisões injustas e sobre o processo de reconhecimento do caso. A pasta encaminhou o seguinte posicionamento:

O caso citado foi investigado, concluído e relatado à Justiça pela 2ª Delegacia de Polícia de Investigações sobre Crimes Patrimoniais de Intervenção, Roubos e Receptações de Veículos e Cargas – DIVECAR, unidade especializada do Deic. Eventuais questionamentos sobre o processo devem ser direcionados ao poder Judiciário. Ao contrário do que sugere a reportagem, ao longo do trabalho investigativo são adotados diferentes procedimentos de polícia judiciária, como oitiva de testemunha, análise de imagens, exames periciais, técnicos entre outros necessários à comprovação da autoria criminal. Todos eles de acordo com as leis vigentes no país”.

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A reportagem também questionou o Ministério Público e o Tribunal de Justiça sobre os procedimentos adotados na prisão. O MP diz que não irá se manifestar pois “o caso solicitado corre em segredo de justiça decretado pelo judiciário”. Já o TJ diz que “não emite nota sobre questões jurisdicionais”.

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