‘Não me envolvia com política, mas fui preso e torturado pela ditadura’

    A jornalista Patrícia Paixão apresenta o relato inédito de seu pai, Cesar Pinto Paixão, sobre os momentos de terror vividos no Dops em 1970: ‘Meu heroísmo acabara após duas sessões com socos, tapas e chutes’

    César Pinto Paixão, preso e torturado na ditadura, visita o Memorial da Resistência | Foto: arquivo pessoal

    Nunca fui impedida de me expressar, nunca fui presa ou torturada por expor o que penso. Apesar disso, cresci com um enorme aperto no peito causado por algo que não vivi. Ao longo da minha infância e juventude, ao som de “Cálice” e outras canções emblemáticas de Chico Buarque, papai sentava ao nosso lado para contar sério e entristecido sobre os dias em que ficou preso no Dops-SP (Departamento de Ordem Política e Social), braço da repressão da ditadura militar de 1964 na capital paulista.

    As lembranças eram dele e meu avô sendo empurrados com agressividade para dentro da viatura modelo Veraneio da GM (General Motors), usada pelos agentes do órgão. Relatava as torturas que sofreu para dizer onde estava meu querido tio Walter, este sim ativista político contra o regime militar — ele era considerado “subversivo” — , da cela apertada, onde 18 pessoas se espremiam para encontrar um espaço pra sentar (o local tinha um único buraco no chão, improvisado como banheiro, onde todos faziam suas necessidades). Relembrava de pessoas que gemiam e outras que apareciam muito machucadas após as sessões de tortura, aumentando o clima de tensão. Os presos estavam ali há meses sem que suas famílias pudessem ter noção de seu paradeiro.

    Quando comecei a aprender sobre a ditadura nos livros escolares, me sentia extremamente chocada por saber que meu pai, meu avô e meu tio passaram na pele a violência daquele regime de exceção. Meu peito queimava e eu sentia as pancadas que nunca levei. Lamentava muito que meus familiares tivessem passado por aquilo. Já adulta, passei diversas vezes em frente ao prédio da rua Siqueira Bueno, nº 35, no Belém, na zona leste de São Paulo, onde papai e vovô foram presos. Parava em frente ao edifício e ficava tentando reconstituir aquela cena tão repetida por papai. Pensava: “Não é possível que um dia isso aconteceu!”.

    A democracia sempre foi uma bandeira inquestionável em casa e, sinceramente, nunca pensei que pudesse ouvir o discurso da volta dos militares como solução para qualquer coisa, como acontece hoje em dia. Achei que estivéssemos livres disso… Hoje, em pleno século XXI, um candidato a presidente e seu vice lideram as pesquisas de intenção de voto, ancorados em um passado tenebroso. Falam com orgulho da ditadura. Exaltam torturadores que causaram imensas tragédias nas vidas de muitas famílias. Desvirtuam os direitos humanos, questionando sua validade.

    Muito do que me levou para o jornalismo foi essa indignação constante no peito. Não posso e não devo me calar diante do que estamos observando nesse país. Em 2015, voltei com papai ao Memorial da Resistência e ele passou muito mal ao adentrar as celas que estão expostas para os visitantes. Lembrou de tudo o que passou ali. Aquele museu é um retrato impactante do terror que representou a ditadura militar e do que pode acontecer quando os direitos humanos são violados.

    A seguir, apresento o relato de papai (na íntegra) sobre os dias em que ficou preso. O mesmo texto serviu de base para a indenização que ele ganhou do governo federal, em 2002, por ter sido torturado e ter ficado mais de um ano sem trabalhar — ele teve que ficar escondido, na casa de uma tia, pois tinha medo de ser pego novamente, já que essa era uma ameaça feita textualmente pelos agentes do Dops. Detalhe: papai era de uma família muito pobre e meus avós dependiam da renda obtida pelos seis filhos.

    César, durante visita do Memorial da Resistência | Foto: Arquivo pessoal

    Convido a todos a lerem esse relato verídico e recomendo, aos que ainda não foram, que visitem o Memorial da Resistência. É preciso, sim, conhecer o passado para não repetirmos erros que podem custar nosso futuro.

