Movimento Mães do Cárcere denuncia morte e tortura em presídio do interior de SP: ‘A impunidade reina’

    Matheus Felipe Siqueira Silva, 22 anos, morreu após demora no atendimento médico dentro da Penitenciária 1 de Potim. Familiares também relatam agressões, comida estragada e outras violações no mesmo presídio.

    Matheus Felipe tinha 22 anos | Foto: Arquivo pessoal

    Matheus Felipe Siqueira Silva, 22 anos, sonhava em fazer faculdade de educação física. Esse amor começou ainda na infância e ele sempre gostou muito de praticar esportes. Mas sua vida mudou completamente em 15 de novembro de 2016 quando ele foi preso, 75 dias depois de completar 18 anos. Em 29 de janeiro, o jovem morreu após demora no atendimento médico no presídio.

    Morador de Praia Grande, litoral sul do estado de São Paulo, Matheus ficou preso no Centro de Detenção Provisória de Praia Grande até ser transferido para a Penitenciária 1 de Potim, interior de São Paulo, distante 250 km de sua cidade, após ser condenado a 18 anos por latrocínio (roubo e morte), pela morte do seu comparsa em um assalto à casa de um policial militar.

    Nos quatro anos que ficou preso, Matheus se arrependeu de ter tentado roubar aquela casa em 15 de novembro de 2016. Decidiu, então, estudar para mudar seu destino. Concluiu os estudos dentro do cárcere, fez cursos de capacitação e tentava realizar o sonho de fazer sua faculdade. Chegou a passar na prova para ser professor assistente, mas a pandemia do coronavírus atrapalhou isso, já que as aulas foram suspensas.

    2021 não começou da melhor maneira para Matheus. Na última segunda-feira de janeiro (25/1), acordou queimando em febre e dor no corpo, chegou a desmaiar de tanta dor. Os colegas de cela, então, começaram a fazer barulho para que ele fosse levado para enfermaria. Depois de algumas horas, ele foi atendido e medicado com benzetacil. Voltou para a cela na sequência, mesmo sem ter melhorado.

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    A primeira parada cardiorrespiratória de Matheus aconteceu dentro da cela, pouco depois de retornar da enfermaria. Foram dias de desespero para ele e para os colegas de cela, que insistiam por um novo atendimento. Os funcionários de da P1 de Potim levaram Matheus novamente para a enfermaria na quarta-feira (27/1) por volta das 12h, mas só no dia seguinte (28/1) às 15h, ele foi levado para o Pronto Socorro da Santa Casa de Aparecida. Na noite de 29 de janeiro, às 22h39, Matheus não resistiu e morreu.

    Essa história foi narrada para a dona de casa Rachel Siqueira Silva, 44 anos, mãe de Matheus, pelos colegas de cela do filho, que conseguiram enviar as informações pelos familiares. Por quase três anos, a P1 de Potim foi o endereço de Matheus. Dona Rachel só ficou sabendo do estado do filho caçula poucas horas antes de ele morrer. Nem deu tempo para ela chegar em Aparecida.

    À Ponte, dona Rachel conta como foi a conversa com os médicos que atenderam o filho caçula na Santa Casa. “O médico me disse que a reação alérgica aconteceu porque, quando ele foi atendido, a infecção já tinha tomado conta de todo corpo dele. As duas pernas dele estavam inchadas e vermelhas”.

    “Ele disse que o meu filho já chegou lá em um estado muito grave, que não se tinha muito o que fazer. O médico me disse que a situação que ele chegou era tão grave que ele deve ter começado a passar mal antes de segunda-feira. Os meninos do raio 4 me falaram que já fazia mais de uma semana que ele estava mal, com dor no abdômen”, lamenta.

    Dona Rachel também ouviu do médico que, se seu filho tivesse sido atendido mais cedo, ele ainda poderia estar vivo. “Assim que ele chegou foi intubado e teve mais duas paradas cardíacas. Morreu na quarta vez. O presídio não me comunicou sobre nada, eu fiquei sabendo por uma mãe que recebeu o recado por e-mail”.

