Homem colocou a mão entre a mochila e o corpo de Mirian Bottan, de 28 anos, para apalpá-la; promotora analisa: ‘é um machismo estrutural, cultural, arraigado’
Na manhã da última terça-feira (4), quando os termômetros de São Paulo atingiam a marca de 27ºC, a jornalista Mirian Bottan, de 28 anos, ficou num dilema na hora de escolher a roupa que utilizaria durante o dia. Ficou entre um short e uma calça legging. O receio: andar na rua e conviver com “a covardia nojenta que nos espera a cada esquina, a cada grupo de amigos parados numa calçada por onde temos que passar”. Ela queria “cobrir o máximo possível”, para tentar fugir de olhares e comentários abusivos. Não deu certo. “Eu sempre penso isso porque se tornou comum. E sempre reajo. Grito, xingo. Dessa vez, não pude fazer nada. Foi uma covardia nojenta o que aquele cara fez”, afirmou à Ponte Jornalismo.
Ela acabou escolhendo a legging “porque, no final das contas, cobria mais”. Segundo a jornalista, por volta das 12h, ela voltava para casa em um ônibus que faz a linha entre a Barra Funda e a Vila Madalena. Quando o coletivo parou no ponto, na avenida Pompeia, zona oeste da cidade, um homem, que estava lhe “secando” e sentado, colocou a mão entre sua mochila e seu corpo para apalpá-la. “Só senti ele encostado em mim quando a porta abriu, ele fez de propósito. Eu nunca pensei que o cara poderia fazer isso. Ele aparentava ter entre 25 e 30 anos, estava de camisa social, indo ou voltando do trabalho aparentemente. Não ia desconfiar que um cara desse ia passar a mão na minha bunda”, afirmou.
“Eu só gritei ‘o que você tá fazendo?’, dei um empurrão nele e tive que descer do ônibus. Na calçada, eu perguntei se ele era louco. Ele desviava o olhar e ficava com uma expressão irônica. Ninguém, absolutamente ninguém, fez nada. Nem foi falar com ele, nem comigo. Dentro do ônibus, todos ficaram só me olhando. Na calçada, o ponto estava lotado e ninguém também fez absolutamente nada. Me senti humilhada, fui para casa, chorei e desabafei no Facebook”, disse à reportagem. O post escrito por Mirian tem, aproximadamente, 2,7 mil curtidas e 500 compartilhamentos.
Não foi a primeira vez que Mirian sofreu esse tipo de abuso. Há cerca de dois anos, quando ela estava em um evento movimentado de São Paulo, andando de mãos dadas com o namorado, um rapaz passou a mão em suas nádegas. “Meu namorado quis ir para cima dele, mas os amigos que estavam com ele falaram que ele estava bêbado e sem noção do que fazia. Como se estar bêbado é uma desculpa para um homem fazer o que bem quiser com uma mulher”.
Em nota, a SPTrans, que administra as linhas de ônibus municipais de São Paulo, afirmou que, em situações como esta, a orientação é de que a vítima comunique o fato imediatamente ao motorista. “Assim, os motoristas conduzem o ônibus até a delegacia de polícia mais próxima para que a vítima registre um boletim de ocorrência e, também, receba amparo das autoridades policiais que tomarão as providências necessárias”.
Mirian disse que essa hipótese nem passou por sua cabeça. “A gente vive em uma sociedade que, recentemente, no Rio de Janeiro, 60% das pessoas acham certo um metrô passar por cima de um corpo para que elas não tenham sua viagem atrasada. Imagina se um motorista de ônibus vai desviar seu caminho e ir à delegacia porque um homem passou a mão na bunda de uma mina?!”, diz.
Ela conta que tem amigas que também já sofreram abuso e que é difícil para uma mulher ir à delegacia registrar esse tipo de ocorrência. “Já teve grupo de policiais que me cantaram na rua. Se eu for na delegacia, vão jogar a culpa para a minha roupa. Talvez eles até pensem que, se tivessem no lugar do cara, fariam o mesmo. Nem a delegacia da mulher funciona, imagina uma delegacia comum?!”.
