Mudar sede da Ouvidoria da Polícia de SP vai inibir denúncias, afirma ouvidor

    Órgão que fiscaliza polícias mudaria para prédio da Secretaria de Segurança Pública; defensores de direitos humanos repudiam proposta

    Prédio da Secretaria de Segurança interditado pela PM durante ato do Movimento Passe livre em 30 de janeiro deste ano | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    O plano de mudar a sede da Ouvidoria da Polícia de São Paulo para uma sala no segundo andar do prédio da SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública) do estado, na rua Líbero Badaró, é alvo de críticas de entidades que muitas vezes direcionam, ou até mesmo acompanham, pessoas vítimas de violações da polícia para fazer denúncias no local. Os termos “intimidação” e “independência” foram os mais lembrados por quem está encarregado a auxiliar vítimas da violência policial.

    A determinação partiu da pasta da segurança pública, sob o comando do general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB).

    Nem mesmo o ouvidor Elizeu Soares Lopes aprovou a ideia. Nesta terça-feira (10/3), a assessoria de imprensa do órgão divulgou o seguinte texto: “o ouvidor da polícia, Elizeu Soares Lopes, já manifestou ao secretário de Segurança Pública sua contrariedade com relação à mudança da sede da Ouvidoria para o mesmo prédio onde funciona a secretaria, pois entende que isso iria inibir denúncias contra policiais”.

    O comunicado ainda ressalta que o “secretário entendeu a preocupação do ouvidor e, neste momento, Ouvidoria e Secretaria de Segurança Pública buscam uma alternativa à mudança”. A nota também afirma que o imóvel atual “não é adequado e necessita de profundas reformas”.

    A proposta de tirar a ouvidoria do prédio localizado na Rua Japurá, bem perto da Câmara dos Vereadores, no centro da capital paulista, é antiga. Na antiga gestão, inclusive, Benedito Mariano chegou a encaminhar à SSP-SP uma sugestão para que ela fosse o menos radical possível.

    Mariano conta que, na época, foi informado que o governo queria dar nova destinação ao prédio onde a Ouvidoria está sediada há 15 anos. “Evidente que é melhor o órgão de controle social da atividade policial estar em local próprio, específico da Ouvidoria da Polícia, mas o órgão não tem orçamento e depende 100% do gabinete da SSP para efeito de suporte administrativo”, sustentou o ex-ouvidor.

    Segundo Mariano, a forma que encontrou para que ainda houvesse uma mínima independência foi a de “solicitar ao chefe de gabinete, por ofício, que garantisse uma recepção própria na entrada do imóvel para que não inibisse as pessoas que vão fazer denúncia pessoalmente”.

    A Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, uma das entidades que mais encaminham vítimas de violência para formalizar denúncias ao órgão, entende que o trabalho de convencimento do denunciante será seriamente prejudicado. “Isso vai ser um absurdo. Nós não vamos ter mais Ouvidoria”, explicou Marisa Feffermann, uma das articuladoras da Rede.

    “Considerando que, na verdade, as pessoas têm muito medo, e com razão, desse Estado genocida, nós temos um processo muito grande de convencimento para levar as famílias. Isso já na Ouvidoria, que é um prédio totalmente independente. Num local onde estão os policiais que os agridem, que os matam, é impossível”, lamentou.

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    Marisa ainda cita um exemplo recente para reafirmar a postura da Rede. “A gente teve uma reunião com o ouvidor das polícias e tinha um policial militar lá do lado. Quando a gente percebeu, todo mundo ficou muito preocupado, porque tinha a presença de um policial. Imagina na Secretaria de Segurança Pública”.

    Quem também entende que a mudança é muito prejudicial e é um sinal de “perda de independência e autonomia”, é o advogado e conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) Ariel de Castro Alves. “Isso pode inibir as vítimas e familiares de procurarem a Ouvidoria. Muitas vezes, as vítimas procuram a Ouvidoria por temer ir direto numa delegacia ou na corregedoria”, pontuou.

    O defensor, que também já encaminhou vítimas de violência policial para contar o que sofreram, pondera que um resultado prático da mudança será a queda na quantidade de relatos.

    “Com essa mudança, a ouvidoria pode ser vista com desconfiança pelas vítimas e familiares. Já que essas pessoas não são vítimas do policial A ou B e sim de uma política de Estado que visa a criminalização, violência e extermínio de jovens pobres”. Ele também ressalta que a decisão irá afetar até mesmo agentes públicos. “Policiais que queiram denunciar irregularidades de forma anônima certamente não irão no prédio da Secretaria de Segurança”.

    Assim como Marisa Fefferman e Ariel de Castro Alves, as Mães de Maio, outro órgão que atua alinhado à Ouvidoria no que diz respeito ao combate da violência policial, também crítica a mudança de endereço. “Para nós é uma piada. Ela não tem que ser vinculada a nada. A Ouvidoria ligada a Secretaria de Segurança Pública vai fazer que ela seja bem limitada”.

    Para Débora Maria, outros movimentos menores podem sim se sentir intimidados em levar uma denúncia para órgão. “Eu acredito que o movimento das Mães não vai se intimidar, mas outros movimentos podem sim. Eles querem que a Ouvidoria não funcione. Isso jamais vamos aceitar. É a mesma coisa que mandar a raposa tomar conta do galinheiro”, comparou. “A gente repudia mais uma ideia de desmantelamento de um órgão que beneficia a população”.

    Débora exemplifica a crítica ao citar um episódio testemunhado por ela, que dificilmente conseguiria ser feito nas dependências da Secretaria de Segurança Pública. “Funari [Antônio Funari, ex-ouvidor] na época dos Crimes de Maio [em 2006] foi combatente. Pedi explicação sobre quem apagou o sistema do Copom, o registro do 190, que na época não registrou os chamados. O Comando da PM se explicou que estava quebrado. Provamos que as declarações eram mentirosas, porque o nome do meu filho foi consultado 23 vezes. Funari continuou a cobrar. Esse é um exemplo de para que deve servir a Ouvidoria”.

    Antecessor de Mariano no cargo de ouvidor, Júlio César Neves analisa que a mudança é uma forma de esvaziar a ferramenta de controle policial. “Estão querendo deixar a Ouvidoria subserviente a eles. Como que um denunciante vai num lugar cheio de polícia?”

    Para Neves, o novo ouvidor Elizeu Soares Lopes ficará “tolhido” se realmente tiver que mudar para o prédio da Secretaria de Segurança Pública. “Ele vai se encontrar várias vezes com policiais que estão sendo denunciados. É um constrangimento total”, completou.

    Questionada através de sua assessoria de imprensa privada, a InPress, a SSP-SP declarou, em nota, que “até o momento, não há definição sobre isso”.

    Reportagem atualizada às 19h52 do dia 11/3 para incluir posicionamento da SSP-SP sobre a mudança de sede da Ouvidoria da Polícia de SP

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