Nova lei proíbe algemar detentas na hora do parto

    Prática era tolerada em mães presas que saem para ter o filho. 80% das mulheres presas são mães, segundo ITTC

    Foto: Imagem de documentário realizado pelo ITTC

    Uma lei que altera o Código de Processo Penal foi sancionada na quarta-feira (12/4) pelo presidente Michel Temer (PMDB) e proíbe o uso de algemas em mulheres que estejam em trabalho de parto ou tenham acabado de dar à luz. A prática era tolerada em mães que estão presas e saem para ter o filho.

    Em julho de 2014, o Tribunal de Justiça de São Paulo condenou o Estado a pagar uma indenização de R$ 50 mil a uma mulher que, três anos antes, deu à luz com pernas e braços algemados. A justificativa usada na época é que, como presidiária, ela não poderia ficar solta por oferecer risco de tentar uma fuga. A Agência Pública acompanhou e divulgou a história em duas reportagens: Maternidade condenada e Ex-detenta que ganhou processo por parto com algemas fala pela primeira vez.

    De acordo com uma pesquisa realizada em 2012 pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), chamada Tecer Justiça, 80% da população carcerária feminina é mãe. Grande parte desses filhos nasceu quando a mãe já estava encarcerada. A maioria tem pouco ou nenhum contato com a mãe. No relatório Mulheres em Prisão, também feito pelo ITTC e lançado recentemente, há um perfil sobre a mulher encarcerada atualmente: 68% são negras, 57% são solteiras, 50% tem entre 18 e 29 anos e metade tem apenas o ensino fundamental completo.

    Na Lei de Execuções Penais (LEP) e até em tratados internacionais, como o de Bangkok, parte da série de tratados internacionais da ONU em defesa dos direitos humanos, há regras que determinam que a mulher precisa, ainda que na condição de presidiária, estabelecer laços afetivos com a criança, incluindo o direito à convivência e amamentação. No texto das Regras de Bangkok, há um artigo que diz ser proibida “a sujeição a instrumentos tais como algemas, correntes, ferros e coletes de força nunca deve ser aplicada como sanção”. Isso para qualquer mulher no sistema penitenciário. Imagine para grávidas.

    Na prática, de acordo com o ITTC, muitas vezes não acontece. No caso de mulheres estrangeiras que cumprem pena no Brasil, a situação pode ser ainda mais dramática. De acordo com o ITTC, que já realizou pesquisa com esse recorte, muitas delas precisam trabalhar enquanto estão encarceradas para continuar mandando dinheiro para a família e não têm tempo de amamentar o filho recém-nascido ou de receber visitas.

    Foto: Imagem de documentário realizado pelo ITTC

    A pesquisadora do projeto “Justiça Sem Muros” do ITTC Mariana Lins e a advogada e assistente do projeto “Estrangeiras” Viviane Balbuglio responderam à Ponte Jornalismo, por e-mail, algumas questões sobre o tema:

    Como vocês avaliam a nova lei? É o suficiente para acabar com a violação de direitos no momento do parto?

    Nossa avaliação é de que, embora seja positiva a sanção, temos que considerar que era o mínimo que poderia ser feito para a garantia dos direitos das mulheres presas mães. Estamos falando de usar algemas em mulheres durante e após o procedimento de parto, prática que configura explicitamente tortura. Se o Estado brasileiro respeitasse a nossa Constituição Federal, notadamente o artigo 5º, que determina a proibição indiscriminada de tortura ou tratamento desumano ou degradante, não seria necessária uma norma específica para proibir uma prática inaceitável em qualquer circunstância como essa. Além disso, como o PL 23/2017 sancionado por Temer modifica o Código de Processo Penal vigente, devemos atentar para a inserção da proibição do uso de algemas durante e após o parto no âmbito das discussões do projeto de lei de novo Código de Processo Penal (PL 8045/10) para assegurar que a proibição expressa continue vigente.

    O decreto 57.783/2012, que consiste em evitar que mulheres ficassem algemadas no parto, já existia. Essa lei sancionada por Temer não corre o risco de ter o mesmo destino, ou seja, ser algo só no papel?

    A efetividade do conteúdo que a legislação prescreve depende de sua articulação com políticas públicas que estimulem o comportamento almejado. Dessa forma, é fundamental que haja capacitação dos profissionais da saúde (médicas e médicos, enfermeiras e enfermeiros) para que respeitem todos os direitos das mulheres durante o parto, de forma a inibir essa e outras violações de direitos, como ameaças, xingamentos e maus tratos.

    Quais os principais obstáculos para dar às presas tratamento minimamente humano quando se tornam mães?

    A principal forma de garantir o exercício da maternidade de forma plena é por meio da liberdade. Não à toa que a prisão albergue domiciliar – medida que substitui a prisão – reconhece a sobrevalorização da maternidade como hipótese para garantir a liberdade de mulheres.

    Mas sabemos que, aliado a isso, é fundamental buscar reduzir danos para muitas mulheres que continuarão presas. O cárcere tolhe a autonomia de gestantes, lactantes e mulheres com filhos pequenos para decidir sobre cuidado e criação das crianças. As dificuldades em realizar o pré-natal para gestantes e a tristeza em saber que após seis meses de amamentação – tempo mínimo, mas aplicado como regra – a convivência com seu bebê será bruscamente interrompida. Ao mesmo tempo, há que se garantir que a mulher presa não se resuma a ser mãe, possibilitando que, mesmo que cuide do bebê na prisão, possa realizar outras atividades, como trabalho e estudo.