    Matheus durante chamada de vídeo, durante visita online,com dona Rachel em outubro de 2020 | Foto: Arquivo pessoal

    Dona Rachel ficou sabendo da morte do filho 00h22 do sábado (30/1). Saiu de casa, em Praia Grande, e chegou por volta das 5h em Aparecida. Lá ficou sabendo que o presídio não havia informado para o hospital que o filho estava há dias passando mal e que já havia sido medicado.

    A causa da morte de Matheus ainda não foi determinada, pois falta o resultado do teste do coronavírus. A família suspeita de pneumonia ou tuberculose. “O médico disse que pode ser pneumonia porque o pulmão dele tava todo tomado, mas que podia ser Covid”.

    “Não é Covid. Se fosse Covid eles teriam que ter isolado o raio 4, não era pra ter visita nem sábado nem domingo. Ele tinha feito dois testes rápidos que deram negativo. O novo teste ainda não tem resultado. O relatório médico só vai ser liberado quando sair o teste”, aponta Rachel.

    O médico sanitarista Daniel Dourado, advogado e integrante do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da USP (Universidade de São Paulo), aponta que, pelo relato, a situação demonstra omissão por parte do Estado.

    “Esse relato dá um panorama de omissão de socorro. Demoraram muito para levar o rapaz para o atendimento. Em situações de urgência, um minuto, uma hora, pode ser definitiva”, pondera.

    Para Dourado, o sistema em si prejudica muito o cuidado com a saúde dos aprisionados. “É uma estrutura feita para moer gente, destruir as pessoas que estão ali. É a forma como o encarceramento é visto na sociedade, há um fetiche pela prisão. Aglomerar as pessoas lá dentro, tirar do convívio social, quando na maioria dos casos poderia estar prestando outro tipo de pena”, acredita.

    Segundo dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), datados de 4 de fevereiro de 2021, 133 presos morreram de Covid no país. Foram feitos 194.473 testes. O total de infectados é de 42.952 e 40.271 recuperados. No estado de São Paulo, são 35 óbitos, 11.723 infectados e 11.648 recuperados

    Enterrado como suspeita de Covid, Rachel só teve dois minutos para olhar para Matheus antes de se despedir para sempre do filho caçula. “Meu filho errou, mas estava cumprindo a pena dele. Ele ajudava muito as pessoas lá dentro, principalmente os presos que não tinham famílias, visitas”.

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    “Nada vai trazer o meu filho de volta, mas o que eu puder lutar para que outras pessoas não passem pelo que estamos passando… É diferente você saber que seu filho ficou doente e foi para o médico ser atendido. O caso do meu filho foi negligência. Eles omitiram socorro para o meu filho”, denuncia.

    “Eu nunca tirei a culpa do meu filho, nunca, mas ele tinha a vida toda pela frente. Ele me mandou uma carta em 6 de dezembro que só chegou no sábado (30/1). Ele pedia desculpa, falando que se arrependia de fazer a gente passar por isso. Parecia que ele tava se despedindo de mim”, completa Rachel.

    Tortura, comida estragada e abuso de poder

    A situação dentro da P1 de Potim é das piores, diz o movimento Mães do Cárcere. Andrelina Amélia Ferreira, conhecida como Andreia MF, idealizadora do movimento, conta que os presos enfrentam abuso de poder, desrespeito, agressões físicas e verbais, insultos, descasos e injustiças dentro da penitenciária.

    Segundo a denúncia, baseada em uma carta escrita pelos presos, o diretor da unidade, Fernando Lopes, proibiu o uso das redes artesanais nas celas, que deveriam comportar 12 pessoas, mas têm entre 33 e 36 pessoas. Desde segunda-feira (1/2), o GIR (Grupo de Intervenção Rápida), conhecida como a polícia da cadeia, tem entrado na unidade para bater, ameaçar e jogar fora itens pessoais dos presos.