    ‘Um breve relato de um momento único da minha vida’

    Meu nome é César Pinto Paixão, nascido em 1951. No dia 18 de maio de 1970, tive uma experiência amarga e única que marcou minha vida: fui preso pelo Dops-SP, órgão de repressão da ditadura militar brasileira. Eu estava com meu pai, Maurílio Pinto Paixão, nascido em 1915, porém, ele foi liberado algumas horas depois da nossa prisão — após ter sido humilhado e com o coração em frangalhos por ter deixado um filho preso, e ter que procurar por outro. Ele não sabia onde encontrar meu irmão, Walter Roberto Pinto Paixão, para me livrar da prisão. Essa era a condição imposta pelo delegado para a minha soltura.

    Antes de iniciar meu relato quero deixar claro: eu não era um subversivo e ativista político como meu irmão Walter. Era apenas um simpatizante de suas ideias, não entendia precisamente as doutrinas socialista ou comunista, porém as aceitava. Em primeiro lugar, por confiar no meu irmão e em seus ideais e também por ele ter sido meu orientador educacional. Em segundo, por acreditar que essas doutrinas poderiam melhorar a qualidade de vida da sociedade e de nossa família, meus pais e meus cinco irmãos.

    Posto isto, a experiência que passei ocorreu como relato a seguir: meu irmão, Walter, estava envolvido ativamente em um dos movimentos contra a ditadura militar (1964 a 1985), mas a Justiça não tinha certeza disso. Ele foi levado para depor no Dops para averiguação. Após um determinado tempo de conversa não agradável com os agentes e chegando perto do horário de encerramento das atividades burocráticas do órgão, o delegado combinou com meu irmão que ele poderia ir embora, mas deveria retornar no outro dia para que eles pudessem dar prosseguimento à investigação. A partir deste ponto, começaram os problemas que viriam a marcar nossas vidas. Sim, porque meu irmão, com razão, decidiu não voltar para falar com o delegado. E mais: traçou um plano de fuga.

    Ele avisou meus pais que iria fugir para não ser preso e os instruiu, em particular ao meu pai, para aguardar por pelo menos um mês antes de pedir o encerramento do contrato de aluguel e retirar os móveis do apartamento onde morava com a esposa, Neusa Cardoso Paixão, no bairro do Belém, em São Paulo. Esse prazo que ele pediu tinha como objetivo fazer o Dops esquecer do caso, algo bem improvável uma vez que eles, de alguma forma, iriam vigiar por algum tempo o apartamento. Pediu também ao Sr. Euclides (amigo da família) para esconder os livros proibidos pela censura da época. Euclides os enterrou no quintal da casa de Rosário (seu irmão). Finalmente, disse que não iria dizer para onde iria com sua esposa por uma questão de segurança e para evitar que eventualmente falássemos, pondo em risco eles e nós. Assim, os dois desapareceram.

    Modelo da cela em que César permaneceu preso no DOPS | Foto: Divulgação

    Meu pai, preocupado com o aluguel e outras despesas do apartamento que iriam vencer, ficou ansioso e decidiu não esperar os 30 dias. Seguimos então eu, ele, minha mãe (Odette Cunha Paixão, nascida em 1918), que por sua vez levou junto meu irmão José Maurilio (12 anos na época), meu tio “Negrinho” e também chamou meu tio “Nine” (Ermínio Ceroni, que possuía uma perua Kombi) e o senhor Rosário, todos como possíveis ajudantes. Fomos todos para o apartamento no segundo andar do Edifício Luzia Costa, localizado à Rua Siqueira Bueno, 35.  Meu pai falou com o zelador que prontamente nos autorizou a entrar e fazer o que fosse preciso. Deduzimos posteriormente que aquela gentileza foi devido ao fato de que os investigadores do DOPS já haviam ido até lá atrás do meu irmão e, como não o encontraram, deixaram uma ordem expressa ao zelador que, se ele ou alguém da família aparecesse por lá, eles deveriam ser comunicados imediatamente. E assim aconteceu.

    Entramos no apartamento, retiramos os móveis e os levamos para a perua. Por garantia, eu e meu pai voltamos para verificar se havia mais alguma coisa para ser retirada do apartamento. Constatando que estava tudo certo. Ao retornarmos para a perua, no hall do prédio, fomos pegos por três investigadores, bem armados, e jogados com muita selvageria e ferocidade (empurrões e coronhadas) para o porta-malas de uma perua Veraneio dos agentes do DOPS, que vieram a nos conduzir para o órgão. Meu pai, com a idade de 54 anos e que aparentava ser bem mais idoso por já ter passado por muitas cirurgias, ficou com seu aspecto ainda pior, porque quando nos colocaram no porta-malas ele tirou e escondeu suas dentaduras.