A SPTrans diz, ainda, que realiza campanhas preventivas contra qualquer ato de violência e discriminação nos ônibus, terminais e em seus perfis nas redes sociais. “No site da Polícia Militar há uma Manual de Segurança do Cidadão que contém recomendações e dicas de segurança em geral, inclusive no interior das Conduções”, afirma o órgão.
“Machismo público, cultura patriarcal”
“A história desta mulher reflete um dos pontos mais sensíveis de toda a problemática que envolve a Lei Maria da Penha. É o machismo público, a cultura patriarcal em que vivemos”. A análise concedida à Ponte Jornalismo é de Fabíola Sucasas Negrão Covas, promotora da Justiça do MP-SP (Ministério Público de São Paulo) e integrante do grupo de atuação especial de enfrentamento à violência doméstica da Promotoria. “Eu sou mulher e tenho que lidar com isso também. Nós, mulheres, ou mesmo nós todos, homens, mulheres, crianças, seja lá a raça que for, a idade, etc., somos machistas sim. É um machismo estrutural, cultural, arraigado”, afirmou.
“Quando culpamos alguém por isso, jogamos para a sociedade, como se não fizessemos parte dela. Na história, vemos que a mulher se preocupa com sua forma de vestir justamente em face do risco que pode correr por ter seu corpo mais, ou menos coberto. É o que aprendemos, pois se não nos cobrirmos, corremos o risco de sofrer violência sexual. Aprendemos que, se bebermos demais, corremos o risco de sofrer abuso sexual. Aprendemos que, se usarmos uma roupa um pouco mais decotada no trabalho, nosso chefe pode nos assediar. Aprendemos que, antes de sermos mulheres, somos objeto.
Nossa liberdade encontra o limite da libido masculina, como se o homem fosse incapaz, como um animal irracional, de controlar seus desejos, e como se a mulher, caso queira ser verdadeiramente livre, pague o preço da violência. Sim, violência porque se não há consentimento, se existe o “não” da mulher, ninguém pode avançar e violar sua sexualidade, sua honra. É direito, reconhecidamente nobre. Sua violação é considerada grave, fere os direitos humanos das mulheres. As violações às liberdades sexuais das mulheres penetram num universo muitas vezes incorrigível, que é o mal psicológico. São violações que não se restringem ao momento de sua prática.
Não se restringem ao ataque no ônibus, ao toque nos seios, à conjunção carnal, etc. Ferem a alma. Invadem um território íntimo, particular, único. A cada pesadelo, um novo trauma, uma sombra que persegue a memória da mulher. É compreensível que, na história, a mulher tenha ficado extremamente assustada. Ela saiu de casa e pensou no risco. Viu o homem e pensou no risco. O risco aconteceu e nada mudou à sua volta. Sua única defesa foi ir embora. O ônibus partiu e só restou o trauma.
Sob o ponto de vista jurídico, há sim o que fazer. Primeiro, o registro da ocorrência. Tudo bem que no caso da Mirian, dificilmente teríamos condições de identificar o agressor. Mas a investigação deve ficar a cargo do Estado. E o Estado precisa saber que violações como esta ocorrem; se não houver o registro da ocorrência, qual é a política de segurança pública a ser adotada? Nós testemunhamos inúmeras iniciativas após a deflagração dos ataques no metrô e as autoridades foram instigadas a adotar providências.
É assim que nossa sociedade funciona. E precisamos encorajar as mulheres a denunciar, a pensar que o pesadelo pode servir de instrumento para ajudar outras mulheres, para pensar que as futuras gerações poderão estar mais protegidas. Essa mulher, a da história, também deve procurar ajuda psicológica; ela deve procurar o serviço especializado mais próximo do território onde reside para eventual acompanhamento psicológico.
Compreender todo o universo machista de nossa sociedade pode ajudar a amenizar a dor, a não incutir sentimento de culpa, a racionalizar a temática e a encontrar saídas de superação do trauma. É importante que todo o aparelhamento estatal esteja envolvido nessa luta e que o mais profundo dos objetivos da Lei Maria da Penha seja efetivamente atingido: o de provocar uma mudança cultural e estrutural capaz de coibir a violência contra a mulher”.