    “O sistema, em geral, dificulta a reabilitação do preso. Eles estão aí para isso: prejudicar. Estamos vendo muitas mães e esposas perdendo os seus lá dentro, não só em Potim, mas em outras penitenciárias de São Paulo. A gente nunca teve liberdade, o sistema nunca foi feito para reeducar as pessoas”, aponta Andreia.

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    A reportagem conversou com algumas familiares, mas os nomes serão preservados a pedido das entrevistadas. Uma das esposas, que esteve na visita do último fim de semana, contou como estão as coisas. “Meu marido relatou que estão ficando sem comida, a refeição da parte da noite não tem. Quando tem, a comida vem estragada e vem com bicho. Eles têm que olhar se não tem nada que machuque”.

    “Estão negando atendimento médico quando algum preso passa mal. Meu marido também relatou que, quando entra o GIR, eles destroem as coisas deles, jogam as coisas no chão, colocam sabão em pó em cima, jogam água, pisam em cima das roupas. Batem neles também. Eles estão pedindo socorro e nós também, já não sabemos mais o que fazer”, continuou.

    “Não é de agora que está acontecendo isso, faz tempo que eles tão pedindo socorro, estão pedindo ajuda. Eles estão presos, tem que pagar pelo que fizeram, mas é um direito deles… eles já estão pagando de ficar longe da gente. Não é certo ficar sem comer. Eles têm que aprender para sair de lá pessoas melhores, mas não é isso o que está acontecendo”, completou.

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    Outra familiar, que visita o marido há quatro anos na unidade, relatou que a situação é “desumana”. “Os agentes oprimem os presos, ameaçando eles de deixar eles sem visita e sem sedex, sem contato nenhum. Estamos sem saber o que fazer, estão demorando pra entregar o sedex quando chega na unidade e muitas das coisas que a gente manda chega estragado, como o pão, que chega a embolorar. Eles estão passando fome”.

    Outro lado

    A reportagem procurou a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo, questionando a situação do presídio e pedindo entrevista com o diretor da unidade. A pasta encaminhou a seguinte nota*:

    As informações não procedem.  A Secretaria da Administração Penitenciária informa que o preso Matheus Felipe Siqueira Silva estava internado na Santa Casa de Misericórdia da região desde o dia 28/01. A causa da morte, ocorrida em 29/01, foi atestada como Choque Séptico, Pneumonia e Sindrome Respiratória Aguda Grave. Sendo realizado o exame para verificação de covid-19, que deu negativo.

    Em relação as demais denúncias contra a Penitenciária I de Potim esclarecemos que o Grupo de Intervenção Rápida não comparece a unidade desde 2016, o que por si só já invalida as denúncias de agressão do GIR, tendo em vista que fazem pelo menos 4 anos que ele não vai até o local.
    Em todas as unidades da Pasta são servidas pelo menos três refeições (café, almoço e jantar) diariamente. A alimentação é balanceada e segue um cardápio previamente estabelecido e devidamente elaborado por nutricionistas. Os jumbos, devido a pandemia, devem passar por um período de três dias de quarentena antes de serem entregues, para que evite possíveis contaminações.

    As televisões e rádios são constantemente vistoriados na unidade, para verificação dos lacres de segurança, porém não há registros de retiradas dos televisores e rádios dos pavilhões.

    Já em relação as redes, confeccionadas irregularmente pelos sentenciados com materiais inadequados, ocasionam danos as portas das celas, pois são amarradas no local e com o peso dos sentenciados levam ao seu empenamento, danificando o sistema de automação, abertura e fechamento, podendo comprometer a segurança da unidade, e colocar em risco a integridade física do próprio preso, que pode cair. Salientamos ainda que são fornecidos colchões para todos os presos da penitenciária.
    A PI de Potim está funcionando normalmente, dentro dos padrões de segurança e disciplina da SAP.

    *Reportagem atualizada Às 9h36, de 6/2/2021, para inclusão de resposta da SAP.

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