‘Nós lutamos por vida’: o encontro de mães das vítimas mortas pelo Estado

    (*) Renan Omura

    Realizada em Goiás, quarta edição nacional reuniu familiares de nove estados para cobrar justiça do poder público e, também, buscar apoio: ‘nós precisamos falar, não podemos guardar toda essa dor ‘

    Faixa levada durante a caminhada de mães e familiares de vítimas da violência do Estado | Foto: Renan Omura/Ponte Jornalismo

    “Punhos cortando o ar mostram: não somos minoria. Hoje quilombo vem dizer, favela vem dizer, a rua vem dizer que é nós por nós”. O grito de guerra entoado por mães abriu o IV Encontro Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado. Durante os dias 18 e 21 de maio, cerca de 85 pessoas de todo país se reuniram em uma casa de retiro em Hidrolândia, cidade no interior de Goiás.

    Foram rodas de conversas sobre política de reparação para as mães, debates com autoridades locais na Câmara Municipal de Goiânia, manifestações, encontro na Câmara dos Deputados e uma audiência no MPF (Ministério Público Federal) de Brasília com a procuradora federal dos direitos do cidadão, Deborah Duprat.

    Eronilde Nascimento, 41 anos, é fundadora do coletivo Mães de Maio do Cerrado: do Luto à Luta e foi uma das articuladoras do encontro desse ano. Ela relata que a reunião é fundamental para contribuir com a formação das mães. “Queremos instruir e fortalecer elas, mostrar que as lutas não são apenas chorar e lamentar pela perda. Devemos lutar pelos nossos direitos”, explicou. Eronildes milita desde que o marido foi assassinado em uma reintegração de posse violenta na Ocupação Parque Oeste Industrial, Goiânia, em 2015.

    Jucelia Maria dos Santos, 49 anos, é integrante do coletivo Mães de Maio, e estava em sua segunda edição do evento. Ela relata que o encontro também funciona como uma terapia para as mães. “Nós precisamos falar, não podemos guardar toda essa dor. Quando eu fico muito emocionada, eu perco até a voz. Nessas reuniões nós ficamos à vontade para contar tudo”, contou. Jucelia teve o filho assassinado em 2015 e, segundo ela, policiais implantaram drogas e uma arma na mão de seu filho na cena do crime. Além das atividades programadas, o encontro ofereceu atividades artísticas, sessões de massagens e auriculoterapia.

    Eronilde, que perdeu o companheiro, morto em 2005, discursa na Câmara | Foto: Renan Omura/Ponte Jornalismo

    O IV Encontro Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado reuniu cerca de 85 pessoas de nove estados do país. Entre os participantes, homens e mulheres, de diversas idades. Maria das Graças Nacort, 73 anos, veio de Vitória, Espírito Santo, e está na luta desde 1999. Fundadora da Associação de Mães e Familiares Vítimas da Violência (AMAFAVV). Ela teve o filho Pedro Nacort, 26 anos, assassinado com mais de 20 tiros. Maria reuniu provas e após investigar por conta própria o caso, chegou a um policial militar, que foi condenado a 18 anos. “Eu falo para as meninas não desistirem. Lutar é doloroso, mas é preciso”, afirmou.

    Maria Aparecida Marttos, 61 anos, de Mogi das Cruzes, Grande São Paulo, teve o filho Diego Marttos, 33 anos, assassinado na noite do dia 31 de dezembro de 2014. Representando o coletivo Mães Mogianas, Maria relata que após os assassinatos, os familiares tiveram a saúde prejudicada. “Muitas não suportam a dor e ficam doentes. Várias delas morreram de câncer. Todo esse sentimento de dor acaba nos prejudicando, fisicamente e mentalmente. Além disso não é nada fácil lutar por justiça. No dia que fomos até Brasília, por exemplo, ficamos acordados durante 22 horas. A maioria das mães, tem mais de 50 anos. Temos que ser fortes, pois enquanto não houver justiça eu vou lutar até o fim”, concluiu.

    Na segunda-feira (20/05) um ônibus e uma van levaram as participantes até a Câmara Municipal de Goiânia, localizada no centro da cidade e a 35 km de Hidrolândia, um trajeto de 40 minutos até o local. Estiveram presentes na mesa autoridades locais e uma mãe representante de cada estado. Edna Cela (Ceará); Maria da Graça (Espírito Santo); Arlete Roque (Amazonas); Marcia Gazza (São Paulo); Luciana Lopes (Goiás); Eliene Vieira (Rio de Janeiro) e Maria do Carmo (Minas Gerais) foram escolhidas para compor a mesa. Também fez parte do debate a Presidente da Comissão dos Direitos Humanos e vereadora Cristina Lopes, a presidente do Conselho Estadual da Mulher Ana Rita, o vereador Emilson Pereira e o defensor público Tiago Gregório. A pesquisadora acadêmica Monique Cruz e a fundadora do grupo Mães de Maio do Cerrado Eronilde Nascimento mediaram as falas.

    Uma parte do encontro contou com debate junto a parlamentares em Brasília | Foto: Renan Omura/Ponte Jornalismo

    A discussão iniciou com o relato de mães que estavam na mesa. “Quem aqui não teve o direito de enterrar o filho que foi assassinado?”, questionou Arlete Roque, do Amazonas. Após apenas uma mãe erguer o braço, Arlete relatou. “Eu também não pude enterrar meu filho. Essa dor poucas pessoas conhecem”. Alex Roque, 16 anos, e mais dois jovens desapareceram depois de sofrerem uma abordagem policial no bairro Grande Vitória, zona leste de Manaus, capital do estado. Atualmente, três policiais aguardam o júri que ocorrerá em julho deste ano. “Ele não está aqui para se defender, então eu vou lutar até o fim por ele. Eu tenho direito de enterrar o meu filho. Boatos dizem que o corpo dele está no fundo de um rio, outros falam que está cimentado em algum lugar. Eu não sei, mas eu vou até o fim”, apontou.

    A discussão seguiu com as autoridades que pronunciaram sobre a violação dos direitos humanos e se solidarizaram com os casos. “A dor que vocês carregam não tem nome. Se uma mulher perde o marido ela fica viúva. Se perde uma mãe ou pai fica órfão. E quem perde um filho? Como que chama? Que dor é essa que não tem nome? Estamos vivendo tempos difíceis. Busquem formas de colocar suas vozes dentro das casas legislativas e em espaços de decisão. Faça como fez a Marielle, contem conosco para isso”, disse a vereadora Cristina Lopes (PSDB), que é vítima de violência doméstica – foi alvo de tentativa de homicídio por um ex-companheiro em 1986, aos 21 anos, tendo 85% do corpo queimado. Para encerrar o encontro, as outras mães tiveram dois minutos para falar.

    Após sair da câmara, os grupos mobilizaram-se na Praça do Trabalhador para um ato público. Com o apoio de carro de som, as mães e familiares de vítimas da violência do Estado cruzaram a Avenida Goiás e seguiram até o Palácio Ludovico Teixeira, centro de Goiânia. Munidos de faixas os manifestantes gritavam: “Hoje, quilombo vem dizer, favela vem dizer, a rua vem dizer, que é nós por nós”. O trecho faz parte de uma canção composta por Mano Teko em homenagem aos grupos de resistência.

    Outra ação envolveu relatos ao MPF (Ministério Público Federal), com mães levando seus casos | Foto: Renan Omura/Ponte Jornalismo

    Bruna da Silva, mãe de Marcos Vinicius, 14 anos, teve o filho assassinado durante uma operação policial no Complexo da Maré, Rio de Janeiro, em junho de 2018. Marcos ia à escola quando foi atingido por um tiro de fuzil. Bruna carregou o uniforme escolar do filho manchado de sangue e protestou. “Nós lutamos por vida. Estamos cansados de ver crianças sendo assassinadas em portas de escolas, isso tem que acabar. Que aqui em Goiás seja o início de uma mudança”, afirmou.

    A advogada Marinete Silva, mãe da vereadora carioca Marielle Franco, assassinada no centro do Rio de Janeiro em março de 2018, participou da manifestação. Ela relata a importância em realizar encontros nacionais de coletivos que lutam por causas semelhantes. “Esse genocídio estrutural que vivemos hoje é cada vez mais presente dentro da periferia de todos os estados. Estamos aqui com nove estados reunidos para clamar por justiça e também para que outras mães não passem por esse sofrimento. Eu fui mãe de um parlamentar e não fui isenta de passar por isso”, disse. “A Marielle era uma mulher negra e militante que lutava pelos direitos, mas assim como o periférico que é morto todos os dias pelo Estado, ela também foi assassinada. Isso não pode continuar. Por isso nós estamos aqui”, explicou.

    No último dia do encontro, (21/5), dois ônibus levaram as participantes para Brasília. As mães foram recebidas no Salão Nobre da Câmara dos Deputados para debater temas ligados à reparação às vítimas do Estado. A conversa foi mediada por Jane Barros e Nathalia Carlos, representantes do mandato da deputada federal Talíria Petrone, e Marcella Decothé, integrante do Fórum de Juventude do Rio e representante do mandato da deputada estadual Mônica Francisco.

    O debate foi composto por falas de parlamentares e mães. O deputado federal Marcelo Freixo pronunciou a respeito. “Eu também sou filho de uma mãe que, como vocês, perderam um filho pela violência policial. Não é fácil, mas vocês têm uma capacidade de superação que esse país precisa aprender. É preciso desenvolver uma política de segurança que não aumente esse número de mães e vocês estão contribuindo com isso”, argumentou. Os deputados federais Glauber Braga, Sâmia Bomfim, David Miranda e Fernanda Melchionna também falaram a respeito da necessidade de ações efetivas de justiça e denúncias ao abuso e a impunidade de crimes envolvendo ações policiais.

    No período da tarde, dez mães foram selecionadas para uma visita na ONU Mulheres. Flavia Conceio, do Movimento Moleque, foi uma das selecionadas e representou o Rio de Janeiro. “Eles nos receberam muito bem. Falamos também de nós, mães. Pedimos reparação pela nossa saúde. Uma mãe que tem o filho preso ou morto fica vulnerável a várias doenças. Todas elas sofrem preconceito da sociedade, por isso precisamos de cuidado”, disse. Enquanto ocorria a reunião um outro grupo protocolou uma carta de proposta do IV Encontro Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado na Secretaria-geral da Presidência.

    Antes da presença em Brasília, mães debateram na Câmara Municial de Goiânia | Foto: Renan Omura/Ponte Jornalismo

    O encerramento do encontro foi realizado no Ministério Público Federal de Brasília. A procuradora federal dos direitos do cidadão, Deborah Duprat, cedeu uma audiência para as mães. Estiveram na mesa as participantes Maria Tereza, Marinete da Silva, Ana Paula, Eliene Vieira, Eronildes Nascimento, Edna Carla, Ilda Alves, Bruna da Silva, Carmem Dulce e Cristiane Pinagé. A procuradora leu cartas elaboradas pelas mães, que clamavam por ações efetivas de justiça. Durante a reunião, Deborah orientou as mães com os casos. “Para as vítimas do Rio de Janeiro, que não identificaram os autores, eu sugiro que recorram a um programa no Ministério Público na parte da cidadania, não na parte criminal. Façam a denúncia naquele setor”, discursou.

    No domingo (19/5), a rede nacional de mães de vítimas do Estado, formada por uma representante de cada coletivo, promoveu uma reunião para planejar o próximo encontro. Após uma votação, foi definido previamente que a quinta edição será realizada em Fortaleza, Ceará.

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