    Vocês fizeram um estudo sobre a realidade das encarceradas estrangeiras. Vocês seguiram acompanhando isso?

    A maternidade (incluindo o direito à amamentação) é um aspecto que entrelaça a vida de grande parte das mulheres migrantes em conflito com a lei, assim como é na vida de todas as mulheres. A prisão transnacional interrompe vínculos familiares e afetos, mas ao mesmo tempo exige que mulheres migrantes presas aqui no Brasil permaneçam trabalhando durante a prisão para, por exemplo, enviar dinheiro para o sustento de suas famílias em seus países de origem ou igualmente lutem para a manutenção desses vínculos e afetos, por exemplo, através do envio periódico de cartas, desenhos, bilhetes, a fim de poder, ainda que de forma restrita, participar da vida e do cotidiano de suas famílias.

    O ITTC tem acompanhado todos os casos de mulheres migrantes gestantes, com filhos(as) na unidade prisional ou filhos(as) que estejam em situação de acolhimento institucional, focando tanto no dia-a-dia delas nas unidades prisionais quanto no acionamento de redes, instituições e pessoas que viabilizem a manutenção dos vínculos familiares e afetivos e o desencarceramento dessas mulheres.

    Essa atuação visa principalmente pensar na necessidade de se preservar o vínculo da maternidade e evidenciar que as mulheres migrantes, apesar de muitas vezes não possuírem documentos brasileiros ou residência fixa no Brasil, também devem ser destinatárias de direitos como o direito à prisão albergue domiciliar. Para isso, o nosso acompanhamento visa dialogar com as famílias das mulheres, com as redes de abrigamento no município, Defensoria Pública, poder judiciário, buscando a efetivação do direito à prisão domiciliar ou outras formas de cumprimento de pena em meio aberto quando as mulheres são migrantes.

    Ao mesmo tempo que é necessário reivindicar condições mínimas para o exercício da maternidade na prisão, por exemplo em questão de convivência entre mãe e bebê ou direito à amamentação, precisamos reivindicar que nenhuma mulher exerça a maternidade na prisão e isso inclui mulheres migrantes que vão possuir necessidades específicas como a falta de endereço fixo no Brasil, as dificuldades em obtenção de documentação pessoal enquanto se encontram na prisão, as distâncias com suas famílias. Em razão disso, o nosso trabalho tem sido de acompanhar todas as mulheres nessas situações, tanto as que estão dentro da prisão quanto as que saíram e continuam no Brasil ou até mesmo já puderam voltar aos seus países origem.

    Nós acompanhamos e vivenciamos uma série de histórias e situações: avós latinoamericanas que vêm ao Brasil realizar todos os caminhos possíveis para que possam levar seus netos e netas para suas casas, mães que tiveram seus filhos/as institucionalmente acolhidos em abrigos na cidade de São Paulo e que mantiveram contato com as crianças através de cartas durante a prisão para depois, em liberdade, conseguirem judicialmente recuperar o contato com seus filhos/as, assistentes sociais de abrigos que periodicamente levavam os/as filhos/as para visitar suas mães nas unidades prisionais e até mesmo mulheres migrantes que tiveram seu direito à prisão albergue domiciliar efetivado e passaram a viver sob prisão domiciliar na cidade de São Paulo.

    No relatório mais recente, “Mulheres em Prisão”, vocês mapeiam alguns números. Um deles versa sobre a quantidade de mães que estão no sistema carcerário. Vocês dizem “a maioria”. Tem números? Quantas deram à luz dentro do sistema?

    Em pesquisa realizada em 2012, chamada Tecer Justiça, estimamos que cerca de 80% das mulheres presas eram mães. No entanto, até o momento não há nenhum dado oficial sobre essa informação, o que é absurdo. Na verdade, a produção de dados oficiais sobre mulheres não tem sido levada a sério. O INFOPEN de 2014 lançou sua primeira versão sem dados específicos de mulheres. Somente após pressão da sociedade civil, inclusive do ITTC, foi publicado o INFOPEN Mulheres, mas que também não apresenta nenhum dado quantitativo sobre maternidade. Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça lançou uma plataforma chamada Geopresídios, que também não apresenta diferenciação de gênero em seus dados. É ultrajante que esses sistemas negligenciem dados das mulheres.

    Quais as possíveis soluções para dar um tratamento mais humanitário a essas mulheres?

    A principal solução é o desencarceramento de mulheres. O espaço do cárcere constitui uma violência institucional por si só. Portanto não há como esperar que algo que constitui uma tortura estrutural possa garantir qualquer direito. Ademais, conforme indicam as conclusões da pesquisa Dar a Luz nas Sombras, do Ministério da Justiça, toda gestação no sistema prisional é de risco, em razão da escassez de médicos, dificuldade em conseguir escolta para atendimento externo, além de todas as outras restrições impostas pelo cárcere, como à saúde e alimentação.

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