    Outro detalhe e de muita sorte foi que no momento em que eles nos colocavam dentro da viatura, minha mãe, que estava também saindo do prédio com algumas coisas, viu a situação que estava se passando conosco, pegou meu irmão e saiu do edifício, sorrateiramente. Caminhou a passos largos e nisso ela encontrou meu tio “Negrinho” e lhe disse para ir embora sem fazer alarde.

    Meu Tio “Nine”, que possuía a perua e era o motorista, e o nosso amigo, Rosário, que nos auxiliava na mudança, foram também abordados pelos investigadores, porém, alegaram que eram somente transportadores, ou seja, não tinham nenhum vínculo de parentesco ou amizade conosco. Meu tio, meses após o acontecido, sentia-se envergonhado, contudo sem razão, porque não dava para assumir uma situação de verdade ou de heroísmo com aquelas pessoas irracionais.

    Depois de todo este “rebu” que se passou no início da tarde, os três investigadores e nós partimos em direção à nossa residência na Vila Formosa, também na zona leste de São Paulo. Isso em grande velocidade. Eu acredito que esta pressa foi porque o zelador deve ter falado que tinham acabado de sair de lá outros parentes. Como queriam encontrar meu irmão Walter e seus pertences que o qualificariam como criminoso, seguiram rapidamente para a nossa casa, localizada, então, à Rua Ituri.

    Ao chegarmos lá, ficamos no porta-malas sob a observação de um investigador, enquanto os outros dois desceram e foram vasculhar a casa. Reviraram tudo, deixaram a casa de “pernas para o ar”, mas não encontraram nada. Os indícios que indicariam que meu irmão era um subversivo, tais como livros e jornais, já não estavam mais lá.

    Saímos de lá, novamente em velocidade e fomos diretamente para o DOPS. Durante o caminho não podíamos nem falar e nem se entreolhar que eles já gritavam para ficarmos quietos. Dentro da minha cabeça acontecia um turbilhão de pensamentos de todos os tipos de sentimentos: ódio e revolta por não poder me manifestar e ser maltratado; por não poder dizer “deixa o meu pai fora disso, porque ele não tem nada a ver com essa história!”; impotência por não poder fazer nada pelo meu pai; tristeza por saber que minha mãe iria passar uma situação difícil.

    Enfim chegamos. Meu pai foi encaminhado para um lado e eu para outro.  Fiquei aguardando e remoendo minha raiva. Eu penso que este tempo de espera foi para que o delegado conversasse primeiro com meu pai que, como nos disse depois, foi liberado para ir buscar meu irmão, enquanto eu ficava como refém.

    Chegou, então, minha vez de falar com o delegado. Fui levado à sua sala por um dos investigadores. O delegado foi direto e interrogou: “Onde está seu irmão?”. Eu respondi que não sabia – e realmente não sabia. Como já disse, meu irmão não nos informou para onde havia fugido ou se escondido. O delegado dissimulando certa calma, talvez para não me assustar, pediu para este investigador me levar para outro lugar onde eu pudesse refletir melhor. Esse outro lugar era uma pequena sala onde estava escrito na porta “Diligências especiais”.

    Na visita, César esteve ao lado da filha Patrícia, hoje professora de jornalismo | Foto: Arquivo pessoal

    Dentro da sala já se encontravam os dois outros investigadores, foi quando percebi que um deles era japonês. Este, inclusive, foi quem amarrou minhas mãos para trás. Depois de amarrado, os três começaram a me bater alternadamente com socos, tapas e chutes nas pernas. Batiam e perguntavam: “Onde está seu irmão?”, ao mesmo tempo em que diziam: “Vamos fazer o mesmo com seu pai”. Repetiam que, se não falássemos, iriam desaparecer conosco. Foi muito sofrimento e pavor. Meu heroísmo acabara após duas sessões como esta. Por volta das oito horas da noite, fui levado para outro local onde acabei fichado e encaminhado para a cela.

    Neste andar havia quatro celas. Fiquei na de número 3, que possuía 3 por 5 metros, aproximadamente, e continha 18 presos contando comigo. Dentre eles, um em especial me ajudou muito, me dando apoio moral e me explicando com gentileza as regras que eles se impuseram para conviver em harmonia. Seu nome era Oliver Simioni. Uma das regras da cela era: quem usasse o banheiro (um buraco no chão) tinha que limpar. Não havia camas, os colchões pareciam mais panos para forrar o chão. Também não havia chuveiro.  A comida era muito ruim, normalmente serviam uns torrões de arroz com água de feijão e uns fios de couve. Segundo eles, isso era bom demais em se tratando de comunistas.

    Eu fiquei 5 dias e 4 noites preso, porém, foi como se tivesse ficado vários meses. Isso porque, em minha opinião, esse pequeno período foi suficiente para eu criar muitas dúvidas e perguntas sem respostas, como: “Onde está meu pai? Quando irei sair? Vou embora amanhã ou…” Uns amigos diziam: “Esquece! Estou aqui há mais de 3 meses”. Outros diziam que estavam lá há 6 meses e uns há quase um ano. E depois eram transferidos para Deus sei lá onde.

    Também era terrível ficar imaginando que a qualquer momento poderiam me chamar para novos interrogatórios. Isso era comum acontecer a cada vez que chegava um prisioneiro novo e que eventualmente apontasse ou “dedasse” ou entregasse um companheiro. O clima nas celas eram de muita tensão e pavor para todos, principalmente quando vinham presos da Oban (Operação Bandeirante). Eles vinham muito machucados devido à tortura recebida, estavam realmente em péssimo estado. À noite eles gemiam muito de dor e, naturalmente, não tinha tratamento.

    No segundo dia em que estava lá, vivenciei uma situação que me emocionou muito. É até difícil descrevê-la. Foi a chegada de uns presos da Oban de madrugada, como sempre. A maioria dos presos acordou e começou a cantar, com o objetivo de recebê-los, o seguinte trecho da música do Geraldo Vandré intitulada “Pra não dizer que não falei das flores”: “Vem, vamos embora que esperar não é saber / quem sabe faz a hora não espera acontecer”. Foi um momento especial para nós que estávamos lá e para os presos que chegavam. Isso também criou em mim e nos outros um sentimento de raiva e impotência, não só por ver aqueles caras maltratados, quebrados pela tortura, mas por ter consciência de que vivíamos em um sistema injusto a ponto de não permitir a liberdade de expressão. Ou melhor, a ponto de ter que sofrer torturas para se expressar livremente.

    Finalmente, graças ao esforço incansável de meu pai e mãe, incluindo pedir a Deus com toda sua fé através da nossa comunidade espírita e fazer plantões na porta do Dops, recebi a notícia de que iria ser solto em 22 de maio de 1970, dia do meu aniversário. Eu acredito, piamente, que sair num curto espaço de tempo do Dops foi um milagre para a situação da época.

    Contudo, os problemas para mim não acabariam com a notícia que iria ser solto, pois algumas pessoas que estavam comigo naquela cela viram em mim uma oportunidade única de avisar seus parentes que estavam presos. Sim, porque o Dops não informava às famílias dos prisioneiros sobre o paradeiro deles. A forma que os detentos usaram para passar estas informações foi também humilhante. Eu tinha que escrever no meu pênis alguns números de telefone, escolhidos por eles, para que eu ligasse após estar fora de lá. O problema é que eu fiquei aterrorizado com esta ideia, porque se no momento da minha saída o carcereiro decidisse me revistar, pedindo que eu tirasse a roupa, eu estaria perdido. Teria que voltar para a cela e perderia o direito de sair. Como eu disse: eles eram irracionais, principalmente em se tratando de “comunistas”.

    Bem, eu saí daquele inferno e naquele dia mesmo comemorei meu aniversário, ainda com muito medo. Foi uma alegria imensa para meus pais. Depois de um determinado tempo — não me lembro de quanto ao certo — telefonei para os números indicados e informei às pessoas o que havia ocorrido com aqueles que me pediram para ligar.

    Passado a euforia, de estar livre, veio um medo terrível de que eles pudessem voltar. Sim, o delegado falou que, se meu irmão não aparecesse, eles iriam voltar e meu irmão até aquele momento não tinha retornado ainda. Com medo de ter que passar por aquela situação de novo, fui viver um tempo na casa da minha Tia Olívia Ceroni (tia “Fiica”, mulher do meu Tio Nine). Um ano foi o tempo que fiquei escondido e totalmente inativo…

    Em resumo, somente em 2002 foi promulgada a Lei nº 10.559/2002 – Artigo 2º, inciso VI, que me permitiu ser indenizado em razão de perseguição política e afastamento de atividade remunerada.

    (*)César Pinto Paixão, autor deste relato, hoje tem 67 anos. Ele é formado em Projetos para Criação de Máquinas pela Unesp